Poderia a vacina contra a gripe nos ajudar a combater tumores?

Publicado originalmente em Pretty Much Science por Martin Bonamino. Para acessar, clique aqui.

Essa ideia surgiu de dados que indicam que pacientes que sofreram infecção pelo vírus influenza durante o tratamento de câncer de pulmão têm menor mortalidade relacionada ao tumor.  

Nos anos recentes muito se estudou sobre os aspectos imunológicos dos tumores. O consenso hoje em dia é que há tumores que possuem grande presença de células do sistema imune ao seu redor (os chamados tumores imunologicamente “quentes”) e tumores que apresentam pouca presença de células imunológicas (os tumores “frios”). 

Outra grande descoberta das últimas décadas consistiu no desenvolvimento dos chamados bloqueadores de checkpoint imunológico, que tem como alvos proteínas capazes de transmitir sinais que impedem o sistema imune de eliminar tumores. Bloquear a função destas moléculas “destrava” o sistema imune, permitindo que o tumor seja reconhecido e eliminado. Estas descobertas resultaram no prêmio Nobel de medicina de 2018 a dois pesquisadores (Allison e Honjo) que desvendaram estes mecanismos e apontaram para o desenvolvimento de terapias tendo estas moléculas como alvo. 

Um dos segredos para que estas terapias funcionem é que o tumor tem que ser imunologicamente “quente”. Transformar tumores “’frios” em tumores “quentes” é, portanto, uma forma de potencializar estas imunoterapias. O trabalho publicado pela Pesquisadora Jenna Newman e colaboradores emprega uma estratégia baseada na utilização da vacina sazonal da gripe para transformar tumores frios em tumores quentes. Essa ideia surgiu de dados que indicam que pacientes que sofreram infecção pelo vírus influenza durante o tratamento de câncer de pulmão têm menor mortalidade relacionada ao tumor.  

Para investigar se a infecção pelo vírus influenza poderia alterar o perfil imunológico do tumor, ajudando o sistema imune a elimina-lo, os pesquisadores inseriram células capazes de formar massas tumorais no pulmão de camundongos. Eles observaram que quando os animais tinham infecções pulmonares pelo vírus, os tumores cresciam menos. Já se o mesmo tumor fosse injetado sob a pele do animal, a infecção do vírus no pulmão não tinha qualquer efeito. Este experimento mostrou que o vírus precisaria estar localizado no mesmo lugar que o tumor para gerar algum benefício. 

Os pesquisadores então repetiram o experimento, mas desta vez injetaram um vírus inativado direto no tumor. A presença do vírus, mesmo que não funcional, tornou o tumor imunologicamente “quente”, reduzindo seu crescimento. O tumor com perfil mais quente pôde então se beneficiar da imunoterapia com um bloqueador específico de checkpoint imunológico.

Para simular a realidade mais próxima dos pacientes, os cientistas usaram tumores humanos implantados em camundongos. Eles observaram resultados semelhantes aos testes anteriores, em que os tumores se tornaram imunologicamente “quentes” e responsivos à imunoterapia, após a aplicação do vírus inativado no mesmo local. Em seguida, os autores demonstram que vacinas comerciais para gripe tem um efeito semelhante no modelo animal. Este aspecto é relevante pois permitiria propor a vacinação intratumoral com as vacinas comerciais contra influenza para tratamento dos pacientes com câncer. 

Um dado surpreendente do trabalho mostrou que a fórmula das vacinas parece ser importante para esse efeito. Enquanto as vacinas com vírus inativados apresentam o efeito antitumoral, vacinas contendo uma substância estimuladora do sistema imune (derivada e um composto químico chamado esqualeno) não tiveram efeito contra o tumor. Algumas das vacinas disponíveis no mercado têm este composto e não seriam indicadas para o tratamento de câncer (embora funcionem muito bem contra o vírus).  

O trabalho gerou grande impacto na ciência ao demonstrar que uma vacina amplamente utilizada poderia ser adaptada como terapia antitumoral, se usada dentro do tumor. Assim, a vacina poderia ser utilizada em doses repetidas para aumentar sua potência, com o benefício adicional de proteção contra a infecção pelo vírus influenza.  

Por Martin Bonamino, Ph.D. 

Pesquisador e Líder do Laboratório de Imunologia de Tumores 

Programa de Imunologia e Biologia de Tumores (INCA)  

Programa FioCâncer (FIOCRUZ) 

___________________ 

Fontes/Sources: 

  1. Newman et al. Intratumoral injection of the seasonal flu shot converts immunologically cold tumors to hot and serves as an immunotherapy for cancer. PNAS (14 Jan 2020) 
  2. The Nobel Prize in Physiology or Medicine 2018. https://www.nobelprize.org/prizes/medicine/2018/press-release/

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