Perspectivas científicas africanas resistem à desvalorização e ao apagamento

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.

Ciência | Imposição do paradigma eurocêntrico faz com que as cosmovisões africanas ainda sejam pouco reconhecidas pelo Ocidente

*Foto: Gustavo Diehl/JU-Arquivo

Historicamente, a África e seus descendentes foram desvalorizados pelo conhecimento científico, sendo frequentemente retratados como primitivos e sem contribuições significativas para a humanidade. Essa visão foi perpetuada por perspectivas europeias que se consideravam superiores, resultando na desqualificação dos africanos como pensadores e na negligência de sua história científica.

A ciência, em sua essência, é um campo vasto e diversificado. Diferentes culturas e perspectivas contribuem para o entendimento do mundo ao nosso redor. O método científico tradicional, no entanto, tende a fragmentar o conhecimento e priorizar certas formas de saber em detrimento de outras. Diante disso, surge a imperativa discussão sobre a epistemologia endógena africana, não apenas como um campo de estudo válido, mas como um pilar fundamental para a emancipação cultural e epistemológica.

A moderna ciência ocidental, fruto do imperialismo eurocentrista, foi historicamente impulsionada pelo acúmulo de capital e políticas colonialistas. As bases do conhecimento científico atual se dão a partir da Modernidade. Por concepção colonial, deve-se compreender as sociedades formadas pelo colonialismo europeu divididas por dualidades, tais como colonizados e colonizadores, dominados e dominadores, pretos e brancos. Assim, a colonialidade do saber se refere à hierarquização e marginalização de certos conhecimentos e epistemologias em relação ao conhecimento eurocêntrico.

Conforme escreveu o antropólogo e professor Kabengele Munanga, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), o conceito de situação colonial expressa “uma relação de forças entre vários atores sociais dentro da colônia, sociedade globalizada, dividida em dois campos antagonistas e desiguais: a sociedade colonial e a sociedade colonizada”.

A partir da visão colonialista, outros saberes foram apagados e marginalizados como primitivos. Nos princípios do eurocentrismo, as realidades ocidentais são “universais”, isto é, apresentam o racionalismo branco como se fosse o padrão para a ciência e a condição humana. A África, porém, possui outras visões de mundo e concepções de saberes ancestrais que, apesar do apagamento e do historicídio, sobrevivem há milhares de anos.

Saberes endógenos ancestrais: tudo está interligado

“Há um ponto de vista colonialista de que todos os africanos concordam entre si e têm a mesma maneira de pensar. A visão colonialista é insensível à pluralidade de opiniões de uma civilização oral”, disse o filósofo Paulin Hountondji à Radio France Internationale em 2022. Natural do Benin, foi uma das figuras mais importantes da história da filosofia africana e crítico da visão de ciência e filosofia sobre e da África. Sua trajetória crítica à visão de mundo europeia ajudou a transformar a vida intelectual africana. Ele morreu em 2 de fevereiro de 2024, aos 81 anos.

Na década de 80, Hountondji escreveu O antigo e o moderno: a produção da África contemporânea, livro que analisa e compara a ciência moderna com os saberes ancestrais africanos e reúne estudos sobre saberes endógenos. O professor José Rivair Macedo, do Programa de Pós-graduação em História da UFRGS e pesquisador de História das Sociedades Africanas Antigas, explica que “os africanos preferem empregar os termos conhecimentos endógenos ou saberes endógenos para distingui-los e diferenciá-los do conhecimento científico, pois são saberes adquiridos na relação com a natureza e o cosmos”.

Esses saberes endógenos são obtidos em rituais em que se evidenciam essa relação com o meio. Assim, nas sociedades africanas (e também ameríndias e indígenas), não há o pressuposto da existência de uma separação entre o indivíduo e outros objetos: “Tudo está interligado, a energia é interligada à natureza, ao ser humano e àquilo que nós chamamos de dimensão espiritual”, complementa José Rivair.

O docente ressalta que a construção da ciência como conhecemos é produto da cultura ocidental e, por estarmos imersos nela, não é fácil visualizar ou compreender cosmovisões não excludentes, que não se encaixam na razão moderna, “independentemente da nossa cor, porque mesmo a pessoa ocidental de pele preta pensa a partir da cultura branca e dessa ideia de ciência”.

Segundo ele, a palavra-chave do processo científico excludente é a laicização, que, somada à noção de indivíduo, separa o humano da natureza e da sacralidade em um processo chamado antropocentrização, muito bem ilustrado pela figura do Homem Vitruviano de Leonardo Da Vinci. Essa representação do ideal Renascentista reflete a mudança do foco medieval em Deus e no divino para o homem como centro do universo, simbolizando também o pensamento racional, usando proporções matemáticas para expressar a ordem universal, a importância do pensamento lógico e da compreensão científica.

O homem situado no centro do círculo se vê destacado da natureza. “Como diz Gaston Bachelard, entre outros epistemólogos ocidentais, esse processo de separação entre sujeito e objeto é o que define o método científico, permitindo que um objeto possa ser analisado, classificado, interpretado a partir de verificação”, afirma o pesquisador.

Na perspectiva científica eurocêntrica, é a partir desse procedimento que o conhecimento obtém valor. “Só o Ocidente tem o indivíduo atômico como um sujeito pensante e capaz de atuar e interagir com outros e outras realidades, treinado pela razão moderna. As sociedades africanas, indígenas e orientais não fizeram isso”, aponta.

Tal modelo de pensamento foi apresentado ao mundo pelos europeus, principalmente do século 19 em diante, levando os valores da Revolução Industrial e da revolução científica como processos civilizatórios a partir da colonização. Isso não quer dizer, todavia, que na África só existam os saberes tradicionais, até porque é um continente massivamente colonizado pela Europa e pelo Ocidente. “Eles passaram a ter conhecimentos científicos ocidentais; os africanos, então, têm tanto saberes tradicionais quanto saberes não tradicionais”, acrescenta Rivair.

Até aqui, parece que o mundo ainda é dividido em “Ocidente e África”, pretos e brancos. Márcio Luis da Silva Paim, mestre em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Estadual da Bahia (UESB), prefere remontar à antiguidade geográfica das populações melanodérmicas e à sua dispersão da África para o Oriente Médio como ponto de partida para se entenderem as contribuições científicas dessas sociedades. Ele assinala que a abordagem da história dos povos africanos no Brasil é estreitamente associada ao período da escravização, quando, na verdade, deveríamos recuar 7 milhões de anos, quando se dá a origem e a evolução da espécie humana na África.

“O que isso representa? É a distância que a gente está da compreensão da história da África, só para se ter uma noção do abismo que temos em relação à contribuição do continente africano”

Márcio Luis da Silva Paim

Conforme Paim, que é doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS, a primeira dispersão populacional na África ocorre entre 2,5 milhões e 1 milhão de anos atrás; a segunda, por volta de 300 mil anos, já na era do Homo sapiens sapiens. Para ele, o próprio conceito de diáspora precisa ser repensado, já que houve outros momentos de saída de pessoas do continente africano.

“Se você pegar o conceito de diáspora no dicionário, vai perceber que significa dispersão, espalhamento. É impossível compreender a importância da contribuição científica do continente africano sem tomar a evolução humana na África como ponto de partida. Um dos motivos principais da incompreensão de seu legado científico se dá justamente por conta dessa abordagem colonial”, destaca.

A partir dessas movimentações, a espécie humana passa a ocupar vários espaços no continente africano, o que dará origem às civilizações melanodérmicas no período que vai entre 5 mil e 1.500 anos antes da era comum. “Os conceitos de negro e branco são muito recentes. A alta antiguidade é absolutamente melanodérmica. Suas populações são de pele escura, segundo a genética e a biologia molecular. Antes disso, não havia populações leucodérmicas, ou seja, despigmentadas. Por isso, prefiro falar de contribuição científica de populações melanodérmicas,”, explica Paim, ressaltando que é preciso ter uma visão mais ampla, já que as populações partem da África para ocupar outros continentes e cada uma delas se adaptará à geografia e construirá seu conhecimento. “Não dá para restringir a contribuição científica da África ao continente africano.”

De acordo com Paim, ampliar essa visão requer ir além inclusive do Egito, pois, a partir das dispersões, há populações melanodérmicas em locais como a Turquia, Laos, Camboja, Vietnã, Malásia, Tailândia, Japão, China e também na Europa ibérica, como Portugal e Espanha — ou seja, o mundo todo era ocupado por melanodérmicos que haviam deixado a África, o berço da humanidade. O processo de despigmentação só começaria por volta de 6.500 anos.

Embora pesquisas recentes contestem a África como o lócus da humanidade, a teoria ainda é amplamente aceita no meio científico. “É dali que parte o processo de hominização, o Homo erectus, tendo a África participação comprovada no processo de humanização daqueles conhecimentos que são básicos da humanidade, a relação com a natureza, com o corpo, as sensações, todos surgiram lá”, argumenta Rivair.

Cosmologia africana: céu e Terra como biblioteca de narrativas

A África é um continente com 54 países com uma infinidade de regiões, culturas e línguas. Só Angola tem cerca de 20 línguas de origem africana, em sua maioria de tronco bantu. No entanto, o processo colonial explorou, saqueou, escravizou e distorceu o imaginário e a história do continente. Esse processo, conhecido como epistemicídio, visava destruir o conhecimento e a cultura africanas para manter sua subordinação. A África foi e ainda é retratada pelo Ocidente como primitiva, de forma a apagar suas contribuições para o conhecimento científico e reforçar estereótipos de primitivismo e exaltação do exótico, tal qual se vê nos filmes de Hollywood. 

Fato é que a dominação econômica, política e cultural do Ocidente se traduziu na construção hierárquica entre conhecimentos e perspectivas epistemológicas, sendo a visão do usurpador a predominante. “Não é possível falar de uma cultura africana como se houvesse um bloco homogêneo. As experiências são múltiplas e há outras noções de espaço e tempo que precisam ser contextualizadas, discutidas e trazidas como conhecimento válido para as nossas formações desde as idades tenras”, defende o astrofísico Alan Alves Brito, doutor em Ciências pela USP. Professor no Instituto de Física da UFRGS, Alan desenvolve atividades de pesquisa no Núcleo de Estudos Afro-brasileiros, Indígenas e Africanos da universidade, trabalhando principalmente com culturas dos povos Yorubá, Congo-Angola (banto), Fon, Dogon, Akan e do Egito.

Segundo ele, as relações Céu-Terra entre os povos africanos citados acima fazem parte da própria dinâmica da vida: “Céu e Terra são dualidade e não encarados como binarizadas e excludentes. Por isso, falamos em cosmopercepções, e não somente cosmovisão, exatamente porque essas perspectivas cosmológicas outras levam em conta todos os sentidos, e não somente a ‘visão’ ocidental”.

A oralidade também é parte importante no processo. “O Céu e a Terra são uma biblioteca e um arquivo de narrativas, memórias e tradições orais que foram subjugadas, subalternizadas e inferiorizadas por um jeito particular de pensar-sentir o Universo por parte de pessoas (de regiões da Europa e dos grupos que dela se originam) que se colocam em posição privilegiada de descrever, interpretar e dominar a natureza”, afirma.

Nesse ponto de vista, as relações Céu/Terra vivenciadas e praticadas por povos africanos contribuem para mostrar que o próprio conceito de ciência é dinâmico e muda com o tempo.

“Além disso, nos recorda que o Céu (e a Terra) formam um contínuo e, nesse sentido, humanos e não humanos estão conectados com a natureza. Temos, assim, cosmoperspectivas totalmente distintas à mesa, de forma que essas outras relações Céu-Terra são fundamentais para tensionar questões históricas, filosóficas, epistemológicas e ontológicas do que é ciência, tecnologia, espaço, tempo, desenvolvimento, inovação e como criamos conhecimento”

Alan Alves Brito

Dado que tudo na cosmovisão africana está interligado, é difícil explicar a ciência da África conforme o padrão ocidental, positivista, racional, exógeno e binário, o que contribui para o seu apagamento ou, no mínimo, para o seu não reconhecimento pelas epistemologias e ontologias europeias. “Não utilizo o termo astronomia para me referir à relação dos povos africanos ancestrais, porque é eurocêntrico. Hoje existe uma astronomia se desenvolvendo na África que tem uma perspectiva europeia. Tenho muitas ressalvas, porque lá, agora, os astrofísicos nos observatórios são em sua maioria brancos. Por isso também é complicado responder sobre ‘as descobertas científicas’, pois o próprio conceito de astronomia surge no século 17, então prefiro usar o termo ‘Céu-Terra’”, ressalva. 

Mas isso não quer dizer que cientistas e pensadores africanos não tenham tentado se adaptar, por assim dizer, a esse padrão, uma questão que até hoje rende discussões filosóficas. De qualquer forma, “mais recentemente, muitos países do continente africano têm iniciado atividades de pesquisa em astronomia e ciência espacial, começando com o desenvolvimento institucional e de capacidade humana, a pesquisa científica e o trabalho em rede. Há projetos de astrofísica na faixa (do espectro eletromagnético) do óptico, do rádio e de altas energias, além de construção de satélites”, anuncia Brito. 

Ele também lembra que há uma discussão histórica (com suas controvérsias) sobre como os povos Dogon já desenvolviam seus próprios modelos cosmológicos, calendários e explicações do mundo; possuíam conhecimentos sobre estrelas brilhantes, associando-as aos seus festejos, e também sobre a estrutura da Via Láctea; conhecimentos sobre corpos do sistema solar, as luas de Júpiter e os anéis de Saturno muito antes de Galileu.

Muniz Sodré: As três singularidades da cosmovisão africana

Sob o ponto de vista do sociólogo Muniz Sodré, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), não existe um “saber africano”: “A palavra sabedoria me parece preconceituosa. Você diria ‘a sabedoria’ europeia ou a americana? É a mesma coisa para África. Por outro lado, não existe também uma unidade como ‘o saber africano’”Para Sodré, há cosmovisões africanas radicalmente diferentes das europeias, embora haja pontos que se tocam com a cosmovisão oriental. 

Em suas palavras, seu livro “Pensar Nagô” foi uma tentativa de abordar o pensamento de terreiro: “Busquei mostrar que ele constrói e constitui para mim um modo de pensar não centrado em filósofos individuais, mas no pensamento da comunidade e que vem da África. Essa cosmovisão do terreiro tem singularidades que se confrontam com a cosmovisão europeia”. Sodré ordena tais especificidades em três categorias: potência, força e alegria, todas a partir da relativização da separação sujeito e objeto.

“A razão epistêmica e científica europeia leva ao comércio, à tecnologia, leva à separação radical entre sujeito e objeto. O sujeito é o que conhece o objeto que se faz conhecer; a separação é necessária para que se conheça o objeto, que fica teoricamente morto. É como o conhecimento matemático, que é exato porque os objetos de conhecimento da matemática são idealidades mortas que podem, portanto, se universalizar. Você conhece o objeto quando ele está exatamente inerte, como foi também na medicina, que passou a conhecer o corpo a partir de um cadáver que se dissecava”, compara.

Já o pensamento africano é o contrário. “As coisas da natureza têm vida, mas o que isso quer dizer? Têm vida porque contêm uma mesma potência, um poder de realização que, nos terreiros da Bahia, chamamos de axé. Tem o axé do sangue, o axé vermelho; o axé das plantas, o axé verde; o axé da terra, porque é a riqueza que a terra nos dá e, portanto, é fonte de potência.” 

Como potência é vida, Sodré cita como exemplo as enchentes em Porto Alegre, que demonstram que “o rio não suporta o cimento não poroso, não suporta o abafamento, mesmo as represas não são a melhor maneira de conter as águas porque é por sufocação. De maneira que as plantas, as águas, os peixes, tudo é interligado com o sujeito humano”. 

A relativização da separação é o primeiro grande distintivo do pensamento africano. “Esta é a questão do Antropoceno, a terra como Gaia, a entidade viva, e que nós não estamos separados de nada, mas em relação constante com os objetos. É a separação que traz o desastre climático e ecológico, as doenças. Para o pensamento africano, podemos todos ser diferentes, mas não separados. É a ideia do ‘ubuntu’, que é tanto substantivo quanto verbo, e eu só sou à medida que somos, ou seja, que estamos na mesma lógica de existência.” Essa concepção, acrescenta o sociólogo, inclui seres humanos e não humanos.

A segunda singularidade do pensamento africano é a força. Mas não é a força física, o Agbara. Sodré ilustra: “Digamos que alguém me empurra, e eu o empurro de volta. Isso é uma contraforça física. Porém, na palavra axé é um outro tipo de força, que abrange o simbólico, que é o poder de realização. Se alguém me empurrou, então não preciso empurrar de volta porque eu não me mexi. Por algum motivo, me fortaleci, diminuindo a força de quem empurrou. É um poder, uma capacidade inerente a quem tem”. 

O poder de realização engloba diversos aspectos. Na comparação com a cultura ocidental, o dinheiro ocupa esse lugar de instrumento de poder. “Na lógica africana, esse poder infinito é para alimentar a família; ter filhos é poder de realização, é axé. Essa potência envolve o indivíduo tanto física quanto financeiramente, moral e também libidinal, sexualmente. O poder libidinal na ótica ocidental é dominar o outro. Então é você tem uma diferença entre poder e potência que filosoficamente é muito importante”, ressalta o sociólogo.

A terceira distinção feita por Sodré é o relacionamento consagrado com o divino. É importante notar, entretanto, que há centenas de mitologias africanas e orientais, incluindo em partes do Egito e Iraque. O importante desse aspecto é a integração em vez da onipotência: embora no culto afro exista uma divindade central (Olodum maré, em yorubá), ele não é uma divindade absoluta como o Deus cristão.

“Ele é um regente que centraliza e divide as suas funções e os poderes com princípios de relacionamento entre a natureza e os humanos. Esses princípios são os orixás. Oxum, por exemplo, é o princípio da feminilidade centrada na beleza, na gestação, no poder de gerar a vida. Aliás, embora o homem seja o parceiro dessa geração, nesse sentido a mulher tem mais axé que o homem, porque é ela que produz o filho na sua barriga”, explica. Tal é a importância desse aspecto de potência na filosofia nagô que a acumulação mais importante não é de bens, mas, sim, a ação de ter filhos, pois é garantia de amor, cuidado e sobrevida para a mãe.

Finalmente, a última categoria da cosmovisão afro é a alegria. Não é a simples manifestação de júbilo nem uma emoção. Como o sociólogo escreveu no livro As estratégias sensíveis: afeto, mídia e política, “é a alegria, singular e concreta (e não um abstrato amor universal) que norteia a prática litúrgica da Arkhé negra. […] A alegria é sem pecado, sem perdão e sem submissão”.

Para o nagô africano, a alegria é o mais importante. É alegria tanto com Deus quanto com os orixás, e se manifesta na dança, na palavra, no canto, nas interpelações e também na sexualidade, nas obrigações e rituais, na relação com a terra, com a natureza e com a comunidade. A liturgia aqui não se trata de religiosidade, mas de visão de mundo, de uma ética e de uma filosofia.

Questionar a ciência ocidental para reconhecer a epistemologia africana

Diante das contribuições ancestrais dos povos africanos, é de se perguntar por que razão seus pensamentos e perspectivas foram e ainda são desconsiderados e desqualificados pela ciência. Isso se deve à visão ocidental, que só aceita como conhecimento o que pode ser explicado ou provado dentro de um sistema específico, rejeitando qualquer observação que não se encaixe nesse critério. 

A ciência ocidental, que busca ser universal e se baseia na razão, não reconhece as explicações de fenômenos fornecidas por culturas não ocidentais, impedindo o reconhecimento de suas contribuições para o desenvolvimento humano, conforme escreveu Brito em um ensaio sobre a história da ciência e a educação científica pelas perspectivas ameríndia e amefricana, citando o filósofo beninense Paulin Hountondji.

“Trazer a presença da contribuição africana para a humanidade implica o reconhecimento de uma anterioridade africana, de uma presença estruturante da África nas tradições culturais humanas como um todo que depois se irradiou para outras partes”, salienta José Rivair. “É evidente que nessas outras partes do mundo houve adaptações, mas toda a questão das tecnologias, todos esses elementos que a gente chama de processo de evolução humana aconteceram na África. Não quero dizer com isso que sejam africanas, mas aconteceram lá”.

Diante do longo processo de colonização, uma das estratégias para superá-lo é a educação, instrumento necessário para discutir, refletir e procurar soluções para transformar. Alan destaca que a forma como ensinamos e divulgamos as ciências, principalmente as ciências físicas, e as escolhas que são feitas (teóricas, metodológicas e epistemológicas), não são neutras. “Historicamente, no Brasil, elas têm deixado de lado as contribuições de povos que são parte importante para a nossa construção como país, como povos indígenas e negros. Nesse sentido, o racismo epistêmico (e a injustiça atrelada a ele), o apagamento e o silenciamento de outras formas de ser, saber, conhecer e fazer, são evidentes, fomentados por instituições científicas, escolares e de promoção da cultura científica em todos os níveis”, completa.

Na perspectiva africana de mundo, não há sujeito e objeto separados como há no saber sistematizado filosófico do mundo ocidental: ao contrário, sua visão é inclusiva, comunitária, rica em significados e contribuições que fizeram o continente africano desempenhar um papel essencial na ciência global. Sua episteme evidencia que as ciências, os seres humanos, não humanos e inclusive o terreno do mágico são parte de um todo complexo e interligado ao mundo, ou melhor, o mundo está contido no ser humano — como escreveu Sodré em Pensar Nagô —, e todo o seu pluriverso é parte integrante da filosofia africana.

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