Novo Ensino Médio como política revogável

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.

Artigo | Professor do PPG Educação, Carlos Ventura Fonseca aponta que o Novo Ensino Médio distancia o jovem do saber sistematizado e da cultura científica e desconsidera os verdadeiros problemas da Educação Básica brasileira

*Por Carlos Ventura Fonseca
*Foto: Ato organizado pelo CPERS discutiu as dificuldades, retrocessos e avanços das propostas em curso no modelo do Novo Ensino Medio.

A entidade atua para que a reforma seja revogada (Flávio Dutra/JU – Arquivo JU 22 mar 2023)

Recentemente, o debate público sobre o Novo Ensino Médio (NEM) tem se tornado mais expressivo, alcançando setores diversos. Defendo, neste texto, a visão de que esse modelo reflete uma perspectiva que é equivocada, em diversos níveis, pois desconsidera a realidade da escola pública brasileira e as necessidades mais básicas das/os estudantes. O tema ganha maior visibilidade, tendo em vista que o novo Governo Lula (2023-2026) não dá sinais consistentes de que pretenda revogar tal política, ainda que tenha sido divulgada uma suspensão parcial de sua implementação. 

O NEM, que nasceu como política apressada do Governo Michel Temer (2016-2018), sem considerar os argumentos de pesquisadoras/es do campo da Educação, de professoras/es e estudantes da escola pública brasileira, apresenta um verniz modernizante, dizendo-se defensor dos interesses do jovem contemporâneo. Essa promessa é embasada no aumento gradativo da carga horária global de cada ano do Ensino Médio, combinando redução do tempo de aula de áreas essenciais do conhecimento humano (Química, Física, História, Geografia, Sociologia, Filosofia, Biologia, etc.) com aumento da carga-horária letiva para novas disciplinas, que seriam representantes dos chamados itinerários formativos – pretensamente atrelados ao projeto de vida da/o adolescente. A inovação propagandeada pelo NEM é a de que cada estudante poderia escolher a área de aprofundamento mais adequada ao seu perfil (Ciências Humanas, Ciências da Natureza, Linguagens, Matemática ou áreas técnicas profissionalizantes).

Subentende-se, pela organização do NEM, que a escola brasileira seria dotada de estrutura de excelência (com financiamento robusto e laboratórios especializados), com corpo docente em tempo integral, bem formado, pago dignamente e estimulado ao desenvolvimento profissional. O principal lema do NEM é apontar as inadequações do “velho ensino médio”: desatualizado, distante da vida do jovem, com conteúdos desinteressantes e desconectados da tecnologia que rege o mundo. Descortina-se, aqui, um diagnóstico que embasa a proposta: o principal problema do “velho ensino médio” seria o currículo. A lógica é simplista: mudando-se esses conteúdos, os alunos terão grande interesse pela vida escolar e, assim, haverá maior apropriação de supostas competências úteis para a vida adulta. 

Outra característica, veiculada como vantagem do NEM, é sua profunda adequação às exigências flexíveis do mercado de trabalho, o estímulo ao empreendedorismo (ideias depreendidas: “havendo esforço pessoal, você conquistará o sucesso”; “as oportunidades são iguais para todos”; “baixe o aplicativo no celular e comece a ganhar dinheiro com seu carro”; “tenha seu canal no YouTube”; “seja um/a influencer no Instagram”; “você é seu próprio chefe”) e sua convergência com as habilidades matemáticas que levem ao saber ser um exímio especulador do mercado financeiro (“poupe um pouco por mês, aprenda a construir gráficos e planilhas eletrônicas, saiba calcular juros”; “invista na bolsa de valores, afinal, quem não quer ser um milionário e comprar o último modelo de iPhone?”).

Nesse sentido, revela-se uma visão política sobre o modelo de desenvolvimento do país: aposta-se na financeirização hegemônica da economia e no enfraquecimento dos direitos trabalhistas mais básicos, ao mesmo tempo que os recursos tecnológicos de informação e comunicação se transformam no fetiche do momento. 

Apontar quem são os verdadeiros beneficiados pelo NEM, pois estudantes e docentes não o são, é uma tarefa complexa, mas há algumas pistas que podem proporcionar a constituição de um esboço. Sabe-se, por exemplo, que muitos governos estaduais, responsáveis legalmente pelo Ensino Médio da rede pública, enviaram sinais evidentes de contentamento com essa política, já que esta reduz a demanda por professoras/es concursadas/os e com licenciaturas em áreas específicas, aquelas mesmas que tiveram sua carga-horária obrigatória reduzida. Entidades privadas, que lucram com o sistema público educacional, vendendo pacotes de inovação com qualidade questionável, constituem outro grupo que defende as inconsequências pedagógicas do NEM.

As novas disciplinas, que foram forçosamente inventadas para atender aos itinerários formativos do NEM, são arranjos híbridos e embasados na superficialidade do cotidiano e do senso comum, com pouco ou nenhum aprofundamento relacionado às diversas ciências que deveriam estruturar o currículo escolar. As escolas privadas de boa qualidade, em geral, compreendendo o tamanho desse problema, trataram de manter o tempo destinado aos conhecimentos clássicos do currículo, expandindo a carga-horária de aulas de seu privilegiado público, para atender às exigências exóticas do NEM.

Questiona-se: esse cenário qualifica o aprendizado das/os adolescentes ou amplia desigualdades entre as classes sociais?

A adoção do NEM piora muito a Educação Básica, sendo uma ação ineficaz, pois desconsidera os verdadeiros problemas que a realidade impõe: as escolas públicas apresentam estruturas físicas insuficientes, as condições de trabalho são desfavoráveis, o magistério é mal remunerado e grande parte é empregada de forma precária e emergencial. O NEM minimiza a função primordial e humanizadora da escola, que é de aproximar o jovem do saber sistematizado e da cultura científica, substituindo-os por conteúdos, em maioria, esdrúxulos e estéreis. Ademais, pelo que se tem notícia, a maior parte das escolas públicas não consegue, por suas condições estruturais, ofertar a integralidade dos tais itinerários formativos, de modo que não está nem mesmo ocorrendo a tão anunciada liberdade de escolha do estudante. Dentro do ambiente democrático, é preciso que as/os estudantes e suas famílias, juntamente com o magistério, continuem participando dos movimentos que estão demandando a revogação completa dessa política, que não atende ao conjunto da população.


Carlos Ventura Fonseca é professor do Departamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências da UFRGS

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