Publicado originalmente em ObjETHOS. Para acessar, clique aqui.
Kalianny Bezerra
Doutoranda do PPGJOR/UFSC e pesquisadora do objETHOS
*Edição e colaboração: Raphaela Ferro – doutoranda do PPGJor/UFSC
Desde 19 de novembro, parte da população de todo o globo tem parado para acompanhar os jogos da Copa do Mundo de Futebol Masculino de 2022. Este ano, entretanto, o foco não está apenas nos muitos resultados inesperados das partidas, no fato de essa ser a última copa com 32 países, ou em quem será o grande campeão. A 22ª edição do Mundial, realizada no Catar, é marcada por outros fatores, fora do campo, que envolvem abusos nas relações trabalhistas com pessoas migrantes, principalmente de países da África, entre outros ataques aos direitos humanos. Relatórios sobre essas temáticas foram publicados pelas organizações Human Rights Watch e Anistia Internacional recentemente.
Não pretendo mergulhar especificamente nesse assunto, mas é impossível não o citar e, acredito, ser de extrema importância ter as questões que envolvem o país que hoje recebe a Copa do Mundo expostas. É por isso que gostaria de pedir a você, que resolveu abrir esse texto e continuará a leitura, para que tenha em conta que não dá para dissociar esporte, futebol, política e direitos humanos. A história já ofereceu vários exemplos dessa impossibilidade de dissociação, o que é reforçado, mais uma vez, quando, no país que sedia o Mundial, pessoas do mesmo sexo são criminalizadas e às quais são aplicadas penas de prisão, ou quando as condições de trabalho dos operários das obras da copa são análogas a de escravidão, ou ainda quando as mulheres no país não têm direitos assegurados.
É sobre elas, na verdade, que quero falar: as mulheres. Se a ausência de mulheres na arquibancada chamou a atenção no primeiro dia de jogos, há, por outro lado, muitas delas conquistando espaços inéditos quando consideramos o recorte de gênero. Em 92 anos de história da Copa do Mundo de Futebol Masculino, assistimos pela primeira vez uma mulher participando da equipe de arbitragem. Também tivemos um trio totalmente feminino apitando o jogo entre Costa Rica e Alemanha, entre elas a brasileira Neuza Back. Mas como ficar satisfeita sabendo que dos 129 árbitros apenas seis são mulheres? Será mesmo razoável que só agora, em 2022, ocorra a primeira vez em que uma mulher atua em uma função no futebol?
Antes de continuar, um adendo: é necessário esclarecer que essa escolha da Federação Internacional de Futebol (FIFA) não é inocente ou vem de uma preocupação com a inclusão de mulheres no futebol. Essa definição tem muito a ver com a necessidade de fugir ou minimizar as controvérsias e violações aos direitos humanos – alguns dos quais já citamos – que envolvem o Catar.
No Brasil, também observamos na cobertura jornalística momentos inéditos. Nesta Copa do Mundo, tivemos pela primeira vez na TV aberta brasileira a narração de uma mulher em uma partida do Mundial de Futebol Masculino. Na Globo, Renata Silveira narrou o jogo entre Dinamarca e Tunísia, em 22 de novembro. Depois dessa primeira partida, ela esteve à frente de outros oito, o último foi a partida das oitavas de final entre Holanda e Estados Unidos. Ela é a única mulher de um grupo formado por seis narradores. Silveira também foi a primeira a narrar um jogo na Rádio Globo (RJ), em transmissão pelo site da emissora carioca, no Mundial de 2014. Em 2018, ela ganhou um concurso realizado pela antiga Fox Sports para apresentar jogos daquele mundial no canal fechado.
Outro importante marco na cobertura da Copa que está em andamento é a participação de Ana Thaís Matos nos comentários dos jogos da seleção brasileira na TV Globo. Ela é a primeira mulher a ocupar esse posto na história da transmissão desse evento esportivo. A jornalista teve atuação de destaque na cobertura esportiva pelas rádios Globo e CBN, foi comentarista do programa Troca de Passes, no Sportv, e, em 2019, foi a primeira mulher a comentar um jogo do Brasileirão Masculino. Naquele mesmo ano, também atuou na Globo comentando os jogos da Copa do Mundo de Futebol Feminino.
Preconceito e machismo
Esses são fatos que, sem dúvida, devem ser comemorados. Mas, por que não celebramos tais feitos muitos antes? Por que apenas em 2022 tivemos na tv aberta brasileira mulheres comentando e narrando jogos pela primeira vez? Qual é a razão para tais espaços não terem sido ocupados antes? Há, sim, um total desequilíbrio – para dizer o mínimo – sustentado por uma sociedade que se enraíza e está acostumada a colocar as mulheres em caixas. No futebol, no jornalismo e no jornalismo esportivo, as raízes do sexismo também são históricas. O futebol, por exemplo, ainda é considerado como um espaço de afirmação da masculinidade, como analisa Araújo em sua dissertação de mestrado sobre a cobertura da Copa do Mundo de Futebol Feminino realizada em 2019.
Dairan Paul, há duas semanas também em comentário para o objETHOS, destacou, a partir de uma discussão sobre os conceitos de feminilização e feminização debatidos por Andressa Kikuti, Jacques Mick e Paula Melani Rocha, o fato de jornalistas mulheres não receberem tratamento igualitário nas redações ainda que no Brasil essa consista em uma profissão exercida majoritariamente por elas. Mesmo que consigam ocupar espaços, isso não significa que elas assumam cargos de liderança. A diferença dos cargos de chefia e entre remuneração são notórias.
No jornalismo esportivo, mais especificamente na narração esportiva, a voz das mulheres ainda é observada com estranhamento. Raphaela Ferro, em artigo que mapeia a presença feminina na narração em veículos de rádio, televisão e internet, aponta para o escanteamento dessas profissionais. Em mapeamento feito por Ferro, por exemplo, apenas na década de 1970 que tivemos a primeira narradora de futebol no Brasil, Zuleide Ranieri, na Rádio Mulher. “O esporte, como área considerada reduto masculino, mesmo no Jornalismo, é espaço em que, muitas vezes, a presença feminina é vista com incômodo e alvo de preconceito”, ressalta a pesquisadora.
Prova desse preconceito e do machismo que circunda essa temática está expressa no comportamento do próprio colega de bancada da comentarista Ana Thaís Matos, Galvão Bueno, narrador do torneio na Globo desde 1974. Nos dois primeiros jogos da seleção brasileira, ele ignorou em diversas oportunidades os apontamentos feitos por Matos. O fato não passou despercebido nas redes sociais. Segundo a Fórum, Galvão apagou diversos comentários em seu perfil do Twitter que o acusavam de machismo. No terceiro jogo do Brasil, contra o time de Camarões, o narrador adotou uma postura diferente e interagiu mais com Ana Thais, mas o desrespeito foi demonstrado novamente quando ele errou o nome da colega, e também ao reagir com dúvida sobre alguns apontamentos da comentarista.
Ainda que as oportunidades estejam surgindo, é preciso se perguntar quanto tempo mais demoraremos, por exemplo, para ver um grupo completo de mulheres narrando e comentando um jogo da seleção brasileira – e, mais, quanto tempo será preciso para que a presença não só de mulheres, mas de pessoas negras e não heteronormativas não causem estranhamento nesses espaços. As oportunidades podem até existir, mas elas ainda são ínfimas e não há nenhuma garantia de que os postos de trabalho sigam abertos para as mulheres quando o ímpeto dessas primeiras vezes passar. Pode parecer óbvio questionar sobre isso – mas, acredite, não é –, como pode em 2022 jornalistas mulheres que cobrem esportes ainda encontrarem tantas barreiras e sofrerem tantos abusos quando, na verdade, elas apenas estão tentando ocupar um espaço que o tempo todo é tirado à força delas? O que faz ser considerado “razoável” que ainda hoje existam funções profissionais negadas às mulheres?