Publicado originalmente em Projeto Colabora por Giovana Kebian. Para acessar, clique aqui.
Especialistas dizem que número de casos pode ser dez vezes maior do que o registrado. Alunos criticam burocracia e apontam ineficácia das ouvidorias
Em setembro do ano passado, o vídeo de alunos de Medicina praticando atos obscenos durante uma edição de jogos universitários em São Paulo circulou pelas redes sociais e provocou revolta com a falta de punição pelo comportamento deplorável dos estudantes. Ao ganhar repercussão nacional, a Universidade de Santo Amaro (Unisa) resolveu expulsar os alunos, mas voltou atrás após uma decisão da Justiça Federal determinando que a instituição os aceitasse de volta. O caso, que havia acontecido meses antes sem ganhar o burburinho das redes sociais, escancarou a banalização do assédio nas universidades e as dificuldades práticas para punir os responsáveis.
Um exemplo disso é que, ao longo de 2022, foram registradas apenas 21 denúncias de assédio moral, sexual e racismo nas ouvidorias da UFRJ, Uerj, UFF e Unirio, as principais instituições de ensino superior públicas do Rio de Janeiro. Segundo especialistas, a subnotificação é muito grande, e a quantidade de casos pode ser até 10 vezes maior. O #Colabora solicitou, via Lei de Acesso à Informação, o número de docentes, estudantes ou funcionários que foram expulsos em decorrência de denúncias desse tipo nos últimos cinco anos, mas apenas a Universidade Federal Fluminense (UFF) respondeu, dizendo que exonerou um professor por assédio sexual, em 2018.
A reportagem ouviu estudantes dessas quatro universidades, além de alunos da PUC-Rio, e constatou que em nenhuma delas as ouvidorias apresentam espaços seguros para receber relatos dos diversos tipos de assédio que rondam as unidades de ensino superior. As identidades das vítimas foram preservadas.
“Que abertura, hein?” Foi assim que um segurança da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) se dirigiu a uma aluna depois que ele e outro funcionário contaram que assistiram a um vídeo dela “dançando num ferro” em uma rede social. A estudante de Turismo pratica pole dance e, vez ou outra, gostava de postar seu hobbie, mas nunca havia compartilhado o perfil pessoal com nenhum dos vigilantes que comentaram sobre seu corpo:
“Me senti superobservada. E nenhum deles tinha minhas redes sociais. Então, eles se deram ao trabalho de procurar e comentar. Desde sempre, já sentia olhares. E a gente sabe quando é um olhar diferente, quando é um ‘boa tarde’ diferente”, desabafou.
Acompanhada de uma outra aluna que passara pela mesma situação, a estudante buscou acolhimento no Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Uerj. A diretora da pasta de Mulheres do DCE, Letícia Hadgler, recorreu à chefe dos seguranças, mas a resposta que recebeu foi que precisava de mais provas: “Disseram que se conseguisse comprovar, eles poderiam ser afastados. Mas também poderiam voltar, colocando em risco a segurança das próprias alunas”. As estudantes desistiram de continuar com a denúncia.
Sensação de impunidade
Com uma estudante de Direito também da Uerj, a sensação de impunidade na universidade foi a mesma. Após sofrer um episódio de assédio moral por parte de sua supervisora na Procuradoria-Geral da Uerj, onde fazia estágio, decidiu denunciar o caso na Ouvidoria: “A Ouvidoria e nada, no meu caso, foi a mesma coisa. Num primeiro momento, a postura do ouvidor-geral foi de acolhimento, mas depois mudou completamente. Ele não queria que eu continuasse com o processo. A própria ouvidoria não cobrou da Procuradoria uma resposta para a denúncia, deixou de lado o prazo que precisava ser cumprido”.
Logo depois do seu depoimento na Ouvidoria, ela foi comunicada que seria desligada do estágio. Segundo a universidade, o motivo seria o “não cumprimento adequado das tarefas solicitadas e atrasos no comparecimento das atividades”, mas a aluna considera que foi uma tentativa de retaliação. A estudante contestou a justificativa apresentada pela instituição, voltaram atrás e a trocaram de supervisão, mas ninguém deu seguimento à denúncia feita. Sem sentir apoio da universidade, ela aguarda o resultado dos processos que demandou na Justiça. Em nota, a Uerj disse que abriu dois procedimentos para apuração, mas não confirmou a denúncia de assédio moral.
A professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e coordenadora da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas, Juliana Arruda, aponta algumas das inúmeras causas para a ineficácia das denúncias feitas nas ouvidorias, como o excesso de burocracia, a falta de preparo dos servidores para receber relatos de violência e o medo dos estudantes, especialmente das mulheres, de sofrer retaliação.
Segundo a pesquisadora, a maioria das universidades públicas costuma seguir a Lei do Servidor Público para protocolar denúncias de assédio moral e sexual, um processo considerado lento e burocrático. “Pela lei do servidor público, você faz a denúncia e inicia a sindicância, que tem duração de 30 dias. Essa sindicância pode ser prorrogada, estendendo-se por mais 30 dias. Depois, pode-se abrir um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) ou ser arquivado por falta de materialidade. O PAD dura mais 60 dias e pode ser prorrogado por mais 60. Ou seja, a pessoa espera, no mínimo, uns 180 dias. Muita gente desiste no meio do caminho”, explica Arruda.
No caso de um grupo de alunas do curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Estado do Rio do Janeiro (Unirio), o prazo foi ainda maior. Foram quase dois anos até que o professor Leonardo dos Santos Ávilla, denunciado por assédio sexual e moral no final de 2021, fosse exonerado: “Foi um processo bem demorado, bem complicado. Eles colocaram vários empecilhos, documentos que nós tivemos que entregar em prazos curtos. Algumas das vítimas tinham provas de tudo, prints de conversa, prints de e-mail, então a gente esperava que o processo seria mais rápido. Tinha partes do processo que ficaram paradas por semanas, meses…”, explicou Alejandra Lima, representante do Diretório Acadêmico de Ciências Biológicas que ajudou a protocolar a denúncia.
Ávilla coordenava o Laboratório de Mastozoologia da Unirio e ameaçava cortar as bolsas das alunas, suprimir créditos de artigos acadêmicos e outras formas de retaliação das estudantes. A demissão foi publicada em Diário Oficial no início de outubro de 2023 “pela prática de conduta escandalosa”.
Em muitos casos, os processos são esquecidos e deixados de lado. Foi o que aconteceu com uma denúncia de racismo em uma aula do curso de Pedagogia da UFF protocolada à coordenação do curso pelo Comitê de Relações Étnico-raciais da universidade. “Foi aberta uma sindicância no curso, mas ficou por isso mesmo, não foi além. Teve essa sindicância, algumas reuniões, mas depois foi tudo abandonado”, conta Thayanne Futuroso, diretora de Mulheres do DCE da universidade.
A UFF informou que não compactua com qualquer tipo de violência cometida e que, ao receber qualquer denúncia, adota os procedimentos estabelecidos pela legislação. As denúncias anônimas devem ser feitas por meio do Sistema de Ouvidoria do Governo Federal, o que neste caso acabou não acontecendo porque as vítimas se sentiram expostas com a forma que o processo foi conduzido dentro do curso e desistiram de continuar com a denúncia.
Novas medidas contra o assédio
Em setembro do ano passado, o presidente Lula aprovou um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) determinando que casos de assédio sexual deverão ser punidos com demissão em toda a administração pública federal. Até então, como não havia tipificação do assédio como desvio funcional, a conduta muitas vezes era negligenciada ou punida de maneira mais branda.
Meses antes, em abril, o presidente também sancionou um decreto que instituiu o Programa de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio Sexual na administração pública federal, estadual e municipal. A medida prevê campanhas educativas, divulgação das leis existentes, de canais de denúncias e das políticas de acolhimento e formação sobre condutas que possam ser caracterizadas como assédio sexual ou qualquer forma de violência sexual, de modo a orientar a atuação de agentes públicos.
A coordenadora da Rede de Mulheres Cientistas, Juliana Arruda, acredita que as duas medidas articuladas possam facilitar as denúncias e punições dos casos de assédio sexual. “É realmente um marco, um divisor de águas, tanto a lei, como o parecer. Antes, as universidades ficavam dependendo da interpretação jurídica”, explica. Ela também cita que as instituições podem definir legislações próprias, com prazos encurtados, para diminuir a burocracia e criar espaços seguros a fim de evitar que as vítimas desistam de denunciar.
Foi pensando nisso que a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) criou uma ouvidoria especializada para casos de violência contra a mulher, em vigor desde janeiro de 2023. Apesar da iniciativa, estudantes avaliam que a separação das instâncias não parece ter melhorado o andamento das denúncias: “A UFRJ criou uma Ouvidoria de Mulheres, mas ela basicamente desincentiva que você abra um processo. Por exemplo, ela não admite denúncias anônimas. A gente sabe que quando é contra um professor, é muito difícil que as estudantes denunciem porque elas acham que pode acabar com a carreira delas” explica a estudante de Direito da UFRJ e representante do DCE Letícia Maia.
A universidade esclareceu que solicita a realização de denúncias de maneira sigilosa e não anônima já que o anonimato pode impedir a apuração completa dos fatos pela insuficiência de dados ou de provas. Segundo a UFRJ, mesmo fornecendo informações como os nomes dos envolvidos, a identidade das vítimas é preservada de acordo com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Embora garanta o sigilo, as estudantes ainda desconfiam do procedimento. Letícia Maia acompanhou algumas alunas vítimas de assédio sexual e conta que nenhuma quis protocolar a denúncia na ouvidoria da universidade. Por outro lado, a falta de complementação das informações até o prazo estabelecido faz com que as denúncias sejam arquivadas, sem resposta conclusiva.
Denúncia coletiva
A sensação de impunidade não se restringe às universidades públicas. Na Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), um grupo de seis alunas do curso de Psicologia se uniu para fazer uma denúncia coletiva contra um professor por assédio moral e sexual. O docente, que coordena um dos grupos de estágio, foi acusado de humilhar e expor fatos da vida pessoal das estudantes durante as reuniões de supervisão do estágio. Outras alunas relataram episódios de assédio sexual.
“Ele usava do poder, da autoridade que tinha naquele lugar e falava obscenidades. E depois dizia que era brincadeira, para a gente não levar a sério. Fazia comentários na frente de todos sobre o corpo das meninas, sobre o short, se o peito estava aparecendo ou não. E olhava descaradamente”, descreve uma das alunas. Outra estudante observa que os assédios às vezes eram sutis, mas não deixavam de causar desconforto. “Ele também tocava muito. Tinha uma mania de abraçar, colocava a mão atrás das costas da gente enquanto andava. Mas ele era nosso professor”, conta.
As alunas procuraram a coordenadora-geral do Departamento de Psicologia da PUC-Rio para fazer a denúncia. Em um primeiro momento, contam que a instituição se mostrou receptiva e foi aberto um inquérito para apuração o caso, confirmando a veracidade dos relatos. A universidade, no entanto, apenas notificou o professor sobre o seu comportamento, alegando que não poderia afastá-lo sem flagrante. Em nota, a PUC-Rio informou à reportagem que “foi instituída uma comissão especial, que após ouvir todos os envolvidos, constatou-se que não havia prova que configurasse assédio”.
Grande parte das dificuldades em punir os agressores está na banalização do assédio no ambiente universitário. Um estudo conduzido pela Academia Brasileira de Ciências (ABC) apontou que 47% das mulheres já sofreram assédio sexual e 67% foram vítimas de assédio moral durante a carreira. Uma outra pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) demonstrou que 52,3% das instituições de ensino superior analisadas ainda não possuem qualquer política de prevenção de ocorrências de assédio sexual, e, dessas, 70% também não possuem medidas de enfrentamento, comprovando a falta de preparo do corpo docente e técnico para lidar com episódios de violência.
Para Bianca Beltrame, responsável pelo estudo da UFRGS, as dificuldades no enfrentamento à violência nas universidades se devem à falta de interesse em promover mudanças e à lacuna na formação das ouvidorias. “Um dos motivos é a questão cultural, talvez não haja realmente interesse das pessoas que têm algum poder de fazer uma mudança. E tem um protecionismo muito forte na academia porque no serviço público rola muito essa questão de um dia eu vou ser seu chefe, mas, no outro, você que é meu chefe. E, também, não há preparação para isso. Se você olhar os ouvidores das universidades, eles não têm formação sobre isso, recebem denúncias e não sabem, por exemplo, quando é hora de encaminhar para a Justiça, sair dos muros da universidade”, explica.
A UFRJ e a Uerj informaram que realizam ações pedagógicas como rodas de conversa e debates para orientar a comunidade acadêmica sobre os procedimentos a serem adotados em casos de assédio moral, sexual e outras discriminações. A presença dos servidores nesses espaços, no entanto, é facultativa. A UFF disse que constantemente promove campanhas contra o assédio universitário e o racismo e que possui uma cartilha informativa. A Unirio não prevê nenhum tipo de formação voltada para o corpo docente e técnico, mas, assim como a UFF, pretende instituir uma coordenação específica para tratar o enfrentamento à violência. Já a PUC-Rio não informou sobre a existência de qualquer política de conscientização sobre essas temáticas voltada para seus funcionários.
Apesar dos dados alarmantes, Bianca acredita que a situação vem melhorando nos últimos anos: “Desde quando eu fiz a pesquisa, em 2019, acho que teve um aumento no número de estudos sobre isso, surgiram mais grupos de acolhimento às vítimas, grupos de capacitação. O caso do Boaventura Souza Santos (professor da Universidade de Coimbra acusado de assédio) foi essencial para mostrar que esse comportamento não é mais aceitável”.
A Rede Brasileira de Mulheres Cientistas lançou, em julho de 2023, a campanha #AssédioZero nas universidades. O objetivo é dar visibilidade ao tema e solicitar às coordenações das universidades públicas e institutos federais a implementação de medidas de prevenção contra assédio moral e sexual, protocolos de encaminhamento das denúncias e acolhimento das vítimas.