Publicado originalmente em Rede Análise COVID-19. Para acessar, clique aqui.
Autores: Isaac Schrarztzhaupt (@schrarstzhaupt),
Revisores: Mellanie F. Dutra (@mellziland); Angel Miríade (@MyriadAngel)
Edição sobre captura de tela da cerimônia oficial do governo: https://www.youtube.com/watch?v=_2Ahxj-pb6U (tempo de visualização: 20:38)
Estamos em 23/10/2020. Acredito que todos os brasileiros devem ter ouvido a palavra “nitazoxanida” muitas vezes nos últimos dias, pois fomos surpreendidos por um anúncio, no dia 19/10/2020, de que este medicamento trazia benefícios no combate à COVID-19, principalmente na redução da carga viral.
Ficamos, como todos, esperançosos, pois o que mais queremos é um medicamento que traga benefícios! Ao buscarmos a resposta para as nossas dúvidas, nos resultados do estudo, recebemos a informação de que o estudo não podia ser divulgado no momento pois “como seria publicado em revista internacional, deveria manter o ineditismo”.
Este foi o primeiro sinal de alerta de que havia algo estranho neste estudo, pois sabemos que o medicamento já existe, não há nenhuma patente nova (que poderia configurar segredo), e então a publicação dos resultados deveria (como em todo estudo) ser feita antes da divulgação de sua conclusão, no formato que estamos nos acostumando a ver, que é o preprint. Este formato de publicação nos permite analisar o estudo antes mesmo de sua publicação, e está sendo mais usado justamente pela gravidade da situação na qual nos encontramos.
No dia de hoje, foi publicado o preprint do estudo em questão. A primeira coisa que temos de analisar é qual o desfecho primário do estudo, ou seja, o que está se propondo avaliar. Neste caso, o estudo se propunha avaliar o efeito da nitazoxanida na redução completa dos sintomas, como diz no estudo: “The primary outcome was complete resolution of symptoms”. Além disso, os desfechos secundários eram, entre outros, avaliar o impacto na carga viral, no resultado de testes de laboratório, em biomarcadores de inflamação e na taxa de hospitalização.
A primeira coisa que nos chama atenção é a seguinte frase: “In patients with mild Covid-19, symptom resolution did not differ between the nitazoxanide and placebo groups after 5 days of therapy.” [Em pacientes com COVID-19 leve, a resolução dos sintomas não teve diferença entre os grupos de nitazoxanida e placebo após 5 dias de terapia., tradução nossa]
Ou seja: o desfecho primário do estudo foi NEGATIVO. Aí entramos nos desfechos secundários e percebemos que houve uma redução maior na carga viral de pacientes que tomaram a nitazoxanida do que em pacientes que tomaram o placebo, e foi neste ponto que o anúncio do governo foi centralizado.
Fazendo uma metáfora simples para entendermos o que está descrito no preprint: Vamos imaginar que os vírus são soldados de um exército inimigo, e o nosso corpo é o país que este exército quer invadir.
Uma redução de carga viral sem efetiva melhora dos sintomas, como dito neste estudo, significa que nós punimos os soldados inimigos depois da invasão já ter acontecido, e o país já ter sido saqueado. Isso demonstra que não existem benefícios práticos nesta redução de carga viral.
Isso nos demonstra que nem sempre há uma relação direta da carga viral com o desfecho clínico da doença! Esta relação de carga viral é mais utilizada em estudos in vitro, pois se há uma redução da carga viral na célula fora do corpo humano, ainda há uma esperança de que essa redução ocorra quando testada em humanos. Em uma reportagem da BBC de 15/04/2020, a Microbiologista Natália Pasternak Taschner já havia explicado sobre a diferença entre os testes in vitro para os testes em humanos. No caso deste estudo, os testes já foram feitos em humanos, e então a redução da carga viral não possui status de benefício primário, pois os sintomas não mudaram entre quem tomou nitazoxanida e quem tomou placebo.
Também não podemos esquecer que o método de medição da carga viral foi através do swab (“cotonete”) do teste RT-PCR e ainda não temos a real taxa de precisão deste teste. Neste estudo, publicado no NEJM, é estimada uma probabilidade de 23% de falsos negativos no teste PCR, ou seja: pessoas que têm a doença mas o teste tem o resultado negativo. Só este valor é o suficiente para gerar um viés enorme nos resultados da nitazoxanida.
Dito isso, temos também a parte estatística do estudo: Foram consideradas 392 pessoas como grupo inicial, dividindo-as em dois grupos de 196 pessoas: um grupo tomou nitazoxanida e o outro grupo tomou o placebo. Como os sintomas não foram alterados após cinco dias, o estudo continuou a analisar um grupo menor, que ainda apresentava alguns sintomas após estes cinco dias.
Então, do grupo inicial de 392, este segundo grupo foi menor. Neste grupo, quem tomou nitazoxanida teve uma eliminação total de sintomas maior do que quem tomou placebo, o que parece bom, mas acaba esbarrando justamente nesta redução do grupo inicial. Como não sabemos quantas pessoas foram analisadas após os cinco dias iniciais, o resultado não tem o mesmo valor estatístico do que foi aplicado no grupo completo, das 392 pessoas. Além disso, o estudo é comprometido quanto ao caráter “cego”, uma vez que os indivíduos que tomam a nitazoxanida apresentam alterações na cor da urina.
O que tudo isso quer dizer: que a separação de pacientes não pode ser feita APÓS a triagem das amostras, pois acaba gerando um possível viés, que invalida o estudo. Esta separação, ao ser feita após a triagem, já elimina o status “randomizado e duplo cego” do estudo.
Recomendamos a leitura deste texto do Instituto Questão de Ciência (IQC) aonde há explicações ainda mais detalhadas sobre os pontos desconexos deste estudo. Conforme muito bem colocado por Alisson Chaves, “As normas de boas práticas para execução de estudos clínicos mandam que, antes de efetivamente iniciar qualquer estudo, o seu protocolo deve ser publicado. Embora não seja uma garantia de qualidade, essa prática permite que depositemos alguma confiança na integridade do estudo: a publicação prévia impede que o protocolo seja “cozinhado” à medida que os dados aparecem.”. Esse registro prévio é importante, pois quaisquer alterações no andamento da investigação que necessitem ser feitas, são atualizadas no registro, permitindo a comunidade científica analisar e acompanhar a condução da investigação. Uma vez que o estudo realizou este registro somente ao final da sua realização, esse acompanhamento das possíveis alterações na condução do estudo se torna impraticável.
As razões que nos levam a escrever este texto são puramente científicas, com o intuito de orientar a população em geral a entender que estudos como este não são suficientes para garantir o sucesso de um tratamento. Acreditamos ser de extrema importância esta explicação pois um anúncio como este pode causar um efeito ainda mais adverso, que é a automedicação e a desistência do uso de medidas já comprovadas, como as máscaras e o distanciamento físico. Já tivemos, infelizmente, ocorrências similares a esta com a Cloroquina e a Hidroxicloroquina, cujos estudos já comprovaram que não traz benefício em nenhuma fase da doença, mas foi propagada como solução, e pode ter acrescido o número de infecções por pessoas que trocaram as prevenções corretas pelo remédio não eficaz.
Estes dois fatores (não cumprimento do desfecho primário e eliminação do status randomizado e duplo cego do estudo para obter resultado positivo) não nos permitem ter confiança neste medicamento como solução para combate à COVID-19. Atualmente, o estudo está submetido para análise em revistas científicas com revisão de pares, fato este que deveria ter sido considerado pelo Ministério da Saúde antes da celebração pública dos resultados.