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Setor afirma responder por cerca de 25% da riqueza produzida no Brasil, mas IBGE diverge; metodologia considera toda a cadeia e chega até a serviços
O governo federal anunciou, na tarde da última quarta-feira (3/7), a destinação de R$ 400,59 bilhões para financiamento do setor agropecuário brasileiro. O Plano Safra 2024/2025 da agricultura empresarial, coordenado pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), é 10% maior do que o anterior. Já o Plano Safra da agricultura familiar recebeu R$ 76 bilhões, um aumento de 6% em relação à edição passada.
Apesar de a agricultura familiar ser a principal responsável pela produção dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros, cerca de 85% do montante destinado pelo governo federal para a produção agrícola ficou com o agronegócio. O setor e seus representantes, como a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), reforçam o discurso de que são o “motor do crescimento” brasileiro e de que respondem por mais de 20% de toda a riqueza gerada no país. O Fakebook.eco checou as informações sobre a participação do agronegócio no Produto Interno Bruto (PIB).
NÃO É BEM ASSIM
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), responsável pelo cálculo do PIB, a agropecuária respondeu por R$ 677,6 bilhões em 2023. O total das riquezas produzidas no país no ano foi de R$ 10.856,1 bilhões (R$ 10,8 trilhões), sendo R$ 9.486,6 bilhões referentes à soma do que foi produzido pela agropecuária, a indústria (R$ 2.416,9 bilhões) e o setor de serviços (R$ 6.392,1 bilhões); e R$ 1.369,5 bilhões em impostos sobre produtos.
O agro responde, portanto, por 7,14% do total, descontado o valor dos impostos. A indústria é responsável por 25,47% e os serviços, por 67,38% desse valor. Se considerado o total das riquezas (R$ 10.856,1 bilhões), a agropecuária responde por 6,2%, a indústria por 22,2% e os serviços por 58,8% (os outros 12,6% correspondem aos impostos sobre produtos).
O agronegócio brasileiro, no entanto, utiliza uma outra fonte, que adota uma metodologia diferente, para determinar sua participação no PIB brasileiro – e chegar à conclusão de que sua fatia ultrapassa os 20%. A conta é elaborada pelo Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Esalq/USP, em parceria com a Confederação Nacional da Agricultura (CNA). A metodologia considera toda a cadeia do setor – “antes, dentro e depois da porteira” dos estabelecimentos agropecuários, como define a CNA –, englobando os insumos, a produção agropecuária, a agroindústria e os serviços associados ao agro (chamados de “agrosserviços”).
Segundo o cálculo do Cepea/CNA, o PIB do agronegócio brasileiro em 2023 foi de R$ 2.580 bilhões: “Considerando esses resultados e o comportamento do PIB brasileiro no período [R$ 10.856,1 bilhões], a participação do setor na economia foi de 23,8% em 2023, abaixo dos 25,2% registrados em 2022”, diz a CNA. A Confederação destaca a diferença entre a metodologia adotada na parceria com a Esalq e a do IBGE: “A metodologia adotada tem como base a ótica do produto, a preços de mercado. É uma avaliação diferente em relação ao PIB divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que é focado no resultado dentro da porteira (produção agropecuária)”, diz a entidade.
Procurado por Fakebook.eco, o IBGE confirmou as diferenças de metodologia: “Os dados do IBGE levam em consideração a Classificação Nacional das Atividades Econômicas (CNAE) e as pesquisas econômicas do instituto. A CNAE é um conjunto de normas que define a natureza das atividades econômicas do país, inclusive para efeitos de tributação. Ele é adotado como referência pelas três esferas de governo, pelos analistas econômicos, pelo setor acadêmico do país etc. Assim, o PIB é calculado considerando-se as atividades econômicas que a CNAE caracteriza como Agropecuária, Indústria, Serviços e suas subdivisões”, explicou o órgão.
“Evidentemente, a partir dos dados do PIB é possível fazer inúmeros recortes e análises. Alguns estudos patrocinados pelo setor agropecuário, por exemplo, incluem certas atividades industriais e segmentos do setor de transportes no que eles chamam de “PIB do agronegócio”, o que implica em totais diferentes. O importante é que cada estudo divulgado deixe claro os critérios por eles utilizados”, completou o IBGE.
Uma publicação dos pesquisadores Marco Antonio Mitidiero Junior (professor da Universidade Federal da Paraíba) e Yamila Goldfarb (Doutora em Ciências Sociais pelo programa de Geografia Humana da USP) analisa a adoção do cálculo próprio pelo setor. “Por esta metodologia, a agropecuária é apenas um ramo do agronegócio, produzindo um efeito determinante de atração de outros setores da economia como seu. Por outra angular, é como se o setor industrial automotivo calculasse sua participação no PIB somando o látex coletado nas florestas e usado nas borrachas de vedação das portas dos automóveis; ou os derivados de petróleo na produção dos pneus”, pontuam.
Subsídios, isenções e impostos não pagos
Especialistas ouvidos por Fakebook.eco pontuam que, além de diferenciar as metodologias sobre o cálculo do PIB é necessário entender o papel histórico dos subsídios, isenções de impostos e políticas públicas que beneficiaram o setor. “Esse PIB é fortemente subsidiado pela sociedade brasileira, tanto dentro quanto fora ‘da porteira’. O Plano Safra é um exemplo: uma parte do plano é de subsídios, através das linhas de crédito com juros subvencionados com verbas públicas. Assim, uma parte do Plano Safra e do que vai para a produção é subsidiada pela sociedade brasileira”, aponta Luis Fernando Guedes Pinto, agrônomo (Esalq/USP) e diretor-executivo da SOS Mata Atlântica.
Ele destaca ainda outras formas de isenção e mecanismos tributários que beneficiam o setor. “O caso mais clássico é o do Imposto Territorial Rural (ITR), que é cobrado a partir da autodeclaração dos donos de terras e é subdeclarado, além de sonegado”, diz. Um estudo do Instituto Escolhas em parceria com GeoLab da Esalq/USP mostrou que, apesar de haver mais de 5 milhões de imóveis rurais no país, em 2018 foram arrecadados apenas R$ 1,5 bilhão em ITR. Para comparação, o valor é muito inferior ao arrecadado com o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) no mesmo período apenas no município de São Paulo (R$ 9,94 bilhões).
Nos últimos anos, o crédito rural subsidiado no Plano Safra diminuiu. Mas, segundo Luis Carlos Guedes Pinto, agrônomo e professor titular de Economia Agrícola na Unicamp, é preciso olhar o histórico da formação do setor no Brasil para entender sua atual composição, peso político e o quanto de riqueza movimenta. Segundo o pesquisador, que esteve à frente do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (2006/2007), as políticas públicas dos anos 1970 e 1980 foram definitivas para que o agronegócio pudesse se estruturar e ser o que é hoje.
“A agricultura brasileira moderna, que passou a ser chamada de agronegócio a partir do final da década de 1980, foi construída com subsídios altíssimos dos anos 1970 até os anos 2000. Hoje, o valor é menor. Mas ela foi fundamentada em um crédito rural extremamente subsidiado. Ela é fruto das políticas públicas, sendo a mais importante delas o crédito rural, e isso não pode ser ignorado. Nas décadas de 1970 e 1980, em períodos de inflação de 20%, 30% ou até 40%, a taxa de juros para a agricultura era zero”, afirma.
Os especialistas apontam ainda o alto grau de concentração desses subsídios, que reflete e perpetua a concentração fundiária brasileira. “Nos anos 1970 e 1980, menos de 1% dos produtores recebiam mais de metade dos subsídios”, diz Luis Carlos Guedes Pinto. A pesquisa “Quem são os poucos donos das terras agrícolas no Brasil”, lançada em 2020 pelo Imaflora, mostrou que a fatia dos 10% maiores imóveis rurais ocupa 73% da área agrícola do Brasil. Os 90% restantes ocupam somente 27% dessa área. (LEILA SALIM E PRISCILA PACHECO)