Pesquisa resgata a vida e a obra de Lupicínio Rodrigues

Publicado originalmente em Jornal da Universidade. Para acessar, clique aqui.

Música | Escrita na forma de uma biografia musical-histórica, tese de doutorado analisa a trajetória e a produção do compositor e intérprete que é um dos símbolos do gênero samba-canção

*Foto: Recorte da capa do disco “Dor de cotovelo”, um dos mais conhecidos de Lupicínio Rodrigues (Reprodução)

Com a intenção de escrever uma biografia musical que qualquer pessoa pudesse entender, o músico e pesquisador Arthur de Faria resgatou a trajetória e a obra do compositor e intérprete porto-alegrense Lupicínio Rodrigues (1914-1974) em sua tese defendida pelo Programa de Pós-graduação em Letras da UFRGS. Orientado pelo professor Luís Augusto Fischer, o trabalho analisou musicalmente a obra de Lupi, inserindo-a em seu contexto histórico e, ainda, destacando a posição de Lupicínio como um brasileiro preto, periférico, boêmio e morador da capital gaúcha.

Arthur conta que, desde o início, a tese foi pensada como uma biografia de Lupi com um foco musical e histórico, porém imaginada não só como um trabalho acadêmico, mas também como uma história a ser contada em formato de livro, para que qualquer leitor possa entender e a ela ter acesso. Essa ideia permeou o conteúdo do trabalho até a linguagem utilizada pelo pesquisador. “Eu perguntei para o Fischer se poderia escrever numa linguagem de ‘pessoa normal’, ou se eu precisava escrever em ‘academiquês’, e ele me respondeu que, se na literatura brasileira eu não pudesse escrever do jeito que eu quisesse, onde é que eu ia poder fazer isso? Então o texto tem nota de rodapé e tudo, mas tu não vais ver nenhum ‘segundo fulano’, nada. Ele é escrito já no formato de livro”, relata Arthur. 

Da dor de cotovelo aos amores não correspondidos 

Nascido em Porto Alegre e criado na antiga região de Ilhota, bairro da cidade que atualmente vai da praça Garibaldi até a avenida Ipiranga, Lupicínio Rodrigues foi um cantor e compositor gaúcho conhecido como um dos grandes nomes do gênero samba-canção. O músico é, inclusive, o criador da expressão “dor de cotovelo” e autor do hino do Grêmio.

"Eu gostei tanto
Tanto quando me contaram
Que a encontraram
Bebendo e chorando
Na mesa de um bar
E que quando os amigos do peito
Por mim perguntaram
Um soluço cortou sua voz
Não lhe deixou falar
Mas eu gostei tanto"

Trecho de "Vingança", música composta por Lupicínio Rodrigues em 1951
Capa do disco “Roteiro de um bohêmio”, com canções muito conhecidas de Lupi, como “Vingança” e “Felicidade” (Foto: Reprodução)

Em suas canções, os assuntos mais recorrentes eram amores não correspondidos, traições e vinganças, sempre com um toque de “sofrência” – característico do gênero musical – transposto em letras sentimentais, que geralmente giravam em torno da falta de alguém ou da saudade de um amor não correspondido ou perdido. “É impossível não falar dos seus amores, dos seus casos, das mulheres, porque isso era central na obra dele. Ele investia muito nisso, ele cantava coisas que tinham acontecido efetivamente na vida dele”, relata Arthur.

"Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?
Ter loucura por uma mulher
E depois encontrar esse amor, meu senhor
Nos braços de um tipo qualquer?"

Trecho de "Nervos de Aço", música composta por Lupicínio Rodrigues em 1939 
"Felicidade foi-se embora
E a saudade no meu peito ainda mora
E é por isso que eu gosto lá de fora
Porque eu sei que a falsidade não vigora"

Trecho de "Felicidade", composta por Lupicínio Rodrigues em 1932

Além de falar sobre a vida e a obra de Lupicínio, a tese também faz uma varredura no contexto histórico vivido pelo compositor, alternando entre as fases da vida de Lupi e o cenário da época. Em relação a Porto Alegre, o pesquisador percorre a música dos anos de formação da cidade e dos anos dourados, além de contar a história da Ilhota, antigo bairro entre o Menino Deus, Azenha e Cidade Baixa, conhecido por alagar frequentemente e por ser o lugar de nascimento de Lupi. 

Lupi também tinha vínculo com a UFRGS: ele trabalhou como bedel na Faculdade de Direito. A foto, publicada na Revista do Globo em 27 de julho de 1952, mostra o compositor na portaria da faculdade (Reprodução)

De acordo com Arthur, o contexto brasileiro e a época em que Getúlio Vargas estava no poder também foram importantes na trajetória do compositor e por isso também foram incluídos na pesquisa. “Eu falo sobre a ascensão do Getúlio e de como, principalmente ao longo do Estado Novo, ele fez um processo de unificação do Brasil que usou muito a música popular e como isso influenciou na consagração de Lupicínio. Também falo das modificações da música nos anos 60, porque tudo o que aconteceu na sociedade e na música brasileira nessa época fez com que a geração dele fosse esquecida, e ele, como morreu cedo, não chegou a ver a volta de valorização que a sua geração teve”, conta. 

Uma pessoa multifacetada

Músico e jornalista, Arthur de Faria começou a pesquisa em torno da vida de Lupicínio muito antes de fazer o mestrado e doutorado, por pura curiosidade acerca do artista. Por isso, ao longo de anos, ele recolheu depoimentos de colegas da mesma geração de Lupi, falecidos há muito, que falaram não só sobre o compositor, mas também sobre algumas características da sociedade da sua época, principalmente em aspectos relacionados à raça, classe e gênero. “Uma das coisas que me surpreendeu é que os homens negros desse contexto, da boemia, da noite de Porto Alegre, nenhum deles fala em racismo. Todos eles diziam ‘não, entre nós não tinha preconceito, todo mundo era igual’. Ao mesmo tempo, as mulheres negras tiveram suas vidas marcadas pelo racismo, e não era um pouco mais difícil ser mulher preta que homem preto nesse contexto, era ‘muitíssimo’ mais difícil.” 

“O Lupicínio era muito um retrato do homem de sua época e, ao mesmo tempo, muito complexo. É fácil enquadrar ele como um outsider do seu mundo, mas também dá para enquadrar ele como a superfigura simbólica de toda caretice do seu tempo. Ele não é um sujeito que se reduz facilmente a um estereótipo”

Arthur de Faria
Lupicínio e a segunda esposa, Cerenita Rodrigues (Foto: Sílvio
Ferreira/Acervo Marcello Campos)

Ainda que o auge da popularidade de Lupi tenha sido nos 1950, mesmo depois da sua morte, ocorrida em 1974, a obra do compositor não parou de ser regravada, não só por colegas da sua geração, mas também por intérpretes que incluem Arrigo Barnabé, Fábio Jr., Elza Soares, Maria Bethânia, Adriana Calcanhotto e Arnaldo Antunes. 

Para Arthur, conseguir traduzir o talento de Lupi em uma linguagem mais simples, para que o público geral – e não somente músicos – pudesse entender, foi o seu maior desafio, mas também uma grande realização. “Uma coisa que ninguém fala do Lupicínio é a genialidade estritamente musical de um sujeito que não tocava instrumento musical algum. E um pouco por isso, e um pouco apesar disso, fazia melodias que são incríveis e estruturas de canção que não são estruturas estrofe-refrão-estrofe-refrão, uma coisa muito peculiar, muito fora da média mesmo, sendo original sem ser vanguardista”, emociona-se o pesquisador.

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