Publicado originalmente em Instituto Palavra Aberta. Para acessar, clique aqui.
Essencial às democracias, o jornalismo local tem sido minado nos últimos anos a partir de um ambiente de negócios que retirou de suas arrecadações grande parte dos investimentos em publicidade. Nos Estados Unidos, por exemplo, morrem dois jornais por semana. No Brasil não é muito diferente. Há, entretanto, sinais de mudança neste cenário. No mais recente censo do Atlas da Notícia, segundo Sérgio Lüdtke, presidente do Projor – Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo, pela primeira vez o número de municípios com alguma iniciativa jornalística em atividade superou o número de desertos, lugares em que o jornalismo local está ausente e as pessoas não recebem notícias sobre o lugar onde vivem por meio do jornalismo. “Essa ocupação crescente é possível graças a novas iniciativas digitais, que não encontram muitas barreiras para iniciarem suas atividades, mas que têm enormes desafios de sustentabilidade no médio e longo prazo”, diz Lüdtke em entrevista exclusiva ao Palavra Aberta.
De acordo com o jornalista, que também é editor do Projeto Comprova (um grupo de checagem de fatos que reúne jornalistas de mais de 40 veículos), a ausência de jornalismo local abre portas para a desinformação. Em ano eleitoral, como é 2024, os desertos de notícias também beneficiam políticos interessados em enviesar o debate, com chances de influenciar o resultado de eleições. “Mesmo precarizado, o jornalismo tem compromissos com as comunidades com as quais se conecta e das quais depende. É o jornalismo que fiscaliza o poder público e que medeia debates”, afirma. Leia a entrevista na íntegra:
Palavra Aberta – Estudos mostram que o jornalismo local está em declínio. Qual é o risco disso em ano de eleições municipais?
Sérgio Lüdtke – A precariedade do jornalismo local abre as portas para a desinformação, o que beneficia políticos que querem enviesar o debate e pode influenciar o resultado das eleições. Precisamos pensar no que está colocado no lugar do jornalismo já que ele muitas vezes é o único ausente nos debates públicos locais. Mesmo em municípios considerados desertos de notícias, as redes sociais e os aplicativos de mensagem estão presentes e por eles passam informações, desinformação e outros conteúdos. Mesmo precarizado, o jornalismo tem compromissos com as comunidades com as quais se conecta e das quais depende. É o jornalismo que fiscaliza o poder público e que medeia debates.
Palavra Aberta – Qual é a “fotografia” do jornalismo local mostrada pelo Atlas da Notícia, do Projor?
Sérgio Lüdtke – O jornalismo local vem ocupando um território cada vez maior tanto que no último censo do Atlas pela primeira vez o número de municípios com alguma iniciativa jornalística em atividade superou o número de desertos, lugares em que o jornalismo local está ausente e as pessoas não recebem notícias sobre o lugar onde vivem por meio do jornalismo. Essa ocupação crescente é possível graças a novas iniciativas digitais, que não encontram muitas barreiras para iniciarem suas atividades, mas que têm enormes desafios de sustentabilidade no médio e longo prazo.
Palavra Aberta – Quais são os melhores caminhos para incentivar o jornalismo local?
Sérgio Lüdtke – Conscientização das comunidades para a importância da manutenção de veículos de comunicação locais, se possível mais de um, mas o incentivo ao jornalismo local, disso não tenho dúvidas, precisa ser visto também como política pública de municípios, dos estados e da União. Precisamos pensar em novos modelos de fomento e sustentação desses pequenos negócios – sustentabilidade que é condição para a independência jornalística – como fundos públicos e privados. Um jornalismo forte, diverso e independente é condição para o pleno exercício da democracia. E ela começa pela vida na comunidade.
Palavra Aberta – Como a IA pode impulsionar a desinformação e qual é o papel do jornalismo no combate a essa perigosa tendência?
Sérgio Lüdtke – O trabalho de verificação de fatos tem também o propósito de aumentar o custo da mentira. Certos conteúdos mais sofisticados de desinformação não eram produzidos porque custavam caro. Esse quadro vem mudando com a popularização dos instrumentos de IA generativa. Num ambiente de atenção precária como é o digital, nosso receio é que peças de desinformação criadas com camadas emocionais possam capturar as pessoas e vencer mais facilmente as barreiras do ceticismo e da já baixa capacidade de analisar criticamente os conteúdos.
Palavra Aberta – No estágio em que se encontram, as deepfakes podem tumultuar o pleito?
Sérgio Lüdtke – Receio que sim, principalmente com o uso de conteúdos em uma fase muito próxima do pleito, quando já há pouco tempo para se produzir desmentidos. Lembrando que a mentira acelera enquanto a verdade segue em marcha lenta.
Palavra Aberta – Por outro lado, como a IA pode contribuir com a atividade jornalística, incluindo a checagem?
Sérgio Lüdtke – A IA ajuda em vários aspectos da atividade, desde transição de conteúdos de áudio, tradução, resumo de documentos até mesmo no auxílio à produção de relatórios, buscas mais sofisticadas e automação na produção de conteúdos que seguem determinados padrões.
Palavra Aberta – O cenário de agências de checagem no Brasil é suficiente para enfrentar uma possível avalanche desinformativa nas eleições deste ano?
Sérgio Lüdtke – Eu acredito que para as eleições será necessário que jornalistas de meios convencionais necessitam de capacitação para monitorar, investigar e produzir reportagens investigativas com foco em desmentir peças de conteúdo viral descontextualizadas, enganosas ou fabricadas. A Abraji vai lançar em breve um curso de verificação para as eleições municipais com ênfase em IA, o que será de grande ajuda para os meios locais.
Palavra Aberta – Quais são as principais atividades do Projor neste ano, marcado por eleição?
Sérgio Lüdtke – Estamos agora com três frentes: o Codesinfo, um fundo de inovação contra a desinformação, que vai beneficiar organizações jornalísticas com recursos para desenvolvimento de tecnologias que ajudem o jornalismo a enfrentar a desinformação, e que, ao fim, terá seus resultados e metodologias obrigatoriamente compartilhado com o ecossistema de notícias; no Atlas da Notícia estamos trabalhando em um sistema de indicadores de princípios e compromissos de veículos de comunicação com o jornalismo; e estamos renovando a estrutura do Observatório da Imprensa.
Palavra Aberta – Teremos mais uma edição do Projeto Comprova?
Sérgio Lüdtke – O Comprova seguirá ativo neste ano ampliando o número de organizações de modo a ampliar também o alcance das checagens feitas pelas equipes.
Palavra Aberta – O jornalismo parece distante da educação midiática, como fazer para aproximar essas duas frentes?
Sérgio Lüdtke – No Comprova, temos seções fixas nas nossas reportagens que mostram como e por que investigamos e “o que podemos aprender” com a investigação, essa última revelando as táticas e os modos de convencimento aplicados por atores interessados em promover a desinformação. Creio que o reforço nos princípios caros ao jornalismo, como a transparência e a precisão, e o propósito de mostrar ao leitor o que distingue o jornalismo bem feito e os conteúdos produzidos com má intenção ajudem os leitores a elevar seu nível de análise crítica do que trafega por redes sociais e aplicativos de mensagens. Todo o ato jornalístico em si é um ato de letramento midiático de seu leitor.