No mês das mulheres, é preciso falar das trabalhadoras domésticas

Publicado originalmente em Brasil de Fato por Hilana Pereira e Marina Sampaio. Para acessar, clique aqui.

Elas são 91% da categoria, sendo que 65% negras; classe ainda sofre todo tipo de discriminação e abuso

Os trabalhadores que desenvolvem atividades remuneradas no âmbito doméstico somam um total de 5,7 milhões de pessoas no Brasil. Desses, mais de 91 % são mulheres; das quais 65% são negras, havendo proeminente interseccionalidade entre os marcadores sociais de gênero, raça, origem e classe no segmento.

São 5,2 milhões de mulheres que fazem todo tipo de tarefas, como limpeza, jardinagem, cuidado de crianças, idosos e de pessoas com deficiência, entre outras, que são essenciais para a própria existência da classe trabalhadora. Ainda, é a garantia de que alguém desenvolverá as atividades no âmbito reprodutivo que permite que as demais pessoas desenvolvam atividades na esfera produtiva.

A despeito da essencialidade desse trabalho para o desenvolvimento socioeconômico, não há a devida valorização pela sociedade brasileira. 

Discriminação Legislativa

A categoria de trabalhadores domésticos sempre viveu – e ainda vive – verdadeira exclusão jurídico-civilizatória.

Em 1941, foi editado o Decreto-Lei nº 3078, que tinha o objetivo de regulamentar o trabalho doméstico, mas não havia consenso sobre sua aplicação, pois previa uma posterior regulamentação que nunca viria a acontecer. Apenas em 1972, por muito esforço coletivo de trabalhadoras domésticas, lideradas por Laudelina de Campos Melo, foi editada a Lei nº 5.859, que foi a primeira a amparar o acesso a direitos trabalhistas para trabalhadoras domésticas. 

Isso ocorreu mais de 80 anos após a abolição formal da escravização no país.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, trabalhadoras domésticas passaram a ter direito a descanso semanal, mas continuaram sem limitação de jornada e colocadas em um limbo jurídico que as separava, em muito, do patamar já alcançado por trabalhadores urbanos e rurais.

A inclusão jurídico-trabalhista teve que aguardar bastante tempo até se aproximar do patamar de direitos dos demais trabalhadores, o que somente ocorreu com a edição da Emenda Constitucional nº 72/2013 e, posteriormente, com a sanção da Lei Complementar nº 150/2015, que garantiram direitos básicos e fundamentais, como a duração do trabalho normal não superior a 8 horas diárias e 44 semanais; remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, a 50% do normal; redução dos riscos inerentes ao trabalho; reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho; proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil; e enfim, a possibilidade de que houvesse, efetivamente, a fiscalização das relações de trabalho doméstico pela Inspeção do Trabalho. 

Porém, até hoje a discriminação legislativa remanesce. Diferentemente do que ocorre com todas as demais categorias econômicas, a trabalho realizado até 2 dias por semana não requer registro do contrato de trabalho, o que empurra milhões de trabalhadoras domésticas para a informalidade.

Ao todo, o IBGE informa que são 4 milhões de mulheres trabalhadoras na informalidade nessa atividade – o registro na carteira de trabalho e Previdência Social (hoje atualizada pelo eSocial) é uma conquista dos trabalhadores alcançada em 1932, e que, mais de 90 anos depois, em 2023, ainda não é garantida a milhões de trabalhadoras domésticas. 

O registro do contrato de trabalho é o direito mais fundamental dos trabalhadores, eis que atesta a existência da relação de emprego e garante acesso a todos os benefícios previstos em lei. 

Outra discriminação ainda existente no século 21 é a concessão de seguro-desemprego no limite de 3 parcelas fixas, no valor de um salário-mínimo, com prazo de requisição de 7 a 90 dias. Os demais trabalhadores têm direito a até 5 parcelas, com valores variáveis e superiores, sendo admitida a requisição no prazo de 7 a 120 dias após a demissão involuntária.

Trabalho Doméstico em Condições Análogas às de Escravizados

Desde 2017, cerca de 80 trabalhadores domésticos foram resgatados de condições análogas à escravidão pela Inspeção do Trabalho no Brasil. Desses, cerca de 80% eram mulheres negras. O trabalho doméstico assim explorado é aquele em que o trabalhador é submetido a jornadas exaustivas, condições degradantes de trabalho, restrição de liberdade, e/ou trabalhos forçados (art. 149 CP). 

Concretamente, isso significa dizer que mulheres têm sido exploradas por anos a fio, sem acesso a direitos trabalhistas, sob a justificativa de que eram “como se fossem da família”; suficientemente da família para executar atividades domésticas sem remuneração, mas não suficientemente para ter direito à herança, à autonomia, à independência socioafetiva e econômica ou a um quarto dentro de casa, como os demais membros do agregado familiar. 

Também, é sintomático que os casos que vieram a conhecimento público por meio da imprensa sobre trabalhadoras resgatadas de trabalhos análogos aos de escravizados em serviços domésticos, revelem traços daquilo que estruturou o trabalho doméstico: racismo, sexismo e elitismo. 

No mês que marca a luta das mulheres por melhores condições de vida e nesse dia de hoje – 21 de março -, dia internacional da luta contra a discriminação racial, é preciso falar sobre as trabalhadoras domésticas. É preciso falar que todas as mulheres devem ter acesso aos mesmos direitos fundamentais do trabalho, sem qualquer discriminação.

Isso pressupõe o reconhecimento de que é urgente a garantia de direitos iguais às trabalhadoras domésticas, ultrapassando as barreiras que desvalorizam o trabalho feminino e negro no Brasil. 

* Marina Sampaio e Hilana Pereira são auditoras fiscais do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rodrigo Durão Coelho

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