O resgate do jornalismo

Publicado originalmente em Observatório de Comunicação Pública – OBCOMP por Zelia Leal Adghirni. Para acessar, clique aqui.

Zelia Leal Adghirni, Jornalista e professora emérita UnB

Foi preciso uma catástrofe ambiental para ressuscitar aqui, o jornalismo de qualidade. Aquele jornalismo de valores-notícias inquestionáveis,  honestos e verdadeiros. Aquele jornalismo que ensinamos nas universidades  mas que nem sempre o mercado de trabalho está disposto a praticar.

O que estamos vendo agora,  em todas as mídias, principalmente na televisão e jornais é um show de jornalismo . Um jornalismo capaz de dar conta de toda a adversidade pela qual o Rio Grande do Sul está passando com a devida competência profissional para revelar o real e produzir sentidos. Não me refiro apenas a esta ou aquela mídia, mas a todos os profissionais envolvidos nesta trágica cobertura. As empresas não mediram esforços para enviar seus melhores repórteres ao “ front de guerra”.

Desta vez,  foi preciso mais  que gastar  sola de sapato para fazer a matéria. Foi, literalmente, botar o pé na lama, afundar na água até a cintura,  navegar em embarcações pouco  seguras, falar do alto de um helicóptero  sem medo de olhar para baixo, suportar o choque diante  do caos visto de cima, como se guerra fosse, o retrato da devastação pelo bombardeio das chuvas.

De repente,  foi preciso mergulhar no jornalismo de risco sem nunca ter recebido treinamento como recebem os repórteres de guerras e catástrofes. Foi preciso mais do que um microfone e uma câmera para registrar os momentos de pavor. Foi preciso coragem para narrar e descrever  as situações dramáticas : socorrer uma mulher em trabalho de perto, acompanhar o resgate de gente pedindo socorro sobre o teto das casas, entrevistar pessoas desgarradas, resgatar cachorros assustados e até mesmo  salvar um cavalo impávido sobre um minúsculo telhado.

 Foi preciso coragem para acompanhar os bombeiros  tentando  convencer as pessoas a sair de casa enquanto elas teimam em preservar os muros daquilo que um dia foi um lar.

Eram soldados os repórteres das ruas alagadas, das casas submersas, dos carros boiando,  das árvores flutuando, dos botes precários, da luta dos voluntários, dos gritos atônitos.  

Eles fizeram mais do que um trabalho de cobertura jornalística. Eles  participaram da ação das forças armadas, bombeiros,  socorristas,  voluntários  e  autoridades políticas e administrativas. Os jornalistas informaram, orientaram e incentivaram  as doações de todo tipo de ajuda às vítimas dessa tragédia gaúcha que se recusa a terminar.

Chamou atenção o estado físico de alguns profissionais que trabalhavam  visivelmente exaustos. Abatidos, com a barba mal feita, cabelos em desalinho,  roupas molhadas, rostos  cansados, olheiras profundas, eles jamais desistiram até que outra equipe viesse substituí-los.

  Diante do caos eles não perderam a humanidade. Eles se emocionaram,  seguraram  as lágrimas,  a voz embargou e o microfone tremeu.  Porque eles são humanos e o  ser humano está no centro da narrativa, ao reportar múltiplos relatos e significados.

 Como jornalista e professora de jornalismo que fui durante  muitos anos, quero aqui  louvar o trabalho dos colegas  e das empresas de mídia  que deram o melhor de si para esta cobertura. Até a RBS, que vinha dando sinais de enfraquecimento do jornalismo, com pautas engessadas e obviedades ululantes, de repente despertou para o que há de melhor no jornalismo : a notícia bem feita. A cobertura completa dos fatos e suas repercussões, as interações  com outros atores sociais, as autoridades, os especialistas. É uma agradável surpresa descobrir na tela da TV,  jovens rostos de meninas e rapazes escalados para a cobertura nos mais recônditos lugares  do estado devastado. Onde estavam esses “estagiários”? Vamos  chamá-los de volta às redações, aos estúdios,  treiná-los, distribuir pautas que traduzem as expectativas das sociedade em busca da informação.

Percebe-se que muitos deles ainda não estão maduros.  Não tem segurança suficiente   para entrar ao vivo. Escutei um repórter falar tudo sobre a rodoviária provisória de Porto Alegre,  ele até se emocionou com as entrevistas mas esqueceu de dar o mais importante :  endereço do local. Outros esqueceram de citar o nome da fonte que estavam entrevistando.Mas foram brilhantes ao enfrentar o desafio.

Eu pediria porém algo mais a esses intrépidos jornalistas : mais espírito crítico, mais interrogações e menos declarações de bons princípios dos governantes.  As autoridades  estão fazendo de tudo para reparar os erros do passado.  Mas o certo seria  ter evitado, ao menos um pouco, essa  desgraça. E eles podiam fazer isso.   A natureza é imprevisível. Os meios de manutenção,  preservação ambiental, pessoal competente e métodos e técnicas de preservação,  são completamente previsíveis.

E o que dizer dos profissionais enviados pelas maiores redes de televisão e mídia impressa do país para cobrir nossa tragédia gaúcha?  Globo, Globonews, SBT, CNN, todos presentes honrando a missão de informar. Então porque hostilizar quem está trabalhando? Goste ou não de tal jornalista, você tem a obrigação de respeitar seu trabalho. Eles vieram especialmente para isso. Para buscar a divulgar a verdade dos fatos. O fato é um acontecimento narrado pelo repórter. A interpretação do fato é uma prerrogativa do receptor. Mas  isso não dá a ninguém o direito de criar notícias  falsas. Qual é a intenção das fake news senão tumultuar a verdade ?  A intenção é de desqualificar o narrador, de jogar suspeitas sobre a realidade dos fatos, criar confusão  para dividir ,  alimentar a ignorância e a preguiça daqueles  que preferem a mentira .

Os incautos dirão que se trata de liberdade de expressão. Eugênio Bucci explica, num artigo publicado  ( 16/05) no jornal Estado de S. Paulo, que a liberdade de expressão é um direito da pessoa humana, não de pessoas jurídicas ou de organizações criminosas. O Estado, as empresas e os partidos políticos não têm liberdade de expressão pois não são pessoas.

Lembro  de uma entrevista que fiz com Angela Davis para o Coojornal, em Paris, nos anos 1970, onde ela falava dos paradoxos das leis sobre  liberdade de expressão nos Estados Unidos. Para a ativista americana, deveria ser proibido dar liberdade de expressão aos inimigos da liberdade. No caso, ela se referia  ao  Ku Klux Klan, movimento  que defende correntes extremistas e reacionárias como a supremacia branca, a anti-imigração, o antissemitismo, o anticomunismo  e o ódio aos muçulmanos.

Merecem os fabricantes de fake news o direito à liberdade de expressão ?

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