Publicado originalmente em Jornal O Cidadão por Carolina Vaz. Para acessar, clique aqui.
“Kit Covid”, “tratamento precoce”, “tratamento emergencial”: nomes muito utilizados desde o início da pandemia e que representam um conjunto de medicamentos divulgados, falsamente, como capazes de curar ou prevenir a Covid. Mas que remédios são esses? A Cloroquina é um medicamento para tratar malária; a Ivermectina é indicada para curar piolho e sarna; e a Azitromicina utilizada em infecções do trato respiratório.
Desde o início da pandemia, sem base científica, os medicamentos são divulgados pelo governo, inclusive Ministério da Saúde, como recomendáveis para prevenir ou tratar a Covid. Ao mesmo tempo, profissionais da saúde e entidades fizeram o movimento contrário, indicando possíveis reações negativas e desmentindo fake news sobre os remédios.
Conversamos com a médica Amanda Dantas, do Morro do Timbau, que atende na Clínica da Família Ana Maria Conceição dos Santos Correia, em Vila Kosmos. Ela é formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e faz residência em Medicina de Família e Comunidade pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Amanda também é educadora do CPV-CEASM na disciplina de Biologia. Leia a entrevista:
O termo tratamento precoce existe na medicina?
O termo tratamento precoce é um termo inadequado, se a gente for pensar do ponto de vista da saúde, porque o tratamento pressupõe uma doença já estabelecida. Eu acho que o termo que mais cabe aqui seria o termo prevenção, que é uma forma de a gente tentar evitar que a doença ocorra, e isso não é com remédio, com outras coisas, mas sim com isolamento social, uso de máscaras, higiene das mãos. Essas são medidas comprovadamente eficazes para a prevenção da Covid.
Existe remédio que previna o contágio por Covid?
Não existe nenhuma medicação que previna a Covid-19, nenhuma é comprovadamente eficaz. Durante muito tempo se depositou muitas esperanças em muitas medicações, no início da pandemia muitas pesquisas foram feitas, hoje a gente já acumula um ano de pesquisas e nenhuma das medicações testadas é comprovadamente eficaz no tratamento ou na prevenção da Covid-19. Nem a Ivermectina, nem a Azitromicina, nem a Cloroquina e nem outros antivirais que estão circulando por aí. A gente ainda precisa estudar muito sobre o funcionamento desse vírus, mas reiterando que: o que funciona de fato são as medidas de prevenção.
Você já atendeu pessoas que usaram o “kit Covid”?
Já atendi inúmeras pessoas que estavam utilizando o “kit Covid”, já atendi inúmeras pessoas que vieram com receitas médicas, carimbadas, de UPAs, hospitais recomendando “tratamento precoce”, com Azitromicina, Ivermectina e Cloroquina. Já joguei fora caixa de Cloroquina, já vi pessoas morrerem por uso de Cloroquina e já vi pessoas desenvolverem insuficiência hepática* por uso de Ivermectina. É muito frequente as pessoas usarem essas medicações, sobretudo Ivermectina e Azitromicina, eu tento conscientizar de que não existe nenhum tratamento, oriento a suspensão do tratamento quando não é indicado, mas é uma luta muito assimétrica.
Por que as pessoas estão aderindo ao “kit Covid”?
Existe uma legitimação de informações não científicas e uma atmosfera anticientífica que é estimulada pelo atual governo e seus ministros. Inclusive com omissão do Conselho Federal de Medicina e do Ministério da Saúde em orientar a prática de não prescrição do tratamento precoce. Acho que isso está relacionado a uma questão maior, que é a indústria farmacêutica. Foi comprada uma quantidade muito grande dessas medicações, principalmente a Cloroquina. O governo quer de fato “colocar isso para jogo” de qualquer forma. Até pouco tempo atrás, com um ano de pandemia, o presidente ainda recomendava em entrevistas o tratamento precoce. É óbvio que a palavra do presidente da República e seus ministros tem alguma validade para a população, inclusive quando ele questiona sobre a vacina.
A nossa população, que muitas vezes só tem acesso à informação através de televisão, de jornais, das notícias que são compartilhadas via Whatsapp, acaba acreditando nessas informações. Infelizmente, quem acaba sofrendo com a utilização indiscriminada desses remédios é a população pobre, que muitas vezes acaba não tendo acesso a leito e atendimento porque depende de um sistema de saúde sucateado e indisponível.
O que você, como médica, diria para alguém que quer prevenir a Covid?
A melhor forma de prevenção da Covid e que é comprovada por estudos científicos é o isolamento social, o uso da máscara e a higiene das mãos. Então, não adianta tomar Ivermectina, Azitromicina, nenhuma medicação. A prevenção é feita com ficar em casa, evitar sair desnecessariamente.
Inclusive, o isolamento social não existe sem o incentivo do governo federal em garantir renda para as pessoas que não estão trabalhando, em garantir condições básicas de higiene, em garantir restrições ao funcionamento do comércio, dos serviços. Então não é uma questão individual, mas uma questão de política pública que incentive uma medida que é comprovadamente eficaz na prevenção da Covid. Mas o que a gente tem é justamente o contrário: o governo, tanto em esfera federal quanto em níveis estadual e municipal, aqui no Rio de Janeiro, não toma decisões que vão de encontro à redução do número de mortes. Tanto que a gente vê um aumento cada vez maior no número de mortes, o mês de março foi um mês sangrento nesse sentido, a gente bateu 4 mil mortes por dia, e isso muito pela não vontade política do poder público em adotar medidas que poderiam evitar que isso acontecesse.
*Na insuficiência hepática, o fígado para de funcionar adequadamente. Pode levar à necessidade de um transplante de fígado.