Publicado originalmente em ObjETHOS. Para acessar, clique aqui.
Kalianny Bezerra
Doutoranda do PPGJOR/UFSC e pesquisadora do objETHOS
Nem todo mundo sabe, mas o sistema de mídia no Brasil é altamente concentrado, seus principais conglomerados de comunicação pertencem a apenas sete diferentes grupos; entre os municípios, 53% não possuem veículos jornalísticos e 26% apenas um ou dois, e 61 milhões de pessoas vivem nesses lugares denominados desertos ou quase desertos de notícias.
As consequências desse cenário vão desde a falta de diversidade e pluralidade no discurso da mídia tradicional, o que reforça o abismo socioeconômico do país, até a ausência de informações de qualidade, o que acaba deixando a população mais passível a conteúdos desinformantes e colocando em risco tomadas de decisão mais acertadas.
Esse quadro pode até não ser novo, mas as inquietações em torno dele têm provocado ainda mais debates sobre as formas como a mídia jornalística pode se manter, em especial as mídias independentes e comunitárias, que ajudam a preencher lacunas deixadas pela mídia tradicional brasileira. Não é novidade o que vou falar, mas o jornalismo é, sim, fundamental para uma sociedade democrática. E, por esse motivo, é tão importante dialogar a respeito de novas formas de financiamento para essa atividade.
Nas últimas semanas, uma proposta bastante necessária, ainda que imperfeita, tomou conta dos debates entre os representantes políticos espalhados pelo país, da cobertura midiática, e esteve entre os assuntos mais comentados nas redes sociais e nas rodas de conversa. Me refiro ao Projeto de Lei nº 2630/2020, que prevê a regulamentação de plataformas digitais no Brasil, mas que também vem sendo apontado por alguns como uma solução – ou, talvez, “a” solução – para a crise de sustentabilidade vivenciada pelo jornalismo. Mas será mesmo?
Recapitulando
O PL 2630, de 2020, cria a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. E é bom já deixar claro: o projeto não irá interferir no uso da internet ou criar formas de censura como seus opositores o atacaram, ironicamente usando correntes de fake news. A proposta é exatamente o contrário e representa um avanço ao indicar a regulação da atuação das plataformas digitais, criando mecanismos para que redes sociais, ferramentas de busca, serviços de mensageria e provedores de aplicações com mais de 10 milhões de usuários no País tenham mais transparência em seu funcionamento, agindo de maneira rápida e preventiva na redução de crimes previstos na legislação brasileira, como atos de terrorismo, ataques ao Estado Democrático de Direito, racismo, violência contra mulher e crimes contra crianças e adolescentes. Ou seja, a proposta é que esse ambiente online possa ser mais democrático e seguro.
O apelido dado ao mérito, “PL das Fake News”, entretanto, talvez não seja mais cabível ou adequado. Levantamento feito por Chico Marés para a Lupa mostra como, desde sua apresentação ao Senado brasileiro, em maio de 2020, até chegar ao projeto substitutivo na Câmara de Deputados, no final de abril, o documento deixou de tratar de maneira mais aprofundada o tema da desinformação e, agora, usa a palavra de forma mais tangencial. Se no projeto original, de autoria do senador Alessandro Vieira (PSDB-RS), à época no partido Cidadania, existiam 23 citações no texto, no substitutivo da Câmara, com relatoria do deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), a palavra é citada apenas três vezes e o documento não traz qualquer definição sobre o tema.
Não significa que o PL tenha menos importância ou não deva ser foco de apreciação. Aliás, nos últimos meses, ele ganhou notoriedade e centralidade nas discussões do legislativo, especialmente após a tentativa de golpe no 8 de janeiro, quando ficou visível a movimentação de grupos antidemocráticos nas redes e a incapacidade das plataformas em atuar para regular e limitar o espalhamento dessas articulações. A pesquisadora Aline Rios fez essa discussão em texto recente para o objETHOS.
É importante ressaltar que o projeto é pauta na Câmara desde junho de 2020. Ao longo desses três anos foram realizadas reuniões técnicas, audiências públicas e apresentações entre parlamentares. No dia 25 de abril deste ano, por 238 votos a 192, a Câmara dos Deputados aprovou o requerimento de urgência para o projeto. A votação, que estava prevista para a última terça-feira, 2 de maio, foi adiada a pedido do relator do projeto sob a justificativa de que novas alterações no texto eram necessárias. Ficou claro, no entanto, que a proposta enfrentou nos últimos dias uma forte pressão de forças políticas – em especial de parlamentares da extrema direita, bolsonaristas e membros da bancada evangélica – e econômicas – principalmente por parte de Google e Meta (que inclui Instagram, Facebook e WhatsApp), empresas que têm sido alvo de regulações ao redor do mundo e atuado para evitar esses avanços – opositoras ao PL.
Há um vazio legislativo no Brasil a respeito da regulação das chamadas “Big Techs“. Por isso, não dá para negar a importância de um projeto de lei como esse. Mas, se o texto traz proposições interessantes, também deixa de apresentar ou se aprofundar em aspectos que deveriam estar presentes – como o entendimento do conceito de desinformação –, e ainda traz pontos polêmicos que precisam de mais conversas e esclarecimento, como a inclusão da imunidade parlamentar estendida à atuação nas redes, a remuneração de direitos autorais e a remuneração do conteúdo jornalístico.
Precisamos pensar no quando e no como
Tratar sobre as questões que envolvem a sustentabilidade do jornalismo é extremamente necessário e urgente. Ainda que esse debate dentro do PL 2630 não seja o mais adequado, com a manutenção dessa proposta no projeto é impossível ficarmos alheios ao dispositivo e às discussões que ele têm gerado. A Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj) também tem esse entendimento.
No último sábado (6), entretanto, houve uma sinalização por parte do relator do projeto, o deputado Orlando Silva, de que está ocorrendo uma articulação para a retirada desse ponto e sua incorporação ao Projeto de Lei 2370/2019, de autoria da deputada Jandira Feghali (PCdo-RJ), sobre remuneração aos artistas a título de direitos autorais. Parece ser um bom caminho, mas, se de fato isso ocorrer, somos levados a uma outra reflexão: por que não pensar em debater a questão da remuneração jornalística num projeto próprio, entendendo a complexidade do assunto, avançando na discussão e tratando o tema com a profundidade que ele requer? Enquanto ainda observamos um cenário incerto em torno de como a proposta será conduzida, trago algumas questões sobre o artigo que versa sobre o pagamento dos conteúdos jornalísticos no PL 2630.
O artigo 32, inserido no substitutivo do projeto, diz que conteúdos jornalísticos utilizados pelas Big Techs ensejarão remuneração às empresas jornalísticas. Ele também pontua que a pactuação de como a remuneração ocorrerá pode acontecer diretamente entre “provedor de aplicação” e a empresa jornalística. É uma proposta similar ao News Media Bargaining Code, que entrou em vigor na Austrália em março de 2021 e já passou por uma revisão realizada pelo governo do país em dezembro de 2022.
O modelo australiano vem sendo bastante criticado, em especial por não trazer transparência nas negociações entre os veículos de comunicação e as plataformas – no caso, Google e Meta. Basicamente, essa remuneração não é traduzida para o público, e é evidente a opacidade em torno de quantos acordos já foram realmente fechados entre as empresas de comunicação e as Big Techs, quais seriam exatamente essas empresas e quais valores foram negociados. Mas, sabe-se, por exemplo, que o maior conglomerado de mídia do país, do bilionário Rupert Murdoch, que possui 59% de participação do mercado, é um dos beneficiários do acordo.
É com esse pano de fundo que organizações da radiodifusão brasileira têm defendido veementemente o PL das Fake News. Carlos Castilho, pesquisador associado deste objETHOS, destaca exatamente que “no Brasil, a Rede Globo baseia sua defesa do PL 2630 no combate às notícias falsas como uma estratégia para minimizar a visibilidade pública do seu grande objetivo que é a neutralização do crescimento acelerado das plataformas digitais”.
Um outro ponto bastante criticado do código australiano é o de que as organizações de notícias menores têm sido deixadas de lado nas negociações. Inclusive, outros países já têm olhado para esse exemplo e buscado desenvolver novos modelos a partir dessa experiência. Para evitar que isso aconteça também no Brasil, organizações como Fenaj, Associação de Jornalismo Digital (Ajor) e signatárias brasileiras do Código de Ética e Princípios da International Fact-Checking Network (IFCN), como Aos Fatos e Lupa, – em documentos assinados separadamente – têm defendido a construção de um fundo de apoio para o jornalismo, com mecanismos de controle bem definidos e que inclua empresas de jornalismo de todos os tamanhos e perfis.
A Fenaj ainda defende que não apenas as empresas sejam incluídas, como também os profissionais que são os responsáveis pela produção do conteúdo. Nada mais justo já que, como apontou a pesquisadora Natália Huf, sem eles, nenhuma organização seria capaz de fazer jornalismo.
É claro que esse caminho não é fácil de ser percorrido e não deve ser trilhado de qualquer maneira, mas questões em torno de como desenvolver e implementar formas de um jornalismo mais sustentável são urgentes. Em especial quando falamos daquele jornalismo que foge das amarras do clickbait, do sensacionalismo e que olha para as temáticas de interesse público; aquele jornalismo que se preocupa com a pluralidade e diversidade das vozes, que serve aos cidadãos. O pagamento das plataformas pelo conteúdo jornalístico que circula nos ambientes digitais pode ser uma boa solução, mas não deve ser encarado como a única. Precisa, ainda, ser pensado de uma forma mais ampla para que atenda organizações e profissionais.