O que podemos esperar de um Brasil evangélico?

Publicado originalmente em Brasil de Fato por Afonso Bezerra. Para acessar, clique aqui.

O Brasil de Fato tem acompanhado este movimento e tentado decifrar origens e consequências da ascensão evangélica

O Brasil caminha para se tornar um país de população hegemonicamente evangélica, o que tem implicações diretas para além das estatísticas: tem reflexos na ética, na política, na economia e na cultura. É um desafio que se impõe para Estado, partidos políticos, movimentos populares e veículos de comunicação. A pergunta que fica é: o que podemos esperar dessa nova configuração social do país?

Brasil de Fato tem acompanhado de perto este movimento e tentado decifrar as origens e consequências dessa ascensão evangélica. Isso envolve denunciar os casos de intolerância religiosa, os ataques do fundamentalismo aos diversos segmentos da sociedade e a atuação da bancada da bíblia contra a democracia no Congresso Nacional.
 
Mas também evidenciar iniciativas progressistas. Mostramos aqui, entre outras, a construção da Frente Evangélica pelo Estado Democrático de Direito, as evangélicas feministas contra o PL do estupro e a iniciativa do Movimento Negro Evangélico pedindo a abertura dos arquivos das igrejas históricas durante a escravidão.

O exemplo mais recente desse esforço do BdF foi o lançamento do documentário Fé em Disputa, que narra a ascensão política dos evangélicos no Brasil contemporâneo e mostra os fatores espirituais e sociais que explicam essa expansão, além das estratégias usadas pelo fundamentalismo para se apropriar desse crescimento, interferindo na estrutura ideológica e política da nação.

A conclusão que temos, ao exibir este material, é que a classe trabalhadora brasileira hoje é evangélica. O crescimento é real. Os cálculos mais recentes, feitos pelo pesquisador Victor Araújo, apontam que há mais de 100 mil igrejas evangélicas no Brasil, em um ritmo de, aproximadamente, 17 novas unidades por dia. A contagem havia sido feita em 2019. Em 2015, apenas quatro anos antes, esse número era de 20 mil.

Essa conversão ao protestantismo encontra raízes em fenômenos estruturais da sociedade, como a acelerada urbanização do país e o aprofundamento do neoliberalismo. A desarticulação dos trabalhadores, impulsionada pelo desemprego, o alto índice de informalidade, a desidratação das leis trabalhistas, a redução do poder do Estado e a fragilidade dos sindicatos, fez com que eles procurassem refúgio nestas igrejas.

“A identidade de trabalhador vai lentamente mudando para a identidade de irmãos”, resume Delana Corazza, pesquisadora do Instituto Tricontinental.

Essas inúmeras igrejas, espalhadas nos recônditos mais distantes das periferias, prestam um serviço para além da prática religiosa e ocupam funções que, em tese, deveriam ser cumpridas pelo Estado. Acolhem mães com filhos no sistema penitenciário ou comunidades terapêuticas, formam novos artistas, empoderam os indivíduos com tarefas elementares nas igrejas e mobilizam correntes de solidariedade nos territórios. São um ponto de apoio. Uma referência.

Essa nova identidade, portanto, abre também uma reflexão entre as forças progressistas. Como se conectar com essa classe trabalhadora evangélica e avessa às organizações políticas? Essa ascensão evangélica tem uma consequência direta sobre a luta de classes. Além disso, renova a necessidade de entender a fé também como ferramenta de transformação e prática revolucionária.

Diante disso, é crucial relembrar que estes núcleos da sociedade não são como água e óleo. Basta lembrar das origens do MST, com a contribuição da Comissão Pastoral da Terra, da Teologia da Libertação e a presença de líderes presbiterianos, por exemplo.

O que preocupa é que a extrema direita percebeu este movimento mais cedo do que a esquerda. A fé popular tem sido cooptada por forças conservadoras e reacionárias, o que tem gerado um alerta no campo progressista. Esse movimento encontrou o seu ápice na eleição de Jair Bolsonaro em 2018, uma vitória da extrema direita que contou com amplo apoio dos evangélicos, distanciando esse grupo das forças progressistas.

Isso nos leva a reforçar o entendimento de que o fundamentalismo, apesar do alto poder simbólico, político e financeiro, não representa a totalidade da fé popular evangélica no Brasil. É parte de um projeto de poder. Ao compreender isso, o campo progressista e as forças de esquerda podem retomar um diálogo com a população evangélica, aparar as arestas das disputas eleitorais recentes e compreender que a fé pode ser um importante impulso revolucionário.

Ainda é cedo para cravar o que seremos no futuro com uma população hegemonicamente evangélica, mas é possível prever que teses consagradas sobre o Estado, o trabalho e o corpo, por exemplo, serão abaladas, e isso exigirá mais estudo, formação política e debates profundos para evitar que essas novas éticas e estéticas evangélicas não distanciem a classe trabalhadora da democracia, da liberdade e da justiça social.

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