Publicado originalmente em objETHOS por Rogério Christofoletti. Para acessar, clique aqui.
A maior ameaça ao jornalismo brasileiro nos últimos dois anos não foi a crise financeira nem a pandemia. Foi a ação ostensiva de Jair Bolsonaro, seus filhos e apoiadores que atacaram profissionais e veículos de imprensa, sem trégua, e incitaram fanáticos a hostilizar quem estava na linha de frente para informar a sociedade. Desde sempre, o presidente da República elegeu o jornalismo como inimigo e trabalhou para desqualificá-lo, em alguns momentos até querendo comprometer a sua sobrevivência financeira. Se o primeiro ano do mandato de Bolsonaro foi só pancadaria, 2020 foi o ano em que o jornalismo juntou os cacos e reagiu, com profissionalismo, vigor e uma bem-vinda dose de ceticismo.
O profissionalismo veio de reportagens investigativas que revelaram aparelhamento político de instituições, escândalos e corrupção, envolvendo direta ou indiretamente os Bolsonaros, amigos como Fabrício Queiroz e até contratados, como o advogado Frederick Wasseff.
O vigor veio do acompanhamento sistemático na forma de relatórios de ONGs como Artigo 19 e Repórteres Sem Fronteiras e de entidades classistas como Fenaj e Abraji, e de reportagens denunciando as agressões. Nunca esses ataques foram gritados em tão alto volume no país, nem antes da redemocratização. A reação do jornalismo veio também de ações individuais de jornalistas contra o presidente, como foi o caso de Bianca Santana, que venceu Bolsonaro na Justiça.
O ceticismo da imprensa fez com que vários veículos esvaziassem o “cercadinho do Alvorada”, local frequente de xingamentos e humilhações de repórteres pelo presidente, por convidados patéticos e por sua claque adestrada. E fez com que colunistas e editoriais perdessem a paciência com o governante, desmentindo suas declarações e o qualificando, inclusive, de “genocida” por suas omissões diante da Covid-19. Mesmo combalida pela pandemia, com equipes mais enxutas, sobrecarga de trabalho e redações esvaziadas, a imprensa não transigiu em fazer coberturas de fôlego, recorrendo a ações colaborativas como o consórcio de veículos que contabiliza casos de infecção e mortes pela epidemia. Não dava mais para esperar pelos boletins do Ministério da Saúde, e o mesmo se deu com os desmatamentos na Amazônia e queimadas no Pantanal. O jornalismo brasileiro precisou desenvolver seus próprios métodos de apuração ou monitoramento para escapar às estratégias de silenciamento e de opacidade dos dados públicos.
2020 passa à história como o ano em que o jornalismo começou a reagir ao seu esmagamento não porque revidou, mas porque reafirmou sua função de fiscalizar poderes, apontar abusos e responsabilizar autoridades. Não foi revide, foi autodefesa. Uma necessária autoafirmação, lenta e até um pouco hesitante, mas bem-vinda e importante.
Bola cantada
No final de outubro de 2018, escrevi que repórteres e editores tinham “motivos de sobra para acreditar num futuro sombrio para o jornalismo brasileiro”, depois do resultado das urnas e a vitória de Jair Bolsonaro. O dia da posse já sinalizaria que o presidente iria abrir mão da habitual lua-de-mel entre recém-eleitos e jornalistas. Os meses foram avançando com o aumento do autoritarismo, da demonização à imprensa, do ódio como estratégica política, na clara tentativa de domesticar o noticiário.
Em dezembro de 2019, escrevi que os sinais eram de que a temperatura não baixaria e que o jornalismo estaria por sua conta e risco no ano seguinte. Os ataques se mantiveram, com o claro propósito de distorcer informações e sequestrar o noticiário. Sobretudo contra as mulheres, os ataques aumentaram.
Felizmente, vieram as reações, e o jornalismo tentou se defender. Para isso, algumas redações precisaram revisar certas práticas, e passaram a desmentir declarações fantasiosas de autoridades, evitaram normalizar absurdos, produzir falsas equivalências (em nome do equilíbrio) e ser menos pudicas para dar os nomes aos bois. Alguns veículos publicaram editoriais em flagrante rota de colisão com o governo, o que convenhamos não é muito frequente. E houve ainda quem apelasse na justiça contra decisões que impediam a veiculação de reportagens e coberturas. Não chegamos ao ponto de interromper a fala do presidente – como ABC, NBC e CBS fizeram com Donald Trump –, mas talvez seja uma questão de tempo diante do Festival de Besteiras que Assola o País, como já definiu o saudoso Sergio Porto há décadas.
A reação de 2020 não foi unânime, claro. Há veículos e jornalistas alinhados ao governo. Para justificar sua renúncia a vigiar o poder, reivindicam liberdade de expressão e direito de opinião. Há também os mais fragilizados pelas crises econômica e sanitária que não conseguem reagir por medo de retaliação e perseguição política. Os primeiros estão bem estabelecidos e não se sensibilizam com o clima opressivo que Bolsonaro e sua base insistem em alimentar. Já os demais podem se convencer a reagir se outros poderes e os jornalistas comprometidos sinalizarem limites legais e de civilidade para o presidente da República e seu grupo.
Mais uma vez, não temos demonstrações que nos façam crer numa trégua por parte do Palácio do Planalto em 2021. O plano de ataque à imprensa foi traçado e não será abandonado. As agressões vão continuar, mas é bem possível que, ligeiramente fortalecido em 2020, o jornalismo continue a reagir. Quer dizer que ficaremos apenas na emissão de notas de repúdio, que teremos um punhado de ações judiciais isoladas, e que fiquemos colecionando estatísticas e gritando na mídia? Sim, o caminho me parece ser este, inarredável. Mas quem sabe veículos não se consorciam a entrar com processos coletivos contra violações de direitos de seus funcionários? Quem sabe outras instituições não pressionam os poderes Legislativo e Judiciário para garantir o direito constitucional à informação e à transparência de atos públicos, terreno sobre o qual o jornalismo atua? Quem sabe camadas organizadas da sociedade não se combinam para proteger o jornalismo como instrumento social, ainda mais necessário durante uma pandemia?
Em 2021, jornalistas e veículos de informação precisarão perseguir sua finalidade pública, que é levar informação à sociedade; precisarão continuar a morder os calcanhares do poder, afinal não dá pra recuar. Capitular é impensável, pois existem coisas que são inegociáveis: a democracia, o direito à informação e o dever e livre exercício de informar.
Este ano que parece nunca ter fim trouxe muitas lições a todos. Algumas já conhecíamos e foram relembradas; outras nos abriram frestas de oportunidade. Quem sobreviveu aos últimos dois anos poderá fazer de 2021 um tempo mais digno, respirável e possível.
*Rogério Christofoletti
Professor da UFSC e pesquisador do objETHOS