Pastor André Valadão profere discurso caracterizado como incitação ao ódio durante culto

Publicado originalmente em Coletivo Bereia por João Pedro Capobianco e Gabriella Vicente. Para acessar, clique aqui.

* Matéria atualizada às 16:24 para ajuste de texto

No domingo, 2 de julho o pastor da Igreja Batista da Lagoinha em Orlando, nos Estados Unidos, André Valadão discursou, mais uma vez, contra relacionamentos homoafetivos, e alegou o extermínio da humanidade através do dilúvio, descrito na Bíblia, por conta de supostos desvios sexuais. A pregação, que foi transmitida online, gerou grande repercussão negativa nas redes digitais com acusações de crime de homotransfobia, com possível incitação de morte à população LGBTQIA+.

Bereia recebeu de leitores e leitoras pedidos para checagem do ocorrido.

O discurso de André Valadão

No vídeo que viralizou, André Valadão aponta uma associação entre abuso infantil e a normalização de comportamentos supostamente condenados pela Bíblia. “Homens e mulheres nuas, com seus órgãos genitais completamente expostos dançando na frente de crianças. Aí você horroriza. ‘Ah, que absurdo’. Mas essa porta foi aberta quando nós tratamos como normal aquilo que a Bíblia já condena”, disse.

Na pregação, Valadão condena o comportamento homossexual e faz uma associação com a imoralidade sexual, afirmando que esta foi a condição da humanidade que motivou Deus a instaurar o dilúvio. A partir desta alusão, o pastor incita os fiéis a um “reset”, dizendo: “Deus fala: ‘não posso mais, já meti esse arco-íris aí. Se eu pudesse eu matava tudo e começava tudo de novo’”. E continua: “‘então agora está com vocês’. Você não pegou o que que (sic) eu disse. Eu disse, ‘está com você’. Vou falar de novo: ‘está com você’”.

Ao fundo do púlpito de onde o pastor prega havia um telão com a frase “Teoria da Conspiração” e imagens de líderes políticos como Jair Bolsonaro, Donald Trump e Deltan Dallagnol, além de uma bandeira de Israel, o Palácio do Planalto e o edifício do Capitólio, nos Estados Unidos. A pregação faz parte da série ‘Censura Não’ e foi divulgada no perfil do Instagram de Valadão com uma arte publicitária contendo imagens de Hitler e Donald Trump (a postagem não estava mais disponível no perfil do pastor quando esta matéria foi redigida).

Imagem: reprodução O Globo

Reação dos parlamentares 

Políticos religiosos se manifestaram em defesa de André Valadão, entre eles, os deputados federais Nikolas Ferreira (PL-MG) que usou seu discurso para atacar práticas classificadas como “comunistas” de repressão aos cristãos e Pastor Marco Feliciano (PL-SP) que definiu o episódio como uma distorção das falas do pregador evangélico, como ele próprio teria sofrido, em 2013. O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) publicou em seu perfil do Twitter sobre o discurso de André Valadão. “Aos que estavam duvidando… a perseguição chegou dentro das igrejas, é o início do fim do resto que ainda tínhamos de liberdade religiosa”. 

Imagem: reprodução do Twitter

De outro lado, a deputada federal Erika Hilton (Psol-SP) denunciou o pastor ao Ministério Público Federal (MPF), a deputada federal Erika Kokay (PT-DF) afirmou na tribuna da Câmara dos Deputados que “discurso vira bala, discurso vira hematoma, discurso se transforma em óbito” e a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) lembrou a alta posição do Brasil no ranking mundial de mortes de pessoas LGBT. 

Violências sofridas pela população LGBTQIA+

Dados de 2022 do Dossiê de Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil apontam que 228 vítimas LGBT foram assassinadas, 30 cometeram suicídio e  15 morreram por outras causas. No total, 273 pessoas morreram em decorrência do preconceito no país no ano passado, o que equivale a uma pessoa morta a cada 32 horas. 

Segundo a Organização Não Governamental (ONG) que elaborou o relatório Observatório de Mortes e Violências contra LBGTI+, entre 2000 e 2022, mais de cinco mil pessoas morreram por terem esta identidade. De janeiro a abril de 2023 já foram contabilizadas 80 mortes.

Ações do Ministério Público Federal e tentativa de retratação de Valadão

Depois de tomar conhecimento do caso, o Ministério Público Federal (MPF) informou, em 4 de julho, que instaurou procedimento para apurar possível prática de crime de homofobia. A investigação estará a cargo do Procurador Lucas Costa Almeida Dias, responsável pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC), no Acre. Em 6 de julho, o Ministério Público Federal (MPF), em Minas Gerais, solicitou à Justiça a retirada das publicações com discursos de ódio contra a população LGBTQIA+ do pastor André Valadão no YouTube e no Instagram e pede que o pastor pague R$ 5 milhões por danos morais coletivos. 

Constituição Federal determina que qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais deve ser punida com lei. Desde 2019, a homofobia é considerada crime equiparado ao crime de racismo, sendo imprescritível e inafiançável. Os atos homofóbicos podem gerar pena de um a três anos de prisão e multa, mas, quando cometidos por intermédio de meios de comunicação social, a pena de reclusão pode chegar a cinco anos.

Dada a repercussão do caso, o pastor André Valadão publicou um vídeo em seu perfil no Instagram em que se defende das acusações de homofobia e incitação ao extermínio de pessoas LGBTQIA+, afirmando ter usado o termo ‘resetar’ para se referir à “levar o ser humano ao princípio daquela que é a vontade de Deus”. O pastor continuou: “Quando eu digo puxar as cordas cabe a nós levarmos a oportunidade da mudança de viver o amor de Jesus, vivermos a graça de Jesus. Quero dizer mais uma vez, é tempo de resetar”.

Ontem, 10 de julho, André Valadão publicou uma nota oficial sobre o caso. “Repudio qualquer ataque e uso de vi0lênc1a física e verbal a qualquer pessoa por conta de sua orientação sexual” . Também voltou a se explicar sobre os termos usados na pregação: “Ao me referir à história do dilúvio e de Noé, quis lembrar das consequências que o pecado pode ter sobre todos nós. ‘Porque o salário do pecado é a m0rte’, diz Romanos 3:23. Hoje a m0rte é espiritual, é a 0separação completa de Deus. Cabe a nós cuidarmos para que nossos filhos não caiam em armadilhas que os distanciem de Deus. Foi isso o que eu quis dizer sobre ‘resetar’ a máquina’ e recomeçar”.

Histórico de homotransfobia de André Valadão

Não é a primeira vez que o pastor André Valadão e a Igreja da Lagoinha protagonizam polêmicas envolvendo as populações LGBTQIA+. No mês passado, o pastor divulgou nas redes digitais publicações que afirmavam que “Deus odeia o orgulho”, em referência a essa comunidade. No instagram, o perfil da Igreja Lagoinha em Orlando afirma que “a origem do pecado está no orgulho e Deus abomina isso”.

Reportagem da Agência Pública, publicada há três anos, revelou práticas homofóbicas do Centro de Treinamento Ministerial Diante do Trono (CTMDT), um centro de ensino mantido pela Igreja da Lagoinha, em Belo Horizonte. Segundo relatos de uma ex-aluna, teriam ocorrido sessões de exorcismos e terapia com o objetivo de “curar” sua homossexualidade. Os acontecimentos se desenrolaram em 2009 e o CTMDT deixou de existir em 2018, segundo informação da Pública. O site oficial do Centro de Treinamento encontra-se fora do ar e, seu domínio, à venda.

Os relatos dão conta, ainda, de que a ex-aluna foi orientada a procurar uma “clínica” que funcionava em um dos imóveis da Igreja da Lagoinha, para que pudesse deixar de ser homossexual. Desde 1999, uma resolução do Conselho Federal de Psicologia proíbe que psicólogos “proponham tratamento e cura das homossexualidades”.

Nos perfis de André Valadão nas redes digitais, é frequente o tema da homossexualidade. A irmã do pastor e líder da banda Diante do Trono, Ana Paula Valadão, ligada à Igreja da Lagoinha, também já foi alvo de denúncia aceita pelo MPF. O caso se referia a uma fala de 2016, em que a cantora afirmava que a homossexualidade “não é normal” e que “a união sexual entre os dois homens causa uma enfermidade que leva a morte e contamina as mulheres”, em referência à Aids.

Outros pronunciamentos 

O ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania Sílvio Almeida discursou, no dia seguinte à pregação de Valadão, em 3 de julho, durante cerimônia de entrega do Relatório de Recomendações para o Enfrentamento ao Discurso de Ódio e ao Extremismo no Brasil elaborado por um Grupo de Trabalho, para a proposição de políticas públicas em direitos humanos. 

Na ocasião, o ministro afirmou que o ódio é uma mercadoria e fonte de popularidade. “O ódio, portanto, vira fonte de lucros de empresas, e empresas que inclusive é importante ressaltar, que administram as chamadas redes sociais. Sabemos que o ódio, ele engaja, e isso é fundamental para aquilo que chamamos de economia da tensão. Nós sabemos também que o ódio é fundamental para os mercadores da fé. Para os fariseus que, em cima dos púlpitos, manipulando a fé das pessoas, só servem para destilar o seu ódio”. 

Em nota de repúdio divulgada em 4 de julho, O Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic) declarou: “Discursos falsamente religiosos de incitação ao ódio aprofundam a cultura da violência porque negam a humanidade e o direito à existência de pessoas vulnerabilizadas. O Conic se une a todas as pessoas batizadas, de diferentes denominações, que não aceitam a instrumentalização da fé cristã para a promoção da cultura do ódio e incitação ao crime. Jesus, em Mt 22.33-39, nos compromete com o amor, portanto, não há lugar para o ódio e o crime na Boa Nova do Evangelho”.

Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito anunciou que “Repudia as violentas falas do pastor André Valadão contra a população LGBTQIAPN+. Nos solidarizamos aos que sofreram com a agressão e lembramos que a Palavra de Deus, ao contrário do que faz parecer André, é uma mensagem de redenção. O reencontro amoroso entre Deus e toda a humanidade. Homofobia é crime, como observa a Lei. Esperamos que André Valadão não fique impune e que, assim como qualquer outro que cometa crimes e ilegalidades, seja responsabilizado por isso. ‘Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor’. 1 João 4:8”.

Por outro lado, em 6 de julho, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) divulgou em seu site nota pública sobre as acusações contra o discurso de André Valadão. No texto, a associação deu destaque às diferenças entre “a ordem cristã e a ordem do mundo moderno”. A Anajure sustenta que compreendeu como “injustificada a acusação de que este (André Valadão) incorreria na prática de discurso de ódio e incitação ao crime” e “repudia qualquer tentativa de repressão à liberdade religiosa e de expressão do pastor André Valadão”.

Posição hegemônica x teologias inclusivas 

O posicionamento teológico de André Valadão é caracterizado por um discurso tradicional hegemônico das igrejas cristãs que condena historicamente a homossexualidade, diversidade sexual humana e, no mínimo, se abstém diante da  desigualdade de gênero. No entanto, há uma pluralidade teológica no Cristianismo e vertentes inclusivas que lutam contra as idiossincrasias da religião que sedimentam a violência contra mulher, pessoas LGBTQI+ e outras questões inerentes à vida em sociedade. 

A doutora em Teologia e pastora batista Odja Barros prega uma leitura popular e feminista da Bíblia e afirma que o livro sagrado traz a carga de uma cultura patriarcal, machista e limitada no seu tempo e é importante que o leitor se desfaça de uma tradição interpretativa e busque nele a essência da revelação bíblica.

Para o pastor Bob Luiz Botelho, a igreja é uma instituição homofóbica, se for analisada pelo prisma hegemônico, e “muitas pessoas, principalmente muitos dos líderes que estão na mídia, são pessoas violentas intencionalmente”. O doutor em Teologia e estudioso da teologia da libertação e da teologia queer André Musskopf  acredita que o Cristianismo tem a possibilidade de trilhar caminhos libertadores no campo da sexualidade.

Desinformação religiosa como estratégia

site de notícias Pleno News, afirmou em publicação no perfil oficial do portal no Instagram, que o pastor André Valadão “foi alvo de fake news. Críticos do pastor divulgaram que ele havia incitado os fiéis a matarem homossexuais, mas a informação não procede”. 

O portal, autodeclarado conservador e com histórico de desinformação, utilizou linguagem comum à checagem de fatos para buscar disseminar a ideia de que as falas do líder religioso não ocorreram tal como divulgado. No título também foi incluída a notícia de que o pastor se manifestou após as acusações, como evidência de que o site teria verificado os fatos que envolveram André Valadão, contudo, uma retratação ou tentativa de difundir uma interpretação diferente para situações já consolidadas, não configura checagem de fatos. Checar fatos e conteúdos demandam comparação e pesquisa, por meio de amplas fontes.

***

O conteúdo checado é considerado verdadeiro por Bereia. A existência do pronunciamento, alvo desta checagem, feito pelo pastor da Igreja da Lagoinha André Valadão, é coerente com os fatos apurados, sobretudo porque André Valadão se posicionou sobre o caso e em nenhum momento desmentiu que a fala ocorreu.

As atitudes do pastor André Valadão e de outros líderes políticos e religiosos revelam um ciclo cada vez mais comum ao fenômeno da desinformação, em que um discurso polêmico e possivelmente ilegal gera uma forte reação da sociedade, muitas vezes judicializando o caso. Em seguida, o emissor da mensagem divulga um pronunciamento que tenta desmentir as acusações de crime ou discurso de ódio. Por fim, instaura-se um falso enredo de censura e perseguição político-religiosa, apoiado por diversos atores influentes, deste âmbito, nas redes digitais.

Referências da checagem:

Metrópoles

https://www.metropoles.com/celebridades/pastor-volta-atras-apos-discurso-contra-lgbts-nao-e-sobre-matar Acesso em: 5 jul 2023

Estado de Minas

https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2023/07/04/interna_politica,1515915/nikolas-defende-andre-valadao-apos-ataque-a-comunidade-lgbt.shtml Acesso em: 5 jul 2023

Fórum

https://revistaforum.com.br/politica/2023/7/4/marco-feliciano-defende-valado-com-discurso-bizarro-ataca-presidente-lula-canalha-138837.html Acesso em: 6 jul 2023

Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2023/07/5106502-erika-hilton-celebra-investigacao-contra-valadao-lgbtfobia-e-crime.html Acesso em: 6 jul 2023

Twitter

https://twitter.com/erikakokay/status/1676264014467284993?t=rLuBKeE51roRs7lMmHN-fA&s=19 Acesso em: 6 jul 2023

Twitter

https://twitter.com/jandira_feghali/status/1676231637435031552?t=sivkAN1Af9U4qnDCYGb_qQ&s=19 Acesso em: 6 jul 2023

Observatório de Mortes e Violências LGBTI+ no Brasil

https://observatoriomorteseviolenciaslgbtibrasil.org/dossie/mortes-lgbt-2022/ Acesso em: 6 jul 2023

Agência Brasil

https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2023-07/mpf-abre-investigacao-para-apurar-falas-do-pastor-andre-valadao Acesso em: 6 jul 2023

Uol

https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/07/06/valadao-mpf-justica-video.htm Acesso em: 6 jul 2023

Agência Pública

https://apublica.org/2020/12/para-curar-a-homossexualidade-jovem-teria-sido-submetida-a-isolamento-exorcismos-e-terapia-em-seminario-evangelico/?amp Acesso em: 5 jul 2023

Youtube

https://www.youtube.com/watch?v=yfx9yflq3b8 Acesso em: 7 jul 2023

Facebook

https://www.facebook.com/photo/?fbid=593290572933290&set=a.300017738927243 Acesso em: 7 jul 2023

Twitter

https://twitter.com/frentevangelica/status/1676553575722303489?s=19 Acesso em: 7 jul 2023

https://twitter.com/andrevaladao/status/1678513484844212227 Acesso em: 11 jul 2023

Anajure

https://anajure.org.br/anajure-emite-nota-publica-sobre-as-acusacoes-contra-o-discurso-religioso-proferido-por-andre-valadao-em-culto-na-cidade-de-orlando-eua/ Acesso em: 7 jul 2023

Brasil247

https://www.brasil247.com/cultura/odja-barros-a-leitura-machista-da-biblia-e-responsavel-pela-cultura-de-violencia-contra-mulheres-e-lgbts Acesso em: 7 jul 2023

Agência Pública

https://apublica.org/2023/05/ex-praticante-da-cura-gay-pastor-lgbtqia-diz-a-igreja-e-uma-instituicao-homofobica/?utm_source=webstories&utm_medium=botao&utm_campaign=bobluiz Acesso em: 7 jul 2023

Revista Mandrágora

https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/MA/article/viewFile/3519/3323 Acesso em: 7 jul 2023

G1

https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/09/30/homofobia-entenda-situacoes-que-configuram-crime-e-quais-as-penas.ghtml Acesso em: 10 jul 2023

STF 

https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=414010 Acesso em: 10 jul 2023
Constituição Federal https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm Acesso em: 10 jul 2023

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Foto de capa: reprodução do Instagram

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