Música de concerto tem baixa representatividade de pessoas negras?

Publicado originalmente em Jornal da Universidade por Victoria Rodrigues. Para acessar, clique aqui.

Cultura | Entraves como o alto custo dos instrumentos e a pouca familiaridade prévia com o repertório vêm sendo gradualmente superados com iniciativas de projetos sociais que propiciam formação musical a jovens pretos e pardos

*Foto: Flávio Dutra/JU

Majoritariamente masculino e branco, o meio musical por anos apagou da sua história compositores e musicistas negros. Pensar maneiras de enfrentar a desigualdade no ambiente da música de concerto e da ópera vem sendo um grande desafio para os jovens músicos. Nos últimos anos, algumas grandes orquestras nacionais têm incentivado o debate sobre a questão racial.

De acordo com Catarina Domenici, pianista, compositora e professora do Departamento de Música na UFRGS, a estrutura da música clássica foi criada no século XIX para confirmar o prestígio social da burguesia, excluindo principalmente os negros e as mulheres. “Para conferir esse prestígio se cria um [repertório] canônico, com obras só de homens brancos, formando todo um sistema educacional para essa classe social”, afirma. Por isso, até a inclusão das mulheres em orquestras prestigiosas foi um processo lento. 

 Janderson Cardoso (acima e imagem de capa) e John Wesley Centeno, são contrabaixistas. Janderson estuda História, na UFRGS; Wesley está finalizando o ensino médio e pretende fazer a graduação em Música (Foto: Flávio Dutra/JU)
Erik dos Santos e Maria Luiza Vieira; ele toca flauta transversal, ela é clarinetista na Orquestra Jovem (Foto: Flávio Dutra/JU)

Catarina conta que a falta de jovens músicos negros é observada dentro das salas de aula da Universidade. Durante os quase 30 anos em que atua como professora de piano erudito na UFRGS, viu poucos alunos com esse perfil.

Outra questão levantada pela docente é a dificuldade que muitos brasileiros enfrentam de se enxergarem como negros. Inclusive para ela, o processo de entendimento da negritude só foi acontecer durante seu mestrado nos Estados Unidos. “Lá eu fui recebida, acolhida e abraçada pela comunidade negra, além de ter sido tratada como negra”, relembra. “Então essa peça que estava faltando no quebra-cabeça de identificação se encaixou e tudo fez sentido para mim.”

Apesar de ter sido criada em um ambiente repleto de diversidade, com uma família bastante miscigenada, Catarina ainda não possuía bagagem para entender sobre o assunto. 

“Eu cresci em um ambiente de classe média, onde sofri bullying desde que ingressei na escola porque era a única diferente naquele lugar. Mas eu não sabia exatamente porque tinha tanto bullying comigo, justamente porque não tinha a mínima noção da minha negritude”

Catarina Domenici

Para Melissa Souza, pianista e estudante de Bacharelado em Música na UFRGS, o processo de identificação pessoal aconteceu durante a graduação. Ela conta que as conversas tidas com a professora Catarina no início do curso a ajudaram muito a se enxergar como artista negra. “Eu fui me dando conta da mulher que ela é e como isso realmente batia em mim. Então isso dá um gás, dá uma motivação para continuar”, diz. 

A professora Melissa Souza e os alunos e alunas de sua turma na Orquestra Jovem do Rio Grande do Sul – OJRS (Fotos: Flávio Dutra/JU)
O preconceito e a ausência de equidade

Existem diversos entraves no caminho de jovens negros até alcançarem um lugar de prestígio no meio da música de concerto. Entre eles estão os valores dos instrumentos, que dificultam a continuidade na formação por não serem acessíveis. Além disso, os alunos brancos muitas vezes já têm o hábito de ouvir o repertório clássico desde pequenos por conta dos pais, diferente dos alunos negros. 

Segundo Melissa, quando ingressou na graduação não conseguia se identificar muito bem com a música de concerto em razão de ser muito distante da sua realidade. “Todos os meus colegas tinham piano em casa, ou moravam perto da Universidade”, relembra. “Só o fato de ter um instrumento já colocava a gente em lugares diferentes, porque nas aulas eles sabiam fazer coisas que eu não sabia fazer.” Isso fez com que a pianista fosse aos poucos descobrindo seus gostos dentro do meio, até chegar na música popular brasileira e perceber que era possível incluí-la no seu repertório. “Me ajudou bastante a me motivar e me engajar nos estudos”, afirma. 

Maria Clara Silva, oboísta, é estudante do segundo ano do ensino médio (Foto: Flávio Dutra/JU)

O fator econômico pode ser decisivo para os musicistas negros. Para Lucas Bernardo, bacharel em Música pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e violinista da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, seus colegas brancos não tiveram uma experiência melhor unicamente pela cor da pele, mas principalmente pela questão financeira. “O instrumento em si dá muitos gastos, e você vê que boa parte dos negros muitas vezes sofria para comprar corda, para trocar as palhetas”, reitera. Lucas aponta, ainda, que, quanto maior o nível exigido de instrução, menor a porcentagem de músicos negros no ambiente. 

“Vem vindo numa escala decrescente. Quando você entra em uma universidade como a Unesp, que é pública, se imagina que vai ter mais negros, ainda mais com um sistema de cotas, mas ainda assim dá para perceber que é uma diferença bem grande”

Lucas Bernardo

Mesmo que nunca tenha sofrido nenhuma violência diretamente, Lucas afirma que o preconceito é real. O violinista relembra um episódio de quando participava de um concerto na Sala São Paulo, pela Orquestra Jovem do Estado, e um integrante do meio musical publicou nas suas redes sociais que não havia negro tecnicamente capacitado para tocar naquele ambiente. “Isso deixou o pessoal muito revoltado – e com razão”, afirma. “Eu acho que esse episódio ficou muito aparente, porque provavelmente ele não era a única pessoa que pensava assim, mas foi alguém que falou publicamente.” 

Jessica Garighan e Érika dos Santos Garcia, violinistas da OJRS. Jessica cursa o bacharelado em violino e Érika faz Gestão Desportiva e do Lazer no Instituto Federal Restinga (Foto: Flávio Dutra/JU)
Os projetos sociais e a ampliação da diversidade 

Oportunizar e incentivar jovens negros a terem um contato com a música de concerto já é algo pensado por diversos projetos sociais. A graduanda Melissa Souza, por exemplo, pôde aprimorar seus conhecimentos com o piano através deles. “Não sei se a minha formação musical seria a mesma se não tivesse passado por esses projetos”, relata. Atualmente, Melissa é professora da Orquestra Jovem do Rio Grande do Sul, lugar em que foi estudante no início da sua trajetória na música. “É muito legal ver os meus alunos no mesmo lugar em que eu estive há 10 anos e poder dar orientações para eles”, diz. 

Para a professora Catarina Domenici, iniciativas como essas são essenciais para aproximar a música de concerto dos jovens negros, torná-la cada vez mais acessível e, assim, ampliar a pluralidade nesse meio. Problemas estruturais são o cerne e a causa da baixa representatividade negra no mundo das orquestras, por isso criar oportunidades de forma inclusiva para levar a música clássica até áreas e populações diversas da cidade é essencial para uma mudança desse contexto.

“A gente precisa de um governo que olhe para a cultura de uma maneira diferente e que crie essas oportunidades para toda a população, e não só para quem tem dinheiro para pagar aula particular”

Catarina Domenici
Musicistas durante ensaios da Orquestra Jovem, em sala da Fundação Pão dos Pobres, em Porto Alegre (Fotos: Flávio Dutra/JU)

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