Publicado originalmente em ObjETHOS por Lívia de Souza Vieira. Para acessar, clique aqui.
Qualquer cidadão que acredite na Ciência e na realidade dos fatos assistiu ontem (22/06), com perplexidade, ao depoimento do deputado Osmar Terra (MDB/RS) à CPI da Covid. Durante todo o dia, veículos jornalísticos se esforçaram para não simplesmente replicar a desinformação de seu discurso, mas informar com precisão. E não era para menos: o deputado ficou conhecido por compartilhar falsidades e previsões equivocadas durante a pandemia. Segundo levantamento do Aos Fatos, Terra publicou em sua conta no Twitter ao menos 610 mensagens com alegações falsas e distorcidas sobre a doença. No total, essas publicações alcançaram mais de 3,2 milhões de interações (curtidas e retweets).
Uma breve observação mostra que esse esforço rendeu bons títulos:
– UOL: “Na CPI, Terra faz comparações enganosas e reitera discurso negacionista”
– Folha: “Aliado de Bolsonaro, Osmar Terra admite à CPI erro em projeção da pandemia e é confrontado sobre imunidade de rebanho”
– O Globo: “CPI da Covid mostra vídeos com previsões erradas de Osmar Terra sobre a pandemia; veja quais”
– Estadão: “Na CPI, Osmar Terra faz alegações enganosas ao tentar justificar postura negacionista”
– Correio Braziliense: “CPI da Covid: veja lista de declarações de Osmar Terra confrontadas com a realidade”
– BBC: “CPI da Covid: Em depoimento, Osmar Terra repete dados falsos sobre isolamento, Suécia e China”
– Nexo Jornal: “Osmar Terra repete tese negacionista à CPI da Covid”
– Aos Fatos: “Osmar Terra mente à CPI ao falar de imunidade de rebanho e decisões do STF”
– Agência Lupa: “Na CPI, Osmar Terra cita dados falsos sobre projeções, medidas tomadas por outros países e mortes em asilos”
Esse giro pela grande imprensa é o bastante para decretar que a população brasileira se manteve bem informada sobre o depoimento de Osmar Terra? Infelizmente, a resposta é não.
Além de observar os sites de notícias, fui até o YouTube e vi uma realidade bem diferente por lá. Ao pesquisar pelos vídeos com mais visualizações sobre o assunto, os quatro primeiros resultados (com exceção da transmissão oficial da TV Senado) mostram uma narrativa em comum: o deputado teria “vencido” a oposição. Juntos, eles somam mais de 1,7 milhões de visualizações. A seguir, detalho cada um dos vídeos.
“Osmar Terra desmonta oposição”
O Grupo Jovem Pan publicou dois dos vídeos mais acessados: a edição completa do programa Os Pingos nos Is, com duas horas de duração; e uma versão compacta de 30 minutos. A seleção dos melhores momentos da sessão foca em Osmar Terra dizendo que não é gestor público, apenas dá opiniões; que a política infectou a ciência; que 500 mil mortes mostram que lockdown não teve efeito; e que não existe gabinete paralelo, pois Bolsonaro tem o direito de conversar com quem confia. Após transmitir uma pequena fala de Omar Aziz rebatendo Terra, o programa exibe longo trecho em que o senador Marcos Rogério fala sobre o vídeo de Drauzio Varella do início da pandemia (o fatídico no qual ele minimiza a gravidade da doença). Em seguida, quatro comentaristas reforçam o que a edição já havia insinuado. José Maria Trindade afirma que o relatório final de Renan Calheiros já está pronto e que Osmar Terra errou as previsões, mas outros também erraram, como Henrique Mandetta e o Imperial College. Ana Paula Henkel enfatiza a experiência do médico – “conceituado, articulador, um nome de respeito”. Guilherme Fiuza diz que a CPI é “uma completa inutilidade, um espetáculo do absurdo”. E Augusto Nunes reitera que a “CPI não vai dar em nada e que são todos uns picaretas”.
Muito popular no YouTube, o Grupo Jovem Pan é um conglomerado de mídia fundado na década de 1940, que encerrou 2020 com números e audiências históricas em seus canais na plataforma. “Foram mais de 30 milhões de espectadores únicos, mais de 250 milhões de visualizações no mês, com um tempo de retenção de 44 minutos”, diz esta nota oficial. O sucesso foi tanto que o Grupo lançou o PanFlix, seu primeiro serviço de streaming de conteúdo, que em cinco meses registrou 500 mil downloads.
Além de ser feito por um veículo tradicional de imprensa, é importante notar que o vídeo não faz uma defesa “escrachada” de Osmar Terra. A meu ver, trata-se de uma desinformação sutil, empacotada em um formato similar ao dos telejornais. Não é, portanto, um desconhecido que liga uma câmera e cria teorias da conspiração ou mente de forma leviana. Há um refinamento no enquadramento e na edição. A escolha dos comentaristas sugere credibilidade: Augusto Nunes é um jornalista experiente, que comenta também na Veja e na Record; Ana Paula Henkel é a “Ana Paula do vôlei”, ex-jogadora de sucesso. Juntos, eles reforçam a tese estampada no título do vídeo, de que Osmar Terra teria “desmontado” a oposição.
Outro levantamento do Aos Fatos mostrou que médicos que reproduziram desinformação sobre a Covid-19 tiveram mais de 30 milhões de visualizações no Youtube, sendo que mais da metade dessa audiência veio de entrevistas publicadas em canais da grande imprensa, como a rádio Jovem Pan. Ou seja, embora adote um tom mais sóbrio, o Grupo ajuda a espalhar desinformação de uma maneira até mais perigosa, justamente por ser sutil e por dispor de relativa credibilidade, construída ao longo de anos de história.
“O Show do Osmar Terra e muitas coisas mais”
Com 403 mil visualizações, o vídeo do canal “Te atualizei” tem 28 minutos e começa dizendo que, “diante de Osmar Terra, os senadores da CPI aprenderam educação de uma hora pra outra”. Para Bárbara Zambaldi, que assina o canal, Osmar desmanchou a narrativa de Renan Calheiros sobre o gabinete paralelo. Ela ainda exibe trecho em que Terra critica o STF por permitir que governadores não vão à CPI e enfatiza os momentos em que os senadores da oposição mencionam dados imprecisos. Assim como a Jovem Pan, Zambaldi também comenta o trecho em que o vídeo de Drauzio Varella é exibido. Para ela, “Osmar deu uma aula no Senado”.
Bárbara Zambaldi é uma dona de casa conservadora que virou youtuber de sucesso falando de política com humor. Seu canal tem 1,22 milhões de inscritos. O cenário é de informalidade, com Bárbara sentada em um sofá. Ela é carismática e utiliza prints com imagens para “embasar” as informações que defende, estratégia comum em divulgadores de desinformação. O vídeo é completamente opinativo, não apresenta contraponto e evita falar sobre os momentos em que Osmar Terra mentiu à CPI (por exemplo, ao dizer que não defende o controle da pandemia por meio da imunidade de rebanho, algo que havia feito por diversas vezes). O maior enfoque do vídeo foi nos dados imprecisos que alguns senadores da oposição mencionaram, mas tais informações foram corrigidas por eles mesmos durante a sessão. Ao selecionar as partes que lhe convêm, Bárbara facilmente chega à conclusão do “show de Osmar”, mas deixa para trás a conexão com a realidade.
Segundo reportagem da Agência Pública, “os canais Giro de Notícias, Te Atualizei, Ravox Brasil, Bernardo Küster e Vlog do Lisboa tiveram conteúdos recomendados em vídeos do presidente Bolsonaro. Todos eles são investigados ou foram denunciados em esquemas de desinformação e linchamentos virtuais. (…) Bárbara Zambaldi – do Te Atualizei – e Küster são investigados no inquérito sobre fake news”.
“Ao Vivo: Ex-ministro de Bolsonaro, Osmar Terra enfrenta senadores na CPI – Renan, Randolfe, Omar”
O vídeo do canal Folha Política, que alcançou 339 mil visualizações, é a transmissão da sessão da CPI. Com 2,44 milhões de inscritos, chama atenção a audiência que optou por assistir ao depoimento de Osmar Terra neste canal – e não em outros como a própria TV Senado ou a CNN, que têm transmitido as sessões ao vivo. Ou seja, trata-se de um público fiel, que procura o canal para ver a CPI. O título dá o tom editorial: Osmar Terra “enfrenta”
A Folha Política chegou a ser banida do Facebook em 2018, por “propagar notícias falsas da internet de viés de direita”, segundo reportagem do BuzzFeed. Portanto, trata-se de um canal ideologicamente ligado a Bolsonaro, o que justifica o teor dos comentários no vídeo da CPI. Normalmente, em canais jornalísticos, há uma mistura de críticas e apoios da audiência, a depender do que está sendo exibido. Neste caso, os comentários parecem samba de uma nota só: desqualificam a CPI e criticam, principalmente, Omar Aziz e Renan Calheiros.
A breve análise dos vídeos lança luz sobre um enorme desafio para o jornalismo: chegar a uma audiência, que pode ser contada aos milhões, e que está sendo mal informada sobre a CPI da Covid. Seja por veículos tradicionais, por “influenciadores” ou por sites de direita, fato é que o ecossistema informativo se complexificou e precisa ser compreendido. Parte dessa compreensão vem da análise dessas fontes de (des) informação que, ao invés de serem rechaçadas por jornalistas do mercado e da Academia, precisam ganhar nossa atenção. A ausência de mentiras ou teorias descabidas nos vídeos analisados mostra um cenário cheio de nuances nem sempre fáceis de detectar. Para combater a desinformação – e já olhando para as próximas eleições -, é preciso pôr uma lupa nessas nuances.