Marisvaldo Silva Lima – O Estado Brasileiro, as comunidades quilombolas de Alcântara e a negação do direito à comunicação

Publicado originalmente em Observatório de Comunicação Pública – OBCOMP. Para acessar, clique aqui.

Marisvaldo Silva Lima, doutorando em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina, problematiza a comunicação do Estado Brasileiro na implantação da base espacial de Alcântara, nos anos 1980, e analisa como essa comunicação viola direitos humanos das comunidades Quilombolas afetadas. 

Nos dias 26 e 27 de abril de 2023, o Estado Brasileiro foi levado a julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) por conta da ação impetrada pelas Comunidades Quilombolas do município de Alcântara (MA), que denunciou violações praticadas contra moradores das 32 comunidades remanejadas na implantação do megaempreendimento militar-tecnológico do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), na década de 1980. Após 20 anos de tramitação na corte internacional, o tribunal se reuniu em Santiago, capital do Chile, para julgar as denúncias.

A análise de algumas falas públicas proferidas durante os depoimentos apresenta uma questão importante para pesquisadores da área da comunicação pública. Fica evidente que, no processo de remoção dos moradores das regiões afetadas, a comunicação, especialmente a governamental, foi uma ferramenta de violação dos direitos humanos e da plena cidadania das comunidades.

O Jornal Folha de S.Paulo publicou uma matéria reveladora dessa premissa, em 10 de maio de 1986, um dos períodos mais agudos do remanejamento sofrido pelas mais de 300 famílias alcantarenses. Conforme aponta o jornal, à época, o setor de Relações Públicas da Secretaria de Imprensa e Divulgação da Presidência da República – juntamente com um corpo técnico mais amplo – foi atuante no delineamento de abordagens comunicacionais específicas para o trabalho com a população daquela região: as formas mais eficazes de persuasão seriam o “cordel, histórias em quadrinhos sem legendas, em razão do analfabetismo, cartazes coloridos, tudo que possa ser explicativo para um tipo de gente que ainda mantém ritos tribais”, conforme a então responsável pela coordenação da equipe técnica, Maria Elizabeth von Glhen Santos.

O mesmo texto jornalístico apresenta o inusitado Pelotão de Guarda do Núcleo do CLA (NuCLA), uma espécie de cavalaria formada por jovens recrutados entre as famílias locais para servirem à Aeronáutica e, devidamente treinados, realizarem o difícil trabalho de convencimento de seus pares. Os jovens foram levados a São José dos Campos para um treinamento de seis meses e, ao retornarem, foram eles mesmos – entre outros agentes – responsáveis pela retirada “pacífica” de seus conterrâneos dos locais em que residiam. Meirelles (1983, p.31) apresenta um trecho do material de convocação dos jovens, onde fica clara a estratégia de usar sua influência sobre a comunidade e seu conhecimento da geografia da região para convencer os moradores de que sua função seria “zelar pelos interesses” “evitar a entrada de intrusos” nas terras em que residiam as comunidades. Essa “cavalaria espacial”, como citado na matéria da Folha, realizava também um trabalho de porta-voz do discurso governamental, sendo responsável pelo diálogo com lideranças e pela tentativa de persuasão dos moradores das comunidades a aceitarem o reassentamento nas novas instalações, denominadas agrovilas (SANT’ANA JUNIOR, 2006; SILVA, 2019).

Apesar dos esforços de sucessivos governos, ao longo das últimas quatro décadas, em desenvolver uma comunicação voltada aos meios jornalísticos para o convencimento dos moradores a respeito do projeto da base espacial, o que se percebe no emblemático caso de Alcântara é que, juntamente com diversas violações de direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais dessas comunidades, negou-se a eles também o direito humano à comunicação. Tanto que não houve consulta e consentimento prévio dessas comunidades, o que é garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), um dos fatores que levaram à apreciação do processo e ao julgamento pela Corte Interamericana.

Tal situação era de amplo conhecimento no Brasil, mas sistematicamente ignorada. Nos dias 4 e 5 de julho de 2019, foi realizada diligência pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, para verificar a situação dos quilombolas atingidos pelo CLA, após a assinatura do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST) entre Estados Unidos e Brasil. O relatório dessa diligência reforça como, ao longo das últimas décadas, o projeto da base de lançamentos de foguetes em Alcântara prescindiu de um diálogo com os atingidos, ao apontar que o AST “não foi precedido de qualquer consulta prévia às comunidades afetadas. A comunidade soube pela mídia, e as famílias estão adoecendo com a situação de incerteza” (CÂMARA, 2019, p. 4). Meses depois da diligência, o então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), expressou em declaração aos veículos de comunicação a seguinte posição sobre a tramitação do AST: “Só depois de aprovado o acordo é que o governo tem a necessidade de deixar claro qual é o projeto e se de fato vai afetar as comunidades. Não dá para consultar as comunidades antes de ter o acordo aprovado” (BRANDÃO, 2019, s/n). Tal afirmação ilustra a maneira com que o Estado Brasileiro tem rotineiramente desconsiderado as comunidades quilombolas.

As decisões relacionadas ao projeto da base de lançamento foram tomadas, historicamente, sem a devida participação das comunidades locais, forçadas a sair de suas casas e viverem ainda hoje sob o imperativo da possibilidade de ampliação da base e de novos remanejamentos compulsórios. A falta de comunicação efetiva entre Estado Brasileiro, o CLA e o movimento organizado dos atingidos não só tem dificultado o acesso das comunidades de Alcântara a informações relevantes sobre o projeto como afeta também a capacidade delas de se organizarem em defesa do território étnico reconhecido e de outros direitos envolvidos nesse processo.

Se tomarmos a comunicação como um dos pilares fundamentais para garantir a participação das comunidades locais no processo de tomada de decisão, devemos admitir também que a negação deste direito tem contribuído para uma situação de vulnerabilidade e marginalização dessas comunidades – portanto, um fator de desumanização.

Levado ao banco dos réus na CIDH, o Estado Brasileiro já manifestou um pedido de desculpas formal às comunidades de Alcântara e se comprometeu novamente a cumprir as determinações da Corte. Entretanto, qualquer que seja a medida reparatória determinada ao final do julgamento – titulação dos territórios, pagamento de indenizações às famílias, criação de fundo de desenvolvimento das comunidades e/ou interrupção do processo de ampliação atual –, uma mudança verdadeira de paradigma só será possível na relação entre o Brasil e suas comunidades tradicionais quilombolas se um tipo de comunicação mais horizontal for estabelecida, levando em consideração as peculiaridades étnicas, os direitos humanos e os interesses dos quilombolas. Afinal, o megaempreendimento tecnológico entranhado no litoral maranhense está lá e não pretende sair, ao que consta.

Referências

BRANDÃO, Francisco. Rodrigo Maia quer colocar acordo de Alcântara em votação. Câmara dos Deputados. Relações Exteriores. 2019. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/600341-RODRIGO-MAIA-QUER-COLOCAR-ACORDO-DE-ALCANTARA-EM-VOTACAO

CÂMARA. Diligência para verificar a situação dos quilombolas atingidos pelo Centro de Lançamento de Alcântara. Brasília: Câmara dos Deputados, 2019, 7p. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/arquivos/relatorio-final-alcantara

MEIRELLES, Sérgio. Alcântara na era espacial. São Luís, MA: Cáritas Brasileira, 1983. (Série Transformações Recentes).

SANT’ANA JUNIOR, Horacio Antunes de. Trajano: a difícil relação entre projetos espaciais, definição de território e manejo de recusos naturais. In: ANDRADE, Maristela de Paula; SOUZA FILHO, Benedito (Orgs.). Fome de Farinha: deslocamento compulsório e insegurança alimentar em Alcântara. São Luís: EDUFMA, 2006. p. 145-178.

SILVA, Adriana Monteiro da. Tapuitapera na rota dos foguetes: o impacto social da instalação do Centro de Lançamento de Alcântara e a construção de sequências didáticas para o Ensino Fundamental de História. Dissertação (Mestrado) – PPGHIST- Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Estadual do Maranhão, 2019.

Marisvaldo Silva Lima
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGJor/UFSC), bolsista Fapesc/CAPES e membro do Grupo de Estudos em Direitos Humanos e Jornalismo (DHJor). Contato: mlimajornalista@gmail.com

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