“Redes sociais não são terra de ninguém”, “liberdade de expressão não é liberdade de agressão” e “o que é proibido na vida real deve ser proibido no mundo virtual” são algumas frases repetidas incontáveis vezes durante os 22 meses em que o ministro Alexandre de Moraes ocupou a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Nesta segunda-feira (3), Moraes deixa o posto para a ministra Cármen Lúcia e um legado marcante de enfrentamento da desinformação pelo Judiciário brasileiro.
Quando assumiu o cargo, Moraes disse que a Justiça seria “implacável” contra informações falsas. Em seu discurso de despedida do Tribunal, na sessão plenária do último dia 29 de maio, o ministro avaliou que houve um avanço “para demonstrar que a lavagem cerebral feita por meio de algoritmos não transparentes, e em alguns casos viciados, por algumas bolhas, continuará sendo combatida pela Justiça Eleitoral”.
Como presidente do TSE, foi o responsável por organizar o pleito eleitoral de 2022, marcado por diversos episódios de violência, intensa polarização, desconfiança das urnas eletrônicas e intensos ataques às instituições democráticas, que culminaram nos atentados contra a democracia, em Brasília, no dia 8 de janeiro.
“Apesar dos ataques e bombardeio de desinformação na tentativa de retirar credibilidade das eleições, do Tribunal Superior Eleitoral, das urnas eletrônicas e da própria democracia, o eleitorado acreditou na Justiça Eleitoral, acreditou que as instituições brasileiras são fortes e que o Poder Judiciário brasileiro não se acovarda mediante agressões e populistas extremistas que se escondem atrás do anonimato das redes sociais”, disse Moraes em relação aos ataques sistemáticos contra o TSE e a democracia.
No relatório da sua gestão, o ministro apontou como os últimos dois anos representaram um marco para todas as instituições democráticas e reforçou o enfrentamento à desinformação e as ações do Tribunal nesse período. “Foi preciso declarar guerra à desinformação e combater, de maneira veemente, a propagação de fake news”, diz o documento.
Entre as ações citadas no relatório está o Programa de Enfrentamento à Desinformação, instaurado ainda na gestão anterior, em fevereiro de 2022. No âmbito do programa, o TSE realizou parcerias com plataformas digitais, Congresso Nacional, agências de checagem, veículos de imprensa – como o *desinformante -, provedores de internet e partidos políticos. A inauguração do Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia (CIEDDE) também foi apresentada pela gestão como um avanço um avanço na pauta.
Regulamentação do uso de IA nas eleições de 2024 é destaque
Outro ponto destacado no relatório é o avanço da regulamentação do uso de inteligência artificial nas eleições de 2024, que inclui questões como proibição das deepfakes, obrigação de aviso sobre o uso de IA na propaganda eleitoral e restrição do emprego de robôs para intermediar contato com o eleitor. As resoluções do Tribunal – que foram realizadas na gestão Moraes, mas editadas pela então vice-presidente, ministra Cármen Lúcia – também trazem um ponto que foi considerado polêmico: a responsabilização das plataformas digitais.
O texto da resolução aborda que as big techs serão responsabilizadas se não retirarem do ar, imediatamente, conteúdos com desinformação, discurso de ódio, ideologia nazista e fascista, assim como falas antidemocráticas, racistas e homofóbicas. A responsabilidade se assemelha à visão do ministro, que diversas vezes equiparou as plataformas digitais aos veículos de comunicação tradicionais.
“Esse Tribunal Superior Eleitoral dá o exemplo da necessidade de rompimento dessa cultura de impunidade das redes sociais, seja com as decisões e regulamentações das Eleições 2022, seja agora, recentemente, com a aprovação, sob a relatoria da ministra Cármen Lúcia, das novas resoluções para as Eleições 2024”, disse Moraes na sua despedida ao destacar o avanço na regulamentação.
“A liberdade que a Constituição garante a todas e a todos deve ser utilizada numa sociedade democrática com responsabilidade. Todos têm liberdade para fazer o que bem entender, e todos devem ter coragem para lidar com as responsabilidades dos seus atos. Não é possível que, num mundo complexo como o nosso, o único sistema que não tenha regulamentação seja o sistema das redes sociais”, acrescentou o ministro.
A fala demonstra também como a passagem de Alexandre de Moraes pela presidência do TSE foi marcada por inúmeros acenos ao legislativo na cobrança de uma regulação de plataformas digitais no Brasil. Em setembro do ano passado, o ministro disse que o Congresso estava “devendo” a regulação, mês passado reforçou que, sem uma regulação, novos ataques à democracia podem acontecer. O tópico também foi lembrado na abertura do ano judiciário e no ‘aniversário’ do 8 de janeiro.
Discreta, Cármen Lúcia sinaliza que o combate à desinformação continua prioridade
Atual vice-presidente do TSE, a ministra Cármen Lúcia assumirá o Tribunal nesta segunda-feira (3) com o desafio de organizar as eleições municipais de 2024. Seu vice-presidente será o ministro Kassio Nunes Marques. Na despedida de Moraes, a ministra citou o colega como incansável na defesa do TSE contra diversos ataques, enaltecendo o trabalho nos últimos dois anos, o colocando como “a pessoa certa, na hora certa”.
Considerando que Moraes dividiu muitas opiniões com suas decisões e provocou polêmicas, comentaristas destacam que a mudança da gestão – que ocorre a cada dois anos – vai ser marcada também por uma mudança de posição e de ‘estilo’, em que o embate será substituído por uma gestão mais “centrada” e “equilibrada”.
Ainda que com uma postura mais discreta, a ministra vem indicando que o combate à desinformação continuará sendo uma das principais bandeiras no seu período à frente da Corte, sobretudo com o crescimento da utilização de Inteligência Artificial.
Durante seminário sobre IA e eleições em maio passado, a ministra afirmou a respeito da desinformação: “Eu me sinto como me senti em 2020: há uma pandemia de mentiras”. Apesar de reconhecer que mentiras em corridas eleitorais sempre existiram, Cármen Lúcia pontuou que o contexto atual se diferencia do passado pela velocidade, volume, viralização e verossimilhança da desinformação produzida e disseminada nos ambientes digitais. “Nesse cenário, é fácil criar ditaduras”, concluiu.
As digitais da ministra também estão em um treinamento, já em andamento nos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs), para capacitar juízes a identificar o uso da IA nas eleições.