“O WhatsApp é um novo jeito de ir à Igreja”, dizem pesquisadoras

Publicado originalmente em Agência Lupa com colaboração de Coletivo Bereia e texto de Victor Terra. Para acessar, clique aqui.

Nesta edição, a cientista política Ana Carolina Evangelista e a jornalista e professora Magali Cunha falam sobre os evangélicos nas eleições e para além delas. Chamam atenção para a invisibilidade e pluralidade desses grupos, comentam estratégias de disputa do voto feminino evangélico e analisam os impactos das mídias nos novos modos de se relacionar com a política e com a fé.  


A pouco mais de uma semana para o primeiro turno, 80% dos eleitores já decidiram em quem votar para presidente, aponta pesquisa divulgada pelo Ipec na segunda-feira, 19 de setembro. Entre os 20% dos indecisos estão – em percentuais altos – as mulheres evangélicas, cujo voto ainda está em disputa entre Bolsonaro e Lula e que, segundo especialistas, pode decretar os rumos das eleições.

Se as pesquisas recentes mostram o apoio massivo e estável dos homens evangélicos ao atual presidente, o mesmo não acontece entre as mulheres, que correspondem a 60% dos evangélicos no país. Há certo descontentamento e uma redução na aderência desse grupo  a Bolsonaro, se compararmos a 2018. Ainda assim, a tendência é que mulheres evangélicas continuem priorizando candidaturas voltadas à defesa de valores cristãos e à família tradicional – como é o caso do atual presidente. 

Mas, afinal, quem são os evangélicos e evangélicas do Brasil? O que representam no Brasil atual – política e socialmente? E por que devemos considerá-los para além do contexto eleitoral? “Infelizmente nós, a imprensa e a sociedade de modo mais geral, temos falado mais profundamente sobre os evangélicos apenas em momentos eleitorais, apenas a partir da oscilação de números de intenção de voto”, diz Ana Carolina Evangelista.

A falta de interesse e atenção implica em leituras genéricas e superficiais sobre os evangélicos até hoje. Seu protagonismo, no entanto, não para de crescer. 30% da população do Brasil são evangélicas. A compreensão das práticas, comportamentos e demandas dos diferentes grupos e correntes evangélicas  é urgente, não apenas do ponto de vista político e eleitoral, mas também em termos sociais no que diz respeito, por exemplo, ao combate à desinformação. 

Pesquisas mostram que a circulação de conteúdos desinformativos têm aumentado, tanto nos espaços físicos das igrejas evangélicas, quanto nos ambientes virtuais, de redes sociais e grupos de conversa fechados em aplicativos, como WhatsApp e Telegram. 

Mas como enfrentar a desinformação em espaços dominados por vínculos afetivos, muitas vezes dogmáticos, como esses? A resposta é objetiva, mas não simples: escutar. 

Pesquisa realizada pela UFRJ em 2019 recorreu a grupos de diálogo para tentar extrair dali percepções reais sobre a relação dos evangélicos com as mídias, com a circulação de desinformação e sobre possíveis estratégias de enfrentamento do problema. “O objetivo era possibilitar que os participantes conversassem e pudessem falar e se escutar entre si. 

Entre as várias constatações que a pesquisa revela, uma surpreendeu: o Whatsapp seria um novo jeito de ir à Igreja. “As pessoas têm o WhastApp como um complemento daquele momento em que elas vão presencialmente no culto, na reunião de oração, para receber conteúdo do pastor e dos companheiros da Igreja, orar, receber aconselhamento. Se o WhatsApp é um novo ’ir a Igreja’, como aprender com isso, como entender esses mecanismos? Precisamos estar abertos”, argumenta Magali Cunha, que participou do estudo. 

Evangélicos e a desinformação

A presença dos religiosos, das religiões e do religioso nas mídias é mais forte do que nunca e tem provocado mudanças – não necessariamente positivas – no papel dos pastores e das lideranças dentro das Igrejas. “Por um lado, eles continuam a ser autoridade para os evangélicos”. Vale lembrar que a circulação de desinformação também vem dos pastores, porque o que dizem e reproduzem nas redes carrega certa credibilidade na visão dos fiéis, mesmo quando conteúdo é falso. 

Assim como aconteceu com a ciência, no âmbito da religião o consumo de informação a partir das redes sociais e aplicativos de mensagens, produziu uma relativização da autoridade, que passou a ser exercida por outros atores midiáticos que não apenas o pastor. É o caso de cantores gospel, podcasters e youtubers, celebridades e parlamentares evangélicos. “As igrejas perderam o controle do sagrado e do conteúdo que circula. O conteúdo vem de todos os lados e não apenas do líder”, explica Magali Cunha.

A pesquisadora lembra que diante desse cenário, se torna cada vez mais necessário fornecer ferramentas para um consumo consciente e crítico dos conteúdos. Esse é o principal objetivo da educação midiática e, segundo Magali, já tem surtido efeitos na sociedade durante o período eleitoral. “Pessoas estão mais atentas aos conteúdos falsos”, garante. 

Preconceito histórico 

 Historicamente, ainda há no Brasil uma visão de que a cultura evangélica se fortalece e cresce sempre nos ‘espaços das ausências’, afirma Evangelista. “Socialmente, ainda se entende que onde não tem Estado, onde há carências, opta-se por ser evangélico. Uma visão de que ser evangélico é algo menor, menos informado, uma escolha religiosa que se dá pela falta de opção e pela ignorância”, comenta a pesquisadora. 

“O Brasil são também os evangélicos, que são cerca de 30% da população brasileira. A gente até hoje não cobre histórias do que é ser evangélico no Brasil sem ser nos períodos eleitorais. Ouvimos pouco falar da história de mulheres, homens, famílias e jovens que escolhem ser evangélicos na sua juventude, não pela falta, pela carência ou pela ausência, mas por vontade própria”, alerta a cientista política. 

Nos últimos quatro anos, porém, a atenção e o interesse pelos evangélicos cresceu. Desde 2018, as pesquisas científicas sobre o tema quase dobraram, segundo dados da plataforma Capes. Aumentou também o número de matérias e coberturas jornalísticas sobre esses grupos – e não apenas com tom negativo. No governo Bolsonaro, o protagonismo dos evangélicos levou jornalistas e pesquisadores a perceberam a necessidade de ampliar a visão sobre esses grupos. “Melhoramos, mas ainda não é o suficiente”, avalia Magali. 

Voto evangélico 

Um dos exemplos de possível generalização é a expressão ‘voto evangélico’, que se consolidou durante as últimas coberturas jornalísticas eleitorais. Mas afinal, é razoável falar em “voto evangélico”? 

“A gente não deve entender o voto evangélico como algo monolítico, mas nos últimos tempos temos observado um pouco essa tendência. Só precisamos explicar com certo cuidado”, argumenta Evangelista. Segundo ela, há elementos comuns que alinham os diferentes blocos evangélicos na hora de encarar a urna: a defesa da pauta conservadora dos costumes, a sensação de ameaça à liberdade religiosa dos cristãos  e a oposição à esquerda e o campo progressista, frequentemente interpretados como inimigos, responsáveis pelo ‘mal’ e pela ameaça à família – noção essa que está em plena disputa e deve ser ser o principal fator de definição do voto para as mulheres evangélicas. 

Estratégias diferentes 

Alvo comum de Lula e Bolsonaro, o voto das evangélicas têm sido trabalhado pelos candidatos a partir de estratégias diferentes. Desde março, Bolsonaro tem recorrido a iniciativas mais incisivas para se aproximar das mulheres, com a mudança de tom dos discursos e a aparição cada vez maior de Michele Bolsonaro em eventos e propagandas eleitorais, buscando identificação com as eleitoras, na figura da esposa, mãe e mulher de família. 

“O voto evangélico terá peso, mas o que vai definir o resultado das eleições é o voto das mulheres. O voto de mulheres evangélicas seria uma espécie de segunda camada, mais específica desse quadro. Tanto é que a vantagem que Bolsonaro tinha em 2018 não se repete em 2022, tem um teto que está sendo dado pelas mulheres. Muitas rechaçam a conduta do atual presidente e muitas, como chefes de família, percebem a piora de sua condição ao longo dos últimos anos”, explica Evangelista.  

Da parte de Lula, a leitura é de que o ex-presidente esteja atuando de modo menos intenso. “Lula tem sido fiel ao que vinha fazendo, que é falar sobre a vida real das pessoas, sem necessariamente dirigir esse discurso a um segmento religioso específico. O que ele tem a seu favor é a memória da população sobre as políticas de seu governo e a condição que as pessoas tinham naquela época”, observa Evangelista.

Em 2002, Lula se reuniu com líderes religiosos e elaborou a “Carta Aos Evangélicos”, documento utilizado como estratégia de aproximação. Em 2022, o folheto foi reeditado, com o título “É tempo de esperança, o Brasil tem jeito – o que os evangélicos realmente querem para o Brasil”. Apesar de objetivos parecidos, Lula encontra hoje um contexto totalmente diferente. “O Lula candidato em 2022 não é o mesmo de 2002 e ele sabe disso. Ele tem uma oposição muito mais consolidada – em especial entre os evangélicos-, que cresceu. Ele não tem o mesmo espaço de trânsito com essas lideranças que já teve, então faz um movimento mais controlado”, analisa Ana Carolina. 

2002-2022: o que mudou em 20 anos? 

A ascensão dos evangélicos não é um fenômeno tão recente e já ocorre há pelo menos 20 anos. “De 2002 para cá, se consolidou uma figura que até então não existia no Brasil: as corporações evangélicas. Grupos ligados à Igreja Universal do Reino de Deus e à Assembleia de Deus ganham destaque, reunindo no mesmo espaço fé e ativismo político – modelo de funcionamento que anos depois começaria a ser copiado por outros grupos”, explica.

A própria frente parlamentar evangélica no Congresso é organizada após a primeira eleição de Lula, em 2002. “Ainda que tenham dado apoio a ele na ocasião, essas lideranças já se organizavam para mostrar uma capacidade de articulação e resistência a determinadas pautas da esquerda. A consolidação viria depois de 2010, quando pela primeira vez se consolidou em Brasília a chamada Bancada BBB – Boi, Bala e Bíblia”, lembra Evangelista. 

2018-2022: o que mudou em 4 anos? 

Segundo Ana Carolina, em 2018, Bolsonaro tinha como estratégia acionar símbolos e medos. “Na época isso estava atrelado aos fatos, às crises econômica, de desemprego e moral que a população brasileira vivia no guarda-chuva dos escândalos de corrupção e da extensa cobertura sobre isso. Bolsonaro se apresentava como alternativa para lidar com esses medos. Passados quatro anos, parte dos medos dos quais ele se aproximava e acionava, agora ele precisa se distanciar, porque as crises não apenas se aprofundaram, como ele é o maior responsável por elas. Restam agora os símbolos: da identidade cristã, do agro, da ordem, do patriotismo. O que Bolsonaro não pode mais fazer é se mostrar como alternativa de melhora na vida das pessoas”, afirma Evangelista.  

Na visão de Magali Cunha, os discursos de ideologia de gênero, ditadura gay, feminazis, já não produzem os mesmos efeitos que tiveram em 2018. “Isso pode ser percebido na análise das reações de evangélicos a esses conteúdos catastróficos e ameaçadores nas redes sociais”, observa Magali, que coordena o Coletivo Beréia, focado no monitoramento de desinformação religiosa nas redes.

Em sua visão, além do trabalho de diálogo com os grupos evangélicos e das checagens, a redução do número de desinformações que circulam nas redes evangélicas só poderá acontecer se houver investimento em educação midiática. 

* Esta é uma série especial do Abre Aspas sobre as Eleições 2022. O projeto é uma realização da Lupa em parceria com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com foco no combate à desinformação durante o processo eleitoral.


Ana Carolina Evangelista | Cientista política, atualmente é diretora-executiva e pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (ISER). É doutoranda em Ciências Sociais pelo CPDOC/FGV, mestre em Gestão e Políticas Públicas pela FGV-SP, mestre em Relações Internacionais e graduada em Relações Internacionais pela PUC-SP. Nos últimos anos esteve focada em pesquisar sobre a participação dos evangélicos na política. Atualmente dedica-se a pesquisas sobre candidaturas evangélicas e o comportamento legislativo de grupos religiosos e atividades de consultoria para fundações do Terceiro Setor, nacionais e internacionais, sobre instituições políticas, sistema político e fortalecimento da democracia.

Magali Cunha | Doutora em Ciências da Comunicação pela USP, Mestre em Memória Social pela Unirio e Graduada em Comunicação Social (Jornalismo) pela UFF, é pós-doutora em Comunicação e Política pela UFBA. Coordena o Grupo de Pesquisa Comunicação e Religiões da INTERCOM e é pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (ISER). Seus principais temas de pesquisa são: comunicação, cultura, religião, evangélicos, política, análise do discurso, mídia, ativismo político digital religioso. Integra a Associação Internacional Mídia, Religião e Cultura, a Associação Mundial de Comunicação Cristã e é colaboradora do Conselho Mundial de Igrejas. É fundadora e editora-geral do Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias.


Produzido por Dominique Gogolevsky

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