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Esporte | Após décadas de luta e uma proibição que durou mais de 40 anos, diferentes iniciativas pela valorização e equidade abrem portas para as mulheres no futebol
*Projeto da Esefid da UFRGS pretende ser um espaço de acolhimento às mulheres no futebol (Foto: Pietro Scopel/JU)
Caro/a leitor/a, inicio esta reportagem pedindo que imagine comigo a seguinte cena: é uma tarde de sol, e o Internacional enfrenta o Flamengo em uma partida eletrizante de futebol. Em um momento crucial do jogo, o árbitro toma uma decisão controversa. Os ânimos se exaltam, e o que começou com uma discussão sobre uma deliberação rapidamente se transforma em uma série de xingamentos. Entre os insultos dirigidos ao árbitro, destaca-se uma provocação: “Por que você não vai para casa? Aproveita que tem sol e vai lavar roupa”. Estranha-se, talvez, que tal comentário tenha sido feito a um homem?
Imagino que nesse ponto fique claro que causei uma confusão semântica relativa ao gênero, pois quem apita o jogo é, na verdade, uma mulher. Afinal, esse insulto não reflete apenas uma indignação frente a uma decisão tomada em jogo, mas a manifestação de um estereótipo que transcende o próprio esporte.
A história acima foi relatada por uma das mulheres entrevistadas para esta reportagem, e imagino que seja por situações como essa, e por entendimentos sociais tão incrustados no existir feminino, que fui assiduamente lembrada de algo crucial ao longo do processo de apuração: não é possível – e seria até desonesto – comparar o futebol feminino ao futebol masculino. Como explica Silvana Goellner, pesquisadora aposentada da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança (Esefid) da UFRGS e atualmente professora visitante na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), o futebol feminino deve ser entendido em seus próprios termos, “porque é outra história, é outro estudo, é outra relação com o próprio futebol”. Ainda que os homens também enfrentem desafios no esporte, nenhum está relacionado ao gênero que possuem, ao contrário das mulheres, que, como relatou a pesquisadora, vivenciaram um período de proibição da prática que durou mais de quarenta anos – elas só voltaram a competir oficialmente no futebol a partir de 1983.
A proibição ocorreu em abril de 1941, a partir do Decreto-lei n.º 3.199, e foi imposta a partir de críticas que alegavam que o futebol era inadequado para mulheres por questões tanto fisiológicas quanto morais. Assim, o decreto estabeleceu que “às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza”, sendo o Conselho Nacional de Desportos (CND) designado a regulamentar essa restrição.
Foi só depois de 41 anos de esforços para superar a barreira imposta pela proibição, com diversas tentativas e resistências ao longo do caminho, que as mulheres finalmente conseguiram retomar a prática oficial do futebol no Brasil na transição da década de 1970 para a de 1980. No entanto, apesar da revogação da proibição legal, os valores e discursos que limitavam a participação feminina no esporte não desapareceram; o debate persiste por décadas, ainda deixando suas marcas na trajetória do futebol feminino.
Silvana conta que sua jornada pesquisando futebol feminino começou exatamente por um olhar crítico sobre a forma como o esporte era retratado – ou, mais precisamente, como era invisibilizado – quando praticado por mulheres. “O Brasil se autorrepresenta como o país do futebol, mas é o país do futebol masculino. Pouco se conhecia sobre a história das mulheres no futebol”, explica.
Desde 2013, ela mergulhou profundamente na pesquisa sobre o tema, estabelecendo contato com jogadoras pioneiras e se envolvendo ativamente em sua valorização. Mais que pesquisadora, Silvana coloca-se como ativista do futebol feminino, o que fica evidente, considerando todo esforço que tem dedicado à causa. Seu trabalho não se limitou ao âmbito acadêmico: ela desempenhou um papel fundamental na curadoria de exposições sobre futebol feminino no Museu do Futebol e participou de grupos de trabalho na Confederação Brasileira de Futebol (CBF). O resultado de tamanha familiaridade com esse meio foi “uma série de mais de 80 entrevistas, muitas com a geração pioneira, após a proibição do futebol feminino no Brasil”.
Foi a partir dessas entrevistas que Silvana, junto de Juliana Cabral, lançou dois livros que detalham a história de algumas dessas mulheres dentro e fora de campo. Uma das primeiras medalhistas olímpicas e capitã da seleção brasileira de futebol em 2004, Juliana trouxe uma perspectiva única às obras. “Trabalhar com a Juliana foi uma experiência transformadora. Escrevemos os livros a quatro mãos, e isso nos permitiu uma conexão mais profunda com as histórias das jogadoras”, diz Silvana. A abordagem colaborativa e a escrita conjunta não apenas enriqueceram o conteúdo, mas também proporcionaram mais autenticidade ao relato das vivências das jogadoras. Cada capítulo das obras apresenta a história de uma atleta distinta, mas, apesar de serem trajetórias individuais, todas compartilham traços comuns de superação, coragem e paixão pelo futebol.
Entre as histórias contadas no livro, a autora destaca a da jogadora Soró, apelido de Solange Bastos, ex-seleção brasileira. Sua trajetória foi marcada por desafios pessoais significativos, incluindo fome e moradia precária. “A história da Soró é particularmente emocionante. Não só a história exatamente, mas o jeito como ela chorou quando mostramos o que tínhamos escrito no livro sobre sua vida. Ela fala que foi um grande processo de cura ler a sua própria história. Ela se deu conta do quanto foi importante”, relembra Silvana.
É compreensível que essas mulheres, pioneiras no futebol, não se deem conta do imenso valor que suas trajetórias representam. Afinal, suas habilidades foram invisibilizadas socialmente por toda uma vida. É o reflexo de uma cultura que condiciona as mulheres a um lugar pré-estabelecido; esse cenário não apenas limita nossos direitos a explorar outras áreas, mas também impede que recebamos o devido reconhecimento quando o fazemos.
Esse funcionamento social é expresso nos desafios que Silvana e sua equipe enfrentaram na busca por delinear a história do futebol feminino. A falta de registros oficiais, inclusive na mídia tradicional, e a ausência de documentação na Confederação Brasileira de Futebol (CBF) exigiram uma abordagem minuciosa para recuperar a memória dessas pioneiras.
“Construímos um mapa das jogadoras da seleção brasileira a partir de informações fragmentadas e súmulas de jogos. Foi um trabalho árduo, mas essencial para preservar essa história”
Silvana Goellner
Um novo capítulo para as mulheres no esporte
O trabalho de Silvana não evidencia apenas figuras do passado, mas as precursoras de um legado que continua a inspirar e a transformar o cenário esportivo atual. Outra iniciativa que busca ampliar o espaço das mulheres no esporte é o projeto de extensão Futsal Feminista, que ocorre na Esefid há mais de dois anos. Nas tardes de terça e quinta, por meio da iniciativa muitas mulheres “entram em campo” – neste caso, quadra – pela primeira vez.
O projeto permite que mulheres conheçam a variação de um esporte que, ainda que tão famoso no país, nunca lhes foi apresentado como uma possibilidade. Muitas das participantes, até entrarem no projeto, nunca haviam jogado bola.
A iniciativa surgiu da necessidade de Martina Burch, doutoranda em Ciências do Movimento Humano pela UFRGS, de colocar em prática seu projeto de tese, que trata da “constituição de uma treinadora de futsal” – no caso, a própria pesquisadora.
O projeto de pesquisa de Martina tem como proposta metodológica a autoetnografia, método em que a experiência pessoal da autora dita o andamento do trabalho. Ao se mudar de Pelotas para Porto Alegre, Martina não encontrou um espaço para atuar como treinadora e colocar seu projeto de pesquisa em prática. Essa lacuna se transformou em uma oportunidade. “Eu precisava de um local para atuar, e meu orientador, que já tinha um projeto de esportes na Esefid, sugeriu a criação de um projeto de futsal”, revela a doutoranda. O projeto começou com a proposta de atender exclusivamente alunas da UFRGS, mas logo expandiu para incluir servidoras da universidade e público externo.
Martina conta que tem uma conexão pessoal profunda com o futsal. “Eu já jogava desde criança e tinha experiência como atleta amadora. O futsal era o esporte com o qual eu tinha mais familiaridade, o que facilitou a minha atuação como treinadora”, afirma. A modalidade, com suas regras distintas do futebol de campo, como a ausência de impedimentos e o número menor de jogadoras, oferece um ambiente mais acessível e adaptável para iniciantes.
Essa acessibilidade ao esporte também aparece no nome do projeto, “Futsal Feminista”, que não foi escolhido por acaso.
“Eu já estudava feminismos antes de entrar no doutorado. Quando meu orientador perguntou qual seria o nome do projeto, o termo ‘feminista’ surgiu naturalmente como uma forma de refletir sobre a presença de uma treinadora mulher e o espaço dedicado exclusivamente às mulheres”
Martina Burch
Coordenada pelos professores Guy Ginciene e Carine Collet, a ação conta com uma equipe de treinadoras, além de Martina. Uma das técnicas é Amanda Borges, que iniciou sua trajetória no projeto como aluna e, após ser selecionada para uma bolsa de iniciação científica, passou a auxiliar nas aulas e na organização do projeto. Com o tempo, mais confiante para liderar as atividades, Amanda assumiu o papel de treinadora, dividindo as aulas com Martina.
Em uma trajetória semelhante, Letícia Freitas começou na primeira temporada da ação como aluna, passando a integrar, tempos depois, a comissão técnica, no papel de auxiliar nas aulas e na montagem da quadra. Recentemente, passou a conduzir a atividade de aquecimento. Apesar do nervosismo, Letícia recebeu apoio e incentivo das colegas, destacando essa experiência como fundamental no desenvolvimento de suas habilidades de comunicação em aula.
Com mais de dois anos de atividades, o projeto tem atraído mulheres com idades entre 17 e 64 anos. “Observamos um crescimento no interesse de mulheres mais velhas, influenciadas por participantes anteriores”, aponta Martina. Isso demonstra que o impacto do projeto vai além do aspecto técnico, pois proporciona um espaço acolhedor.
Jogadora iniciante e integrante do Futsal Feminista, Alessandra de Lima comenta que a iniciativa é um espaço em que ela pode praticar o esporte sem julgamentos. “Minhas primeiras lembranças com o futebol e o futsal remetem ao período escolar, onde raramente participava das partidas porque as meninas costumavam ficar sentadas e os meninos não eram convidativos, jogava mais com meu irmão em casa”, conta.
Cristiane Mendonça, outra participante, revela algo semelhante. Ela nunca havia jogado futebol antes, pois foi direcionada a outros esportes na infância. “Sempre me foi dito que futebol era para meninos”, lembra. Ao ser incentivada por uma conhecida, inicialmente hesitou devido à falta de experiência, mas decidiu se juntar ao projeto.
“Foi uma ótima decisão. As treinadoras têm muita paciência para explicar o básico para pessoas que, como eu, não tiveram contato anterior com o futebol. Depois, é entusiasmante ver a minha evolução e a das outras atletas. No projeto, vibramos por cada conquista individual e coletiva”
Cristiane Mendonça
Valorização e respeito crescentes
“Essa medalha de prata é um marco que mostra que o futebol de mulheres pode muito”, diz Silvana Goellner, referindo-se à medalha de prata recentemente conquistada pela seleção feminina de futebol nas Olimpíadas de Paris. A edição de 2024 dos Jogos Olímpicos marcou um ponto de inflexão significativo para o futebol feminino, com a CBF oferecendo um apoio institucional robusto pela primeira vez. Silvana destacou a presença do presidente da entidade durante toda a final da competição, um gesto que mencionou ser inédito e que simboliza um novo nível de valorização e respeito pelo futebol feminino. Na ocasião, a CBF também financiou a presença de familiares das jogadoras e celebrou a conquista com um grande painel em sua sede, enfatiza Silvana.
A pesquisadora destaca também como as políticas de indução foram cruciais para o avanço do futebol feminino. Um exemplo é a determinação, em 2019, da Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) de que todos os clubes que competem nos principais torneios organizados pela entidade (como a Copa Libertadores e a Copa Sul-Americana) estabeleçam e mantenham equipes femininas. “Se não fosse essa política nós não teríamos Grêmio, Internacional, Corinthians, Santos, Cuiabá [com equipes femininas]. Então, essa política de indução foi importante. O cenário que a gente vê hoje resulta disso”, conta Silvana. A decisão visava aumentar a visibilidade e a profissionalização do futebol feminino na região, melhorando a infraestrutura, oferecendo melhores condições de treinamento e criando uma base mais sólida para o crescimento do esporte.
No entanto, Silvana faz uma observação crítica sobre o estado atual do futebol feminino no Brasil. Para ela, a seleção brasileira feminina é apenas a parte visível de uma estrutura que é muito mais complexa e desigual. Silvana apontou que a realidade enfrentada por muitas jogadoras e clubes fora do cenário internacional é bem diferente. Muitas equipes ainda lutam com condições precárias, falta de infraestrutura e escassos recursos. A disparidade entre o tratamento dado à seleção e a realidade das competidoras em níveis inferiores reflete um desequilíbrio persistente no futebol feminino.
As treinadoras do projeto Futsal Feminista também apontam a disparidade entre o futebol feminino e masculino na cobertura da mídia, o que influencia outros fatores, como apoio público, que pode ser avaliado na pouca presença deste nos estádios em jogos de mulheres. “Enquanto o futebol masculino domina quase toda a cobertura, o feminino é relegado a uma pequena fração, o que influencia a percepção e o interesse público”, observa Letícia.
Além disso, os estereótipos de gênero continuam a afetar o futebol feminino de várias maneiras. As jogadoras enfrentam questões relacionadas à aparência e ao cumprimento de normas de feminilidade que não se aplicam aos jogadores homens. “Houve um campeonato paulista em que as mulheres não podiam jogar com o cabelo curto, tinham que usar short curto, tinham que ter uma determinada idade para jogar. Ou seja, parece mais uma lista para ser uma modelo do que para jogar futebol”, exemplifica Martina.
“Acho que hoje tá se tentando mudar um pouco, mas às vezes o futebol feminino está muito preso nesse estereótipo e até as perguntas que fazem para as jogadoras são muito sobre a questão da família, de quando vão ter filhos. Essas perguntas não fazem a um jogador homem”, completa a doutoranda.
São questões como essas que demonstram como não é possível comparar o futebol feminino ao masculino, afinal o estigma não está somente no trabalho que é feito, mas no gênero de quem o faz. Neste caso, ao mudar o gênero, muda-se toda a perspectiva do esporte: o olhar que é dado, tanto institucional como público; a receptividade, as cobranças e as interações que são feitas.
Felizmente, olhando o futebol feminino sem comparações externas, em relação há 20 anos, há uma evolução. O futuro do futebol feminino, segundo Silvana, é promissor, a crescente atenção acadêmica e a visibilidade das conquistas das atletas são sinais positivos, mas a jornada para uma estrutura sólida e um reconhecimento verdadeiramente equitativo continua. A medalha de prata olímpica de 2024 não é apenas um marco de sucesso, mas um lembrete de que a luta por igualdade no esporte ainda está em curso.
A importância de políticas públicas de longo prazo e do apoio institucional para garantir que o futebol feminino não apenas alcance, mas supere as barreiras que ainda persistem, é uma questão destacada por Silvana. A trajetória das mulheres no esporte vem de uma história longa de resistência e dedicação; a luta estabelecida pelas pioneiras do futebol não acabou, e segue sendo o reflexo da luta por justiça e igualdade em toda a sociedade.