Publicado originalmente em Instituto Palavra Aberta. Para acessar, clique aqui.
*Mariana Mandelli é coordenadora de comunicação do Instituto Palavra Aberta
A cena começa com uma mulher e seu filho, de aproximadamente 4 anos, em uma cozinha, em frente a uma tigela de plástico, como se estivessem cozinhando juntos. De repente, ela pega um ovo e quebra na cabeça da criança, que se assusta e passa a mão no rosto, sem entender o que aconteceu. Em outro vídeo semelhante, uma garotinha, também pega desprevenida pela atitude da mãe, cai no choro enquanto a mulher ri para a câmera. Logo depois, para acalmá-la, ela permite que a filha faça o mesmo: parta um ovo em sua testa. Tudo filmado, postado e viralizado.
Estes são apenas dois exemplos entre centenas de uma trend no TikTok bastante popular nas últimas semanas. Trends são, em tradução livre, tendências das redes, que engajam milhares de usuários a reproduzirem uma determinada performance, que pode ser uma dança, um desafio, uma dublagem ou mesmo uma brincadeira — pelo menos a princípio. A ideia é participar do momento e, se possível, viralizar, ganhando visibilidade e, claro, seguidores.
Mas vídeos como os da trend do ovo não podem ser encarados apenas como potenciais memes, por mais que façam sucesso entre muita gente, por um motivo que deveria ser óbvio: eles expõem crianças a situações depreciativas. E os autores da humilhação são os próprios responsáveis por elas.
“É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”, diz o artigo 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O texto ainda completa que eles têm o direito de ser cuidados “sem o uso de tratamento cruel ou degradante”.
Além de ferirem o ECA e afetarem o vínculo familiar, uma vez que psicólogos apontam que atitudes como as exibidas nos vídeos podem significar uma quebra de confiança entre mães/pais e filhos, conteúdos desse tipo elevam a prática do sharenting (termo usado para definir o compartilhamento de imagens dos filhos) a níveis ainda mais preocupantes.
É claro que, hoje, os registros da infância não se encontram mais aprisionados em álbuns de fotos impressas ou em gravações de VHS, como há algumas décadas. Antes mesmo de nascerem, os bebês já ganham perfis próprios em redes sociais — alguns com milhões de seguidores, como os filhos de celebridades. E também é preciso lembrar que essas plataformas têm sido importantes para mulheres compartilharem suas experiências com a maternidade, tratando abertamente de temas antes invisibilizados, como a exaustão e a sobrecarga a que mães são submetidas.
Contudo, ao contrário das fotografias e dos vídeos de festinhas de nascimento, batizado ou aniversário dos anos 80 e 90, as imagens postadas no TikTok e Instagram podem ser vistas e revistas por audiências inestimáveis. Podem ser curtidas, comentadas, compartilhadas e customizadas incessantemente por conhecidos e estranhos. E não podem ser apagadas para sempre, o que nos leva à pergunta: que efeito toda essa exposição, muitas vezes constrangedora, terá na vida desses futuros adultos?
Mesmo em casos de vídeos de crianças chorando que se transformaram em correntes de afeto e apoio, como o garotinho australiano Quaden, filmado em 2020 pela mãe após ser vítima de bullying, é importante ressaltar que não há como prever se um conteúdo vai viralizar, muito menos como será a reação do número exponencial de pessoas que terão acesso a ele.
O ambiente digital já está repleto de riscos de diferentes escalas de gravidade para crianças e adolescentes. Os responsáveis por eles precisam focar em protegê-los, controlando e qualificando o uso que fazem de redes sociais, aplicativos e games, e não em ridicularizá-los em troca de likes.