Pesquisa analisa a racialização de pessoas brancas no reconhecimento de um passado familiar escravista

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS por Geovana Benites. Para acessar, clique aqui.

Antropologia | O trabalho investiga como a família proprietária da Fazenda da Tafona, em Cachoeira do Sul, mobiliza a memória de forma crítica no entendimento da sua identidade racial

*Foto: Fazenda da Tafona, em Cachoeira do Sul, em 2010 (Renato Thomsen)

Uma dissertação defendida no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da UFRGS investigou como o reconhecimento de um passado familiar escravista impacta na forma como pessoas brancas constituem a sua identidade racial. Realizado pela pesquisadora Júlia Landgraf, com orientação do professor Pablo Quintero, o trabalho analisou o caso da família proprietária da Fazenda da Tafona, localizada em Cachoeira do Sul (RS). No século XIX, o local abrigava a produção de farinha de mandioca com mão de obra vinda da exploração de pessoas escravizadas. 

Por meio de visitas a campo, entrevistas e pesquisas em documentos, foram analisadas as formas como as pessoas da família mobilizam a memória dos seus antepassados e como isso se desdobra em um entendimento delas enquanto brancas. Além disso, a dissertação também considera o entendimento histórico dos processos de racialização no Rio Grande do Sul, já que a história da fazenda se entrelaça com a história da formação social do Estado.

Vista aérea da fazenda (Foto: Renato Thomsen)
Reflexos do passado  

Após entender como acontecia a produção da fazenda, em 2016, a família tombou a propriedade e iniciou um projeto de visitas educativas com escolas e grupos de pessoas da região para falar a respeito da escravização ocorrida no local. Além disso, o projeto também criou o blog Associação de Amigos da Fazenda da Tafona – Casa de Memória, em que é narrada a história do espaço. “Apesar de ter uma coisa bastante óbvia também é um baque em termos éticos, e então eles [os integrantes da família] resolveram que queriam falar sobre isso”, revela Júlia. De acordo com a pesquisadora, a medida se diferencia do processo comum entre pessoas brancas: o de não falar sobre a escravização operada por seus antepassados.

“Esse caso me chamou bastante atenção exatamente por isso: pessoas brancas não costumam falar sobre esse passado e, quando o fazem, falam em termos abstratos, nunca em termos concretos como ‘a minha família’”

Júlia Landgraf

Iniciado durante a pandemia de covid-19, o estudo de Júlia foi feito quase totalmente de forma remota, já que a maior parte das análises foram a partir de entrevistas em profundidade com Marô e Marco, casal que hoje coordena e mantém o projeto. Durante as conversas, a pesquisadora abordou a iniciativa que eles formaram e buscou entender como foi para eles o resgate da memória em torno dos seus antepassados.

A cientista conta que até para a família houve certa dificuldade para saber mais sobre o passado da fazenda, porque muitas informações eram de difícil acesso ou inexistentes. “A gente sabe que a família, por exemplo, não tem registro sobre as pessoas escravizadas que moraram lá. Tem registros sobre as posses da família, mas não se fala sobre quem eram as pessoas escravizadas, por exemplo”, completa Júlia. 

Também por essa razão a parte mais longa do estudo foi a análise documental, que incluiu tanto arquivos históricos do século XIX recuperados pela família e cartas entre os membros quanto documentos presentes em arquivos históricos de Porto Alegre e Cachoeira do Sul. Um exemplo desses documentos que contam um pouco da história escravista da fazenda são os inventários, nos quais é possível verificar os bens da família. Esses documentos indicam que as pessoas escravizadas, àquela época, eram consideradas como posse. 

Fazenda da Tafona em meados da década de 1960 (Foto: Divulgação/Associação de Amigos da Fazenda da Tafona)
Mobilização das pessoas brancas

O campo dos Estudos Críticos da Branquitude procura colocar as pessoas brancas em um lugar de reflexão a respeito do que seriam privilégios raciais, buscando a possibilidade de desconstruir o racismo presente na sua identidade. Júlia destaca que é por meio da educação de pessoas brancas que é possível mudar o cenário atual. 

“As pessoas brancas precisam entender que elas também têm raça, que não é só o outro, o negro e o indígena que tem raça, e que elas fazem parte desse processo de perpetuar o racismo”

Júlia Landgraf

Segundo o trabalho, o próprio casal que promoveu o projeto foi construindo, ao longo do processo, uma educação discursiva sobre a branquitude. “O que eles sabiam era que aquela família havia construído tudo o que eles tinham como resultado do trabalho forçado de pessoas negras, e a motivação deles [para começar o projeto] era principalmente um desconforto com a desigualdade”, completa. 

Para Júlia, realizar a pesquisa nesse campo foi relevante também para si própria como mulher branca. Ela conta que, no processo, conseguiu se colocar em um lugar que lhe permitia pensar e debater sobre racismo – o que, muitas vezes, não é feito por pessoas brancas. “Enquanto isso, pessoas negras têm que lidar com racismo o tempo inteiro, e não é uma opção parar de lidar com isso. Eu acho que trabalhar intensamente em cima disso por dois anos foi algo que me colocou muito imersa em uma dor muito profunda do Brasil de hoje”, reflete.

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