Para repensar a infraestrutura urbana

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.

Artigo | Ana Lúcia Dreyer, Bruna Dias, Graziela Rubin, Paulo Loge, Sara Marostica, Valéria Yonegura e André da Silveira elencam soluções de adaptação contra inundações já implantadas em cidades ao redor do mundo

*Foto: Marcelo Pires/JU

Um alerta que a comunidade acadêmica ligada às áreas de urbanismo, engenharias e ciências naturais vem fazendo há décadas – de que os impactos das ações humanas sem controle, projeto e planejamento para adequadas compensações ambientais podem incrementar o volume, a frequência e a intensidade das catástrofes climáticas – deixou de ser um aviso para tornar-se, infelizmente, uma fotografia da atualidade. O desastre climático ocorrido no mês de maio de 2024 no Rio Grande do Sul é um exemplo de como essas questões devem ser não apenas retomadas como comunicadas de forma a educar e conscientizar a população sobre atos e escolhas.

Os riscos climáticos resultantes do aumento da frequência dos fenômenos meteorológicos extremos exigem medidas urgentes de adaptação no sentido de aumentar a resiliência a inundações, deslizamentos de terra, erosões e calor extremo no ambiente urbano. Partindo desse princípio, técnicas de desenvolvimento de baixo impacto (LID) podem auxiliar na implantação de ambientes construídos, na forma de verde urbano funcional, e, assim, podem efetivamente reduzir os riscos de desastres, diz Sara Marostica. Convém explanar também que as infraestruturas verde e azul (TVA) e de cidades esponjas podem servir como sistemas integrados com drenagem sustentável que busque otimizar a resiliência contra o risco de inundações nas cidades.

Mas, afinal, qual o problema da drenagem tradicional utilizada em larga escala em nossas cidades: dutos, bocas de lobo, diques construídos e outros sistemas? Por que ela não dá conta do recado?

A drenagem urbana nas bacias hidrográficas das cidades brasileiras foi intensamente influenciada pelo Movimento Higienista, também conhecido como sanitarismo, difundido por médicos no final do século XIX na Europa com o objetivo de erradicar as origens das epidemias tão recorrentes nas cidades durante a Revolução Industrial. Os higienistas defendiam que a circulação do ar e das águas deveria dar-se o mais rápido possível a fim de evitar a proliferação de doenças. Esses cientistas aliaram-se aos engenheiros que promoveram intervenções urbanísticas através da drenagem de corpos d’água, canalização e retificação de arroios. Tais obras passaram a receber boa parte dos esgotos domésticos, na época sem qualquer tipo de tratamento. 

Esse movimento chegou ao Brasil no final do século XIX e início do século XX pela implantação das primeiras canalizações de esgoto no Rio de Janeiro em 1864 – ampliada na administração de Pereira Passos (1902-1905), que proporcionou vacinação pública, novos regulamentos, o registro do controle de doenças e a reciclagem de locais insalubres. De acordo com Lopes, o movimento se difundiu para outros estados brasileiros e alcançou o Rio Grande do Sul através das obras de remodelação urbana do engenheiro Saturnino de Brito, cujos princípios também estão presentes no Plano Geral de Melhoramentos de Porto Alegre de 1914, que influenciou na retificação do arroio Dilúvio.

A prática higienista, ainda presente na engenharia brasileira, cujo conceito básico é o escoamento rápido das águas pluviais no menor intervalo de tempo, tem se mostrado inadequada no contexto atual do urbanismo brasileiro e na cidade de Porto Alegre.

A ocupação e impermeabilização do solo nas áreas de amortecimento, associados a assoreamento, poluição, entre outros fatores, faz com que essa velocidade dificulte a vazão à jusante e impeça a adequada infiltração e recarga de aquíferos nas bacias hidrográficas. Essa dinâmica é ainda mais agravada pelo desequilíbrio atual dos regimes de chuvas, provocando grandes alagamentos e ocasionando grandes prejuízos principalmente para as populações vulneráveis, diz Loge. Além, claro, do agravante de que as decisões urbanas passam por inúmeros interesses econômicos e políticos, impossíveis de serem esgotados aqui.

E, sim, existem estratégias de planejamento da infraestrutura urbana que combinam a implantação da cidade aliada aos aspectos naturais locais, minimizando impactos das construções, através das já citadas técnicas de desenvolvimento de baixo impacto (LID). Dentre tais estratégias, podemos citar as chamadas “cidades esponjas” e os sistemas de “trama verde e azul”, que procuram replicar as funções naturais do meio ambiente incorporadas ao meio urbano, com finalidade de diminuição dos impactos.

São técnicas de planejamento advindas de países europeus e asiáticos, os quais, por terem limitações em seu território e já expertise em eventos extremos, as utilizam como parceiras fundamentais das infraestruturas tradicionais. Resultam, portanto, em cidades com ambientes mais seguros e preparados para enfrentamento de crises.

As cidades esponjas representam um conceito inovador na área de planejamento urbano, projetado para mitigar os impactos das enchentes e melhorar a gestão de recursos hídricos nas áreas urbanas. Inspirada pela capacidade das “esponjas” de absorver e reter água, essa estratégia incorpora elementos naturais e artificiais que permitem uma melhor infiltração, armazenamento e drenagem da água da chuva.

Os projetos visam construir resiliência em cidades que enfrentam aumento do nível de suas águas, secas, inundações e tempestades de pluviosidade rápida e extrema. Entre as principais características das cidades esponjas estão ferramentas de maior escala, como wetlands, áreas verdes com capacidade de armazenamento e absorção das águas, biovaletas e restauração de corpos d’água naturais, e outras de menor escala, como os telhados verdes, jardins de chuva e pavimentos permeáveis. 

Um exemplo notável de cidade esponja é o projeto implementado em várias cidades da China, incluindo Wuhan e Tianjin. Em Wuhan foram criados parques urbanos que atuam como reservatórios naturais, além de instalar pavimentos permeáveis e aumentar a cobertura vegetal. Em Tianjin, a transformação de antigas zonas industriais em áreas verdes com lagos e canais contribuiu significativamente para a redução de inundações e a melhoria da qualidade da água.

Outra referência importante é Rotterdam na Holanda, onde medidas para aumentar a resiliência às chuvas intensas incluem a criação de parques jardins que podem se transformar temporariamente em bacias de retenção de água. O projeto prevê também ruas projetadas para direcionar a água para áreas de retenção, evitando inundações nas áreas mais baixas da cidade.

Em adição, a Trama Verde e Azul (TVA) também trabalha o conceito que integra elementos naturais e sistemas construídos para melhorar a resiliência das cidades. Essa rede interconecta os sistemas de infraestrutura urbana compostos pelas redes azuis (sistemas aquíferos), redes verdes (sistemas bióticos de fauna e flora) em apoio às redes cinzas tradicionais com intuito de atuar na paisagem para aumento da potencialidade da resiliência dos meios naturais e sociais.

Os benefícios da aplicação das estratégias da TVA incluem: melhoria da qualidade do ar; minimização do efeito “ilha de calor”; melhoria da qualidade das comunidades; diminuição da vulnerabilidade social; maior acesso a espaços verdes pela população; e aumento da conectividade paisagística, resultando em maior biodiversidade. 

A trama verde-azul visa mitigar os impactos das mudanças climáticas, como enchentes e ilhas de calor, e fortalecer a sustentabilidade urbana. Dessa forma, pode-se citar um exemplo de aplicação em Singapura. O Projeto Bishan-Ang Mo Kio transformou um canal de concreto em um rio renaturalizado rodeado por áreas verdes. No que diz respeito ao tratamento das extremidades receptoras de fluxo de água, o espaço aberto acima dos canais também tornou-se um espaço no qual as técnicas de desenvolvimento de baixo impacto podem ser instaladas antes de entrar nos canais, segundo Marostica. Este projeto não só melhorou a capacidade de retenção de água do local, mas também criou um espaço com maior biodiversidade e qualidade ambiental.

Para Rubin, outro exemplo é o do Macrozoneamento da Rede Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), pioneiro na implementação do conceito de Trama verde azul no Brasil, sendo adotado de forma clara e institucionalizada. É composto de eixos integradores: acessibilidade, urbanidade, segurança e sustentabilidade, atuando nas dimensões físico-ambiental, sociocultural, seguridade socioambiental e mobilidade. Sua proposta inovadora mostra que é possível conciliar planejamento de cidade e meio ambiente.

No caso de Porto Alegre e região metropolitana, dada a complexidade e abrangência não só territorial, mas também de diferentes ecossistemas, comunidades de habitantes e usos do solo, não seria possível elencar estratégias definitivas para a mitigação e solução dos problemas atuais. Mas podemos citar componentes que seriam, a priori, adequados à região da orla do Lago Guaíba, bem como margens de rios e lagos, como os exemplos citados relacionados ao conceito de cidades esponjas, a Trama verde azul (TVA) e as técnicas de desenvolvimento de baixo impacto (LID), que podem ser adaptados a diferentes contextos dentro da cidades, promovendo sustentabilidade e a resiliência climática nos dias atuais.

Por fim, podemos dizer que as cidades esponjas e a trama verde-azul são soluções eficazes para mitigar inundações, como as ocorridas no Rio Grande do Sul. Integrando vegetação urbana, telhados verdes, pavimentos permeáveis e a restauração de corpos d’água, e outras tantas alternativas, melhora-se a absorção e o gerenciamento de águas pluviais. Esses modelos podem transformar áreas urbanas vulneráveis em espaços resilientes capazes de enfrentar eventos climáticos extremos, reduzindo os danos causados pelas enchentes. A adoção dessas práticas em cidades brasileiras é essencial para promover a sustentabilidade, proteger comunidades e garantir uma melhor qualidade de vida para a população.


Ana Lúcia Richter Dreyer é arquiteta e urbanista, mestra em Planejamento Urbano e Regional (PROPUR/UFRGS) e atualmente chefia a seção técnica do Setor de Patrimônio Histórico da UFRGS.
Bruna Luz Dias é arquiteta e urbanista, mestranda em Planejamento Urbano e Regional (PROPUR/UFRGS).
Graziela Rossatto Rubin é arquiteta e urbanista, mestra em Geografia e doutora em Planejamento Urbano e Regional (PROPUR/UFRGS).
Paulo Lima Loge é arquiteto e urbanista, mestre e doutorando em Planejamento Urbano e Regional (PROPUR/UFRGS) e coordenador de projetos na Prefeitura Municipal de Porto Alegre.
Sara Desiree Marostica é arquiteta e urbanista, especializada em Planejamento Urbano Sustentável, mestra e doutoranda em Planejamento Urbano Regional (PROPUR/UFRGS).
Valéria Borges Yonegura é arquiteta e urbanista, especialista em Planejamento Ambiental, mestra em Geografia e doutoranda em Planejamento Urbano e Regional (PROPUR/UFRGS).
André Luiz Lopes da Silveira é professor titular da UFRGS, coordenador do Programa de Pós-graduação em Gestão e Regulação de Recursos Hídricos (PROFÁGUA/UFRGS/IPH), professor orientador do PPGRHSA-IPH, do PROPUR/ UFRGS. Professor de Hidrologia da Engenharia Civil/UFRGS.

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