Paradesporto propicia melhora na qualidade de vida e auxilia a pessoa com deficiência a projetar o futuro

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.

Esporte | Mesmo com coordenação específica para atividades paradesportivas, Porto Alegre ainda carece de espaços acessíveis para pessoas com deficiência. Alternativamente, os praticantes recorrem a instalações em regiões centrais, como a Esefid e o CETE

*Foto: Pietro Scopel/JU

“Eu me sinto grandona, livre e capaz de fazer qualquer coisa.” É assim que Bruna Giacomin, 23 anos, estudante de Educação Física na UFRGS, paratleta medalhista e recordista em sua modalidade do atletismo, se sente ao correr com sua cadeira de rodas rumo aos diversos objetivos que norteiam sua paixão pelo esporte. Ela pratica paradesporto desde os 14 anos, quando sua mãe a levou a um treino de iniciação realizado pela entidade RS Paradesporto. 

Bruna pôde testar diversas categorias esportivas – do basquete à bocha –, mas foi no atletismo que ela “tomou gosto pela coisa”. Outra boa dose de incentivo foi ouvir de sua professora da época que ela tinha jeito para correr. Aí a estudante não parou mais. 

Desde então, Bruna participou de competições importantes em que se destacou por sua velocidade e se consagrou como recordista brasileira nos 800 metros. O paradesporto se tornou parte essencial da sua vida. Para além da prática do esporte em si, a atleta ressalta a importância do que sentiu quando viu tantos outros jovens em cadeiras de rodas no seu primeiro treino – na época tinha 14 anos –, além da sensação extasiante de participar, aos 15, das Paralimpíadas Escolares – maior evento esportivo do mundo para adolescentes com deficiência. “Eu era muito tímida e focada, mas se tratava de um evento com vários adolescentes como eu, então a gente zoava e se divertia. Foi muito bom.”

Hoje em dia, Bruna é estagiária na APABB (Associação de Pais e Amigos de Pessoas com Deficiência dos Funcionários do Banco do Brasil) e atua como educadora física de crianças com deficiência intelectual, tendo inclusive reencontrado sua professora da época em que iniciou no paradesporto, em 2013. Agora ambas atuam juntas na promoção da qualidade de vida de pessoas com deficiência (PcD).


O paradesporto em Porto Alegre

A cidade de Porto Alegre conta com 17 unidades recreativas que propõem oficinas e práticas desportivas para as comunidades locais. A maioria dessas unidades, no entanto, não dispõe de acessibilidade para receber pessoas com deficiência física. Seja pela falta de rampas de acesso ou até mesmo pela dificuldade de chegar ao local por transporte público. A escassez de espaços acessíveis fere o Estatuto da Pessoa com Deficiência, uma vez que é direito assegurado pelo Estado a existência de lugares adaptados e que promovam a realização do paradesporto.

Segundo o Diretor de Esporte e Lazer da Secretaria Municipal de Esporte Lazer e Juventude (SMELJ), Rodrigo Kandrik, há muita cobrança para que haja uma maior oferta de atividades específicas para o público com deficiência, visto que, de acordo com o censo do IBGE de 2010, pessoas com deficiência totalizam 23% da população de Porto Alegre. No entanto, a infraestrutura dos centros esportivos se tornou um empecilho.

Rodrigo ainda conta que, apesar da falta de estrutura nessas unidades, existem iniciativas de paradesporto que tomam lugar na Orla do Guaíba, região central de Porto Alegre, como o projeto “Orla para Todos”. Após ser questionado sobre a dificuldade de acesso por residentes mais afastados do centro, o diretor constata que realmente não é o suficiente para resolver a falta de oferta de espaços pensados para serem acessíveis, o que, portanto, limita o público que tem condições de acessar.

Atualmente a prefeitura, que em 2022 criou a coordenação específica de paradesporto na SMELJ, aposta na parceria com entidades e clubes esportivos privados para a realização de atividades paradesportivas.

Já o governo do estado, por meio do edital “Todos no Jogo”, viabiliza por chamada pública o financiamento de projetos esportivos para pessoas com deficiência e a ocupação de ginásios estaduais.

Associações como APABB, RS Paradesporto e Esporte+ utilizam espaços públicos e privados com a finalidade de suprir a demanda por atividades adaptadas oportunizadas por profissionais qualificados, como Fabiane Dorneles, psicomotricista, educadora física graduada pela UFRGS e ex-professora de Bruna.

Atuando principalmente com crianças com deficiência intelectual, Fabiane ressalta a importância de permitir que o paratleta possa exercer sua autonomia e independência quando pratica alguma atividade em específico. Reconhecer as particularidades de cada indivíduo permite que as adaptações necessárias para a plena prática do desporto sejam possíveis, mas não significa que isso conceda ao instrutor o poder sobre o corpo do outro. “Nunca fazer pelo atleta! Se necessário nós demonstramos novamente, mas é muito violento e limitante você tirar a bola da mão de alguém para mostrar o exercício. Isso inclusive tem nome: capacitismo”, salienta.

A psicomotricista ainda acrescenta que é preciso ir além do “estereótipo da superação”, uma vez que mistifica a vivência dos paratletas.

Ninguém está se superando, a deficiência não é um problema a ser superado. Nós estamos fazendo atividades esportivas – assim como qualquer outra pessoa tem o direito de poder estar em espaços públicos convivendo e exercendo a inclusão social pelo esporte

Fabiane Dorneles

A adaptação das atividades acontece no sentido de promover equidade para os atletas. No arremesso, por exemplo, o peso é substituído por uma pelota mais parecida com uma bola de beisebol e permite que a realização do exercício seja satisfatória. A deficiência do atleta, então, não determina a sua dificuldade, mas, sim, a forma alternativa com que o esporte deverá ser desenvolvido. 

Fabiane é uma entre os diversos profissionais que atuam no CETE (Centro Estadual de Treinamento Esportivo), localizado no bairro Menino Deus. No extenso campo de 565 metros são realizadas as modalidades de atletismo, bocha e futsal paralímpicos, e é também onde as mães acompanham com determinação seus filhos nos treinos.

Muitas vezes o deslocamento é exaustivo, tanto para a mãe quanto para o atleta, que em muitos casos precisam pegar mais de uma condução, pois no seu bairro não existem iniciativas que contemplem o paradesporto. Todo esse empenho se dá por conta dos benefícios da prática esportiva para as crianças e do alívio para aqueles que sofrem com a falta de preparo de professores de educação física nas escolas. As mães das crianças da APABB, que participam das atividades no CETE, relatam que a socialização dos filhos com outras crianças mudou significativamente para melhor depois do início dos treinos.

Projeto de extensão proporciona treino qualificado para PcD na Esefid

“Vai, vai, vai” é o que mais se ouve durante o aquecimento para os treinos que acontecem no ginásio poliesportivo da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança (Esefid). Na voz de quem anuncia, se traduz um misto de empolgação para chegar sua vez de tentar achar a tampinha embaixo do cone com o espírito competitivo que paira naturalmente sobre esses dedicados paratletas.


O projeto de extensão universitária Escola de Esportes Adaptados e Paralímpicos foi criado em 2019 pela professora do curso de Educação Física Aline Strapasson e, posteriormente, em 2020, passou a contar com a vice-coordenação da professora Marília Bandeira. Tem como principais objetivos viabilizar a prática esportiva direcionada a pessoas com deficiência, bem como promover a capacitação dos futuros educadores físicos para a realização de treinos paradesportivos.

Treinos ocorrem três vezes por semana no Câmpus Olímpico (Foto: Pietro Scopel/JU)

O parabadminton foi escolhido como a modalidade predominante, pois os equipamentos, que são muito caros, já estavam disponíveis em função da experiência prévia da coordenadora Aline com o esporte.

As atividades são elaboradas por professores e monitores de forma que possam ser ministradas de maneira lúdica e inclusiva para crianças com deficiência física e intelectual. O uso de balões e a delimitação do espaço com cones são estratégias para proporcionar melhor orientação em quadra e diminuir a chance de os atletas se frustrarem por dificuldades de realizar o exercício.

Além de visar à qualidade de vida a partir do estímulo do movimento, o projeto extensionista também se propõe a realizar treinos de alto desempenho, e já foi responsável por alavancar a carreira paralímpica de diversos alunos.

Prática de parabadminton com substituição da peteca pelo balão (Foto: Pietro Scopel/JU)

É o caso da Laura Fernandes da Fontoura, de 16 anos, atleta da modalidade de parabadminton que já competiu e ganhou prata nas Paralimpíadas Escolares em 2021, além do bronze no Campeonato Pan Americano de Parabadminton em 2022 na Colômbia.

O desempenho de Laura e a vontade de seguir o treino de alto rendimento possibilitaram que ela fosse atendida pelo programa Bolsa Atleta, o que surgiu como um alívio, pois antes os custos de inscrições, alimentação, passagens e equipamentos saíam do bolso de sua família, de contribuições da coordenação do projeto e arrecadações feitas pela internet. A atleta já teve que abdicar de participar do Campeonato Internacional de Parabadminton na Espanha em decorrência do preço das passagens.

Laura praticou várias modalidades esportivas convencionais, mas depois de descobrir o paradesporto, através do seu professor de luta na época, ela ressalta entusiasmada que se encontrou no parabadminton e que deseja seguir carreira no esporte com a determinação focada para os Jogos Paralímpicos de 2026.

Laura e Lucas guardando as petecas Foto: Pietro Scopel/JU

Outro exemplo de atleta de alto rendimento em início de carreira é o de Lucas Alves, de 13 anos, que descobriu o parabadminton uma semana depois de iniciar um tratamento fisioterapêutico na Esefid em decorrência de uma paralisia cerebral que o acometeu na infância. Lucas viaja três vezes por semana com sua mãe e irmão cerca de 95km desde o munícipio de Minas do Leão até o Câmpus Olímpico. Às quartas-feiras, ele deixa de ir à aula de educação física na escola, pois é excluído em função de seu professor “ter medo que ele se machuque”, e em lugar disso vai até a Esefid praticar com os colegas e monitores.

Lucas foi classificado para as Olímpiadas Escolares em 2023 e ficou em terceiro lugar. Recentemente seu irmão, Kelvin Alves, de 15 anos, que está no espectro autista, se juntou ao irmão nos treinos e exclama o nome da equipe: “Os Alves”.

Os irmãos Lucas e Kelvin Alves após partida em que jogaram juntos (Foto: Pietro Scopel/JU)
Entre recordes quebrados e futuros a serem construídos

O ano de 2024 foi um marco para o esporte paralímpico brasileiro. Nossos paratletas quebraram o recorde anterior, conquistando 89 medalhas no total, o que garantiu a quinta colocação no quadro geral. Também foi o ano que levou às Paralímpiadas o maior número de paratletas beneficiados pelo Bolsa Atleta, totalizando 98% do total.

Outro recorde nacional quebrado foi o do paratleta Reinaldo Charão, de 47 anos, que superou seu próprio recorde no tiro com arco e atingiu a marca de 685 pontos somados, o que garantiu para o Brasil a quinta colocação na modalidade.

Vindo de Uruguaiana para morar em Canoas e trabalhar no Tribunal de Contas em Porto Alegre, Charão começou a praticar basquete em cadeira de rodas aos 39 anos por meio da associação RS Paradesporto. O servidor público, no entanto, queria mesmo era o tiro com arco após assistir a Pira Olímpica dos jogos de 1992 ser acesa pela flecha do arqueiro paralímpico Antonio Rebollo.

Entre encontrar um local extenso, inevitável ao praticar o tiro com arco, e ao mesmo tempo acessível para se locomover com a cadeira de rodas, Charão encontrou uma solução.

Eu achei uma praça abandonada do lado do condomínio onde moro e fiz ali um campo de tiro com arco para mim. Não era 100% acessível, mas consegui um espaço onde eu pelo menos poderia praticar o tiro com arco com segurança. Depois fiz uma adaptação na minha cadeira de rodas e coloquei uma terceira roda maior na frente para poder andar no piso desnivelado

Reinaldo Charão

A praça foi, com o tempo, retomada pela prefeitura e se tornou uma escola pública. Charão perdeu, assim, seu principal local de treinamento logo após ter se tornado Campeão Brasileiro Paralímpico no Tiro com Arco em 2021 e enquanto se encaminhava para o mundial em 2022. Após alegar à prefeitura que ele seria convocado para a seleção brasileira e que precisaria de um espaço para treinar, finalmente lhe foi concedido o Centro Esportivo São Luís, que estava abandonado, mas que se tornaria centro referência em paradesporto após a chegada de Charão.

Atualmente, Reinaldo integra o projeto Dispara Canoas, que, associado ao RS Paradesporto, funciona como um recrutador de possíveis paratletas. A iniciativa abriu novas possibilidades de investimentos ao se filiar ao Comitê Brasileiro de Clubes Paralímpicos e também renovou perspectivas para o futuro: “Veio a questão da enchente e quebrou a rotina de organização da associação. Mesmo assim a RS Paradesporto enviou dois atletas às Paralimpíadas, o que é histórico. E ainda vamos conseguir fomento ano que vem para participar dos campeonatos por estarmos filiados ao Comitê Brasileiro. Nós estamos com sete alunos, quem sabe não são futuros arqueiros profissionais?”, empolga-se.

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