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Artigo | A partir de dados coletados na Universidade, Wagner Machado da Silva, doutor em Comunicação, expõe a pouca diversidade do corpo docente e examina as consequências disso nas políticas e atividades da instituição
*Por Wagner Machado da Silva
*Ilustração: Katherine Avila/ Programa de Extensão Histórias e Práticas Artísticas, DAV-IA/UFRGS
Quantos professores negros você teve durante a graduação, curso de extensão, especialização, mestrado ou doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul? Se você contabilizou apenas com uma mão e sobraram dedos, saiba que foi justamente esse sentimento que motivou a pesquisa: Onde estão os docentes pretos e pardos da UFRGS ?. Enquanto negro e pesquisador, sem receio de relativizar, compreendo que a pouca presença desses servidores na sexta melhor instituição de ensino superior da América Latina é reflexo do racismo institucional e estrutural.
Embora tenha iniciado uma graduação na UFRGS, minha formação foi em grande parte realizada em universidade privada, instituição na qual a docência também é uma profissão exercida majoritariamente por pessoas brancas. Tive uma professora preta ao longo de toda a trajetória acadêmica. Ao fazer, informalmente, um censo étnico na UFRGS, instituição em que atuo como técnico administrativo desde 2016, constatei que, dos 2.852 professores efetivos, apenas 53 se consideram negros, o que corresponde ao ínfimo percentual de 1,85%. Baseado no cadastro na plataforma SouGov, na UFRGS, ao todo, existem 5.467 profissionais, destes 384 são pardos e 256 pretos, totalizando 640 estatutários negros (11,7%). Não há, porém, distinção entre professores e técnicos. Cabe ressaltar que a Superintendência de Gestão de Pessoas não possui dados atualizados sobre essa temática. Diante disso, e respeitando a autodeclaração, foi necessário recorrer às direções de todas as unidades acadêmicas para que perguntassem, via e-mail, sem recorte de gênero, quais docentes se identificam como pretos ou pardos.
Dados do último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) demonstram que o Rio Grande do Sul é o segundo estado do Brasil com a maior população branca. A percentagem de pretos e pardos autodeclarados chega a 21%, mas essa quantidade não é vista entre os docentes das universidades, tampouco em outras esferas de poder da sociedade. Se o comparativo for nacional, considerando que a UFRGS é uma instituição federal, o abismo da representatividade é ainda maior, já que 56,1% da população brasileira é negra.
Mas qual é o prejuízo de ter poucos negros ministrando aulas, conduzindo pesquisas, realizando atividades de extensão ou atuando na gestão da maior universidade pública do RS? Há muitos problemas, pois, atualmente, segundo o Painel de Dados da UFRGS, somente na graduação há 34.247 discentes vinculados; na pós-graduação, são 15.536 alunos que circulam pelos diversos câmpus de Porto Alegre e do Litoral, fora os outros vínculos possíveis. Em razão da invisibilidade dos negros na docência, muitas vezes, os conteúdos são apresentados a partir do repertório eurocêntrico e embranquecido, geralmente com pouca referência bibliográfica negra e indígena. Embora muitos docentes sejam aliados na luta antirracista, a experiência de ter uma pessoa semelhante conduzindo uma disciplina, falando a partir de situações comuns, é mais possível de ser vivenciada com a presença de um professor preto ou pardo.
Há um entrave histórico que distancia a população preta desta universidade quase nonagenária, ainda que, na graduação, com as ações afirmativas, esse panorama esteja se modificando e, na pós-graduação, desde este ano, as cotas são obrigatórias para todos os cursos de mestrado e doutorado.
Para entender as razões, basta compreender que, tão logo o povo negro conseguiu ser libertado da escravização, foi conduzido às periferias da sociedade, impulsionando o processo de marginalização que hoje resulta nos graves índices do país. Após 400 anos de tortura e desumanização, ainda temos mais chances de sermos assassinados; somos maioria no sistema carcerário, temos remuneração menor e menos acesso a serviços de saúde e educação que os brancos. Não foi à toa que as políticas eugenistas, que tentaram embranquecer a população com intuito de minimizar a presença negra no país, também contribuíram para a invisibilidade na educação básica e no ensino superior. O resultado é o racismo estrutural – termo usado por Silvio Almeida para descrever sociedades alicerçadas no privilégio de algumas raças em detrimento das outras.
Kabengele Munanga declarou que alguns professores, por falta de preparo ou por preconceitos neles introjetados, não sabem lançar mão das situações flagrantes de discriminação no espaço escolar e na sala de aula como momento pedagógico privilegiado para discutir a diversidade e conscientizar seus alunos sobre a importância e a riqueza que ela traz à nossa cultura e à nossa identidade nacional.
E isso também pode ser uma prática comum nos 100 cursos de graduação ofertados nos câmpus Centro, Vale, Olímpico, Saúde e Litoral Norte, onde, em razão da falta de representatividade docente, a cultura, os padrões estéticos, bibliográficos e as práticas pedagógicas seguem sendo reproduzidas sem a diversidade necessária. Tais situações poderiam ser alteradas se a demanda por políticas antirracistas estimulasse os gestores a reformular currículos e incluir mais negros no corpo docente das universidades gaúchas. Contudo, na instância máxima de decisão, o Conselho da Universidade, também é quase nula a presença de professores negros.
A implantação das reservas de vagas nos concursos, assim como na pós-graduação, onde são titulados os doutores, é um importante e tardio passo, mas que precisa se consolidar para trazer resultados efetivos, pois, no que tange aos certames para professor adjunto, a regra da divisão das vagas é de difícil compreensão mesmo com auxílio do edital.
Como nos ensina Nilma Gomes, a presença de corpos negros em lugares do conhecimento, de forma horizontal e não hierarquizada como comumente é visto no Brasil em razão das desigualdades raciais, muda radicalmente o ambiente universitário. Torna-se, então, urgente terminar com o epistemicídio acadêmico, que resulta na anulação, desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, inferiorização intelectual e deslegitimação do negro. O racismo institucional ocorre com o estabelecimento de parâmetros discriminatórios baseados na raça, que servem para manter a hegemonia de um grupo racial no poder. Em resumo: quanto mais a pele de um profissional for clara, maior a tendência de ascensão.
Por tudo isso, é tempo de efetivar as cotas, descolonizar o ensino, ampliar a educação antirracista, promover a diversidade nos cargos de comando e, sobretudo, parar de negar a existência do racismo e usar a branquitude como fator de mudança. Minimizar os efeitos do preconceito e da discriminação é um desserviço à sociedade, uma vez que o negro quase sempre esteve associado a uma narrativa de marginalização por conta da escravização e da subalternização.
Wagner Machado da Silva é jornalista e doutor em Comunicação, servidor do Núcleo de Comunicação da Faculdade de Educação (Faced).