Publicado originalmente em Instituto Palavra Aberta por Mariana Mandelli. Para acessar, clique aqui.
O sucesso do novo podcast da Folha, “A mulher da casa abandonada”, é indiscutível. Disponível nas principais plataformas de áudio, a série escrita e narrada pelo jornalista Chico Felitti está há semanas entre as mais ouvidas do País e seus episódios (o último foi ao ar ontem) já atingiram milhões de downloads. Uma infinidade de memes, vídeos de influenciadores, threads de Twitter e até uma versão do casarão no jogo The Sims foram criados e viralizados pelos ouvintes, transformando a história numa espécie de fenômeno pop — e isso rende diversas reflexões sobre a prática jornalística e seus efeitos.
Ao revelar o que há por trás de uma mansão aos pedaços em Higienópolis, um dos bairros mais ricos de São Paulo, habitada por uma mulher de rosto coberto por pomada e comportamento estranho, o podcast colocou em discussão uma pauta símbolo da constituição da sociedade brasileira: o trabalho análogo à escravidão. Margarida Bonetti, nome verdadeiro da mulher da casa abandonada, é suspeita de ter mantido uma empregada nessas circunstâncias por quase duas décadas enquanto viveu nos Estados Unidos com o marido.
Por meio da trajetória da família Bonetti, o podcast conseguiu provocar interesse por um tema que aparece na imprensa tradicional apenas quando um ou outro caso vem à tona. Um debate mais profundo sobre a escravidão moderna normalmente fica a cargo de organizações como a Repórter Brasil, cuja atuação é fundamental. Mas Felitti conseguiu trazer essa reflexão para um veículo como a Folha, alcançando um número incalculável de pessoas, e fez isso protegendo a identidade da vítima, ouvindo — ou pelo menos tentando ouvir — todos os envolvidos no caso e concedendo a palavra a especialistas em diversas áreas.
Ou seja: para além de contar uma história e denunciar uma tragédia social brasileira, o podcast tem fins pedagógicos, pois direciona o olhar do público para questões de raça, classe e gênero; incentiva a análise crítica dos fatos e, por fim, educa a audiência sobre relações trabalhistas e direitos humanos. Sem sensacionalismo, “A mulher da casa abandonada” pode ser considerado mais do que um audiodocumentário: é um trabalho etnográfico sensível e detalhista de um Brasil que persiste nos lares da elite brasileira.
Por outro lado, o sucesso assombroso da história vem atraindo centenas de fãs a Higienópolis, o que, à primeira vista, pode parecer inocente e até divertido. Mas não é. Além de servir de pauta para programas televisivos sensacionalistas e importunar vizinhos, esse movimento de curiosos rendeu ofensas gritadas e objetos atirados contra a casa e, segundo depoimento da irmã de Margarida ao qual o UOL teve acesso, a janela da mansão foi atingida por um tiro. Tudo isso teria feito com que a moradora deixasse o imóvel.
Houve quem culpasse o podcast por essas ocorrências — por conta disso, um disclaimer foi adicionado ao início dos episódios, assegurando que eles tratam de uma investigação jornalística, e não jurídica ou policial, e que a Folha refuta qualquer tipo de violência e intimidação.
Pensar que a responsabilidade por atos de terceiros é de um produto jornalístico bem pensado, apurado e divulgado, pode ser interpretado de diversas maneiras. Uma delas é a falta de news literacy, cuja tradução mais próxima seria educação jornalística, área da educação midiática dedicada a pesquisar e fomentar o ensino-aprendizagem sobre a importância do jornalismo nas sociedades democráticas, esmiuçando suas práticas, métodos, valores e gêneros.
Há ainda outro ponto sobre essas incursões turísticas à casa que precisa ser abordado. Em um ótimo artigo publicado no site Nós, Mulheres da Periferia, a jornalista Beatriz de Oliveira chamou atenção para o que isso também representa: “É como se a mulher que foi escravizada por anos e teve inúmeros direitos negados, fosse apenas um detalhe da história. É como se aquele lugar não representasse uma violência à população negra. A casa grande permanece de pé nos dias atuais e a branquitude permanece protegida dentro dela”.
A ponderação de Beatriz é certeira porque demonstra o desrespeito em relação à trajetória dessa mulher. Sua vida de privação, isolamento e dor não deveria tomar a forma de selfies de internautas com pomada no rosto e de dancinhas na frente do imóvel, como se vê aos montes no Instagram e no TikTok.
Não é porque o podcast traz uma narrativa envolvente — mérito de Felitti, aliás — que ele pode ser confundido com entretenimento. A história da mulher preta que trabalhou para os Bonetti em condições análogas à escravidão não é ficção. É realidade, é o Brasil e, por isso, é jornalismo — e de muita qualidade.
*Mariana Mandelli é coordenadora de comunicação do Instituto Palavra Aberta