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Sociobiodiversidade | Com a ressignificação do uso da fruta e o resgate de conhecimentos históricos, relações com os butiazais podem gerar renda, proporcionar saúde e preservar o ecossistema
*Foto: Paulo Lanzetta/Embrapa
Todo gaúcho já deve ter ouvido, ao menos uma vez na vida, a expressão “Me caiu os butiá (sic) do bolso”. Bastante conhecido, o dito popular é usado no Rio Grande do Sul em situações em que as pessoas se sentem surpresas ou indignadas. O que muita gente não sabe é que, para além da expressão, o butiá é uma fruta muito usada na produção, principalmente caseira, de cachaça. Embora seja uma fruta nativa, ela não é encontrada com facilidade em mercados e quase todas as nove espécies de palmeiras estão em extinção.
Grande parte das pessoas não tem o hábito de consumir o butiá e também não entende o porquê de a fruta ser tão importante, ao ponto de estar numa expressão popular tão conhecida na região. Para outras, porém, o butiá é mais do que uma fruta, podendo ser parte da história da família, fonte de renda ou até objeto de estudo com grande potencial.
Joseane dos Santos faz parte do quilombo Chácara da Cruz, em Tapes. Apesar de Joseane não morar no quilombo, a família dela tem forte relação com o local. A história desse quilombo está ligada à cultura de um artesanato em que se utilizam as folhas do butiá. Quando a comunidade quilombola se formou, uma das principais formas de renda dos integrantes era a produção de cordas, tranças, colchões e estofados para banco de carros a partir das folhas do butiá. Os homens do quilombo buscavam a matéria-prima para as mulheres produzirem o artesanato e venderem no porto da cidade. Joseane afirma que “o butiá foi tudo”, pois a comunidade era analfabeta e a palmeira ajudou na sobrevivência de todos: foi através da renda desse artesanato que conseguiram juntar dinheiro e comprar o território que pertence ao quilombo.
Atualmente, não há mais a produção desses artesanatos. O local onde os butiazais estão foi ocupado por outro proprietário, e Tapes passou por mudanças em sua dinâmica econômica, voltando-se a produção da região para o arroz e a soja. Joseane relata que muitas das pessoas que produziam a partir de folhas não estão mais vivas ou não falam sobre o assunto; há uma ferida ainda não cicatrizada em relação às terras, que são objeto de disputa judicial. O uso do butiá no quilombo se restringe ao consumo interno com algumas receitas e compotas, porém a fruta faz parte da história do local e dos seus integrantes.
O artesanato com palha de butiá também foi uma forma de sustento e moeda de troca para diversas mulheres na região de Torres. Em agosto deste ano, o artesanato se tornou Patrimônio Imaterial do Rio Grande do Sul. O processo de salvaguarda foi iniciado pela organização não governamental Instituto Curicaca nos anos 2000; o de registro para a patrimonialização, em 2015. A coordenadora de Pessoas, de Educação e Cultura do Instituto Curicaca, Patrícia Bohrer, afirma que agora esse fazer artesanal está sendo tirado da invisibilidade a que esteve relegado nos últimos anos.
O levantamento sobre a produção do artesanato ocorreu por meio de entrevistas com as mulheres que tinham seu sustento tirado das tranças do butiá. Era com a renda desses artesanatos que muitas delas compravam material escolar para os filhos, tecidos para roupas ou tinham momentos de lazer. Esse processo estava sendo perdido: as gerações mais jovens não têm interesse em aprender; os butiás vêm sendo extintos e os produtos de interesse do mercado mudaram. Com a patrimonialização, entretanto, há o resgate desse conhecimento que foi importante para várias gerações. Patrícia complementa que “o imaterial é justamente isso, o que toca o coração da gente e que provoca um desejo de continuidade de transmissão”.
Preservação: isolamento de áreas ou busca de formas de utilização?
O registro do artesanato não foi o único trabalho do Instituto Curicaca na região do litoral norte gaúcho. O Instituto atua entre Torres e Osório tentando entender as relações, as perdas e as possibilidades de uso do butiá, embora as atividades se concentrem em Torres, onde existiam mais interações socioculturais com a fruta. Essas interações foram percebidas nos relatos sobre a importância que o butiá já teve para a região.
A professora do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR) da UFRGS Gabriela Coelho explica que há uma relação entre a diversidade biológica e a diversidade cultural. A primeira é composta pelas várias espécies que existem em diferentes ambientes, enquanto a segunda envolve os grupos que se relacionam com a biodiversidade de maneira mais aproximada — indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco, entre outras comunidades. Essa relação intrínseca é a sociobiodiversidade. “Essas espécies também têm um significado cultural muito grande, e muitos desses grupos são responsáveis, inclusive, pela distribuição dessas espécies no território nacional”, pontua Gabriela.
O coordenador técnico do Instituto Curicaca, Alexandre Krob, relata a realização do monitoramento dos butiás do tipo Butia catarinensis remanescentes no litoral norte gaúcho por meio de idas aos locais e verificação via satélite. Se entre 2008 e 2010 havia cerca de 120 hectares de butiazais, no ano passado se constatou a perda de quase 15% dessa população. Dessa forma, o instituto deu início a um projeto de recuperação desse ecossistema, com o objetivo de preservar as espécies ainda existentes e plantar novas.
Replantar os butiazais não é uma tarefa simples. Essas palmeiras não crescem com facilidade, e a maioria dos indivíduos que permanecem em pé têm séculos de existência. O butiá leva até três anos para germinar e não são todas as sementes que chegam a completar esse ciclo. De acordo com a doutoranda em Botânica na UFRGS Bruna Barato, uma vez que os butiás precisam de determinada elevação de temperatura em um espaço de tempo para começar a se desenvolver, as mudanças climáticas impedem a planta de germinar. Além disso, as sementes precisam romper duas barreiras: a da própria semente e a do coquinho em que ela está inserida.
A iniciativa do Instituto Curicaca conta com a parceria da Farm, conhecida marca de vestuário, e do Laboratório de Sementes da Secretaria Estadual da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação. Para obter as mudas que serão plantadas, o instituto traz as sementes para o laboratório, que realiza um processo de quebra do período de dormência, acelerando a germinação. As sementes que germinam ficam em uma estação de pesquisa por um ou dois anos até estarem aptas para irem ao campo. Parte dessas mudas irá para áreas de preservação, enquanto outras serão destinadas a propriedades privadas. Nessas propriedades será possível fazer uso das frutas e das folhas, e uma das intenções é que as pessoas voltem a utilizar, de forma adequada, tudo que o butiá pode oferecer.
O Instituto Curicaca também atuou na região de Quaraí, na Fronteira Oeste do estado. Alexandre esclarece que a perda dos butiás em Torres tem maior relação com a urbanização, enquanto em Quaraí o problema é a expansão da pecuária. Além da dificuldade em germinar, os butiás da região enfrentavam o gado se alimentando e pisando nas mudas. Neste caso, foram implementadas ilhas de biodiversidade, afastando o gado por algum tempo até que as espécies se restabelecessem e tivessem mais força.
Gabriela comenta que há diferentes formas de preservação. Uma delas é a preservação ambiental que isola áreas de forma mais permanente e impede que haja uma grande circulação de pessoas; nesses casos, há a necessidade de monitoramento constante. Outra perspectiva é a de conservação pelo uso, que entende que quanto mais as pessoas se envolvem e criam vínculos com determinado ecossistema, mais irão colaborar para a preservação. Nesse sentido, há dois caminhos: um é entender o quanto se pode extrair sem prejudicar a espécie; outro é perceber que há povos que sabem como se relacionar sem prejudicar essas espécies, incentivando o contato dessas populações com a natureza.
A Rota dos Butiazais/Red Palmar é uma rede de pessoas interessadas em preservar pelo uso os ecossistemas de butiazais. Atualmente há pessoas que fazem parte da Rota no Brasil, Uruguai e Argentina, conectando 66 municípios. Essa rede conecta diferentes grupos — instituições públicas, privadas e não governamentais, pesquisadores, agricultores, etc. —, compartilhando conhecimentos, resgatando e ressignificando os usos do butiá. Através da rota foram realizados diversos estudos científicos, oficinas e seminários, produzidos materiais de divulgação, além do resgate de butiazeiros ameaçados.
O butiá na cozinha
Uma das produções da Rota dos Butiazais é o livro “Butiá para todos os gostos“, com pelo menos 150 receitas, entre doces e salgados, a partir do fruto. Além das receitas, o livro apresenta imagens das frutas, palmeiras, flores, folhas e iguarias preparadas. Está disponível gratuitamente para acesso no site da rota.
Explorar o potencial de frutas ameaçadas de extinção e promover o conhecimento sobre suas propriedades nutricionais também foi o objetivo do Biodiversity for Food and Nutrition (BFN), projeto realizado em parceria entre várias instituições do mundo, entre elas a UFRGS. Coordenadora do projeto na região Sul do Brasil, a professora do Programa de Pós-graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde da UFRGS Vanuska Lima conta que o BFN foi responsável por realizar a análise nutricional e criar receitas com o butiá e mais 15 frutas nativas.
Foi no Instituto de Ciências e Tecnologia de Alimentos (ICTA) da UFRGS que ocorreu a análise da composição química e dos macro e micronutrientes das frutas selecionadas para o projeto. A partir dos estudos, observou-se que o butiá é rico em vitamina C e carotenoides. Esses carotenoides têm função antioxidante no organismo e suas subfrações ajudam na visão e diminuem o risco de câncer e de doenças cardiovasculares. Vanuska ressalta que, por ser uma fruta nativa da região, os nutrientes se encontram em sua melhor “performance” e por isso deve ser dada preferência ao seu consumo. As informações nutricionais completas do butiá podem ser encontradas na plataforma SiBBr.
A tecnóloga em gastronomia Juliana Severo esteve envolvida com a criação das receitas do BFN, realizadas em parceria com o curso de Nutrição da UFRGS. Ela relembra que foram produzidos diversos pratos, que passaram por degustação e avaliação de alunos e professores. “Teve algumas [receitas] que foram unanimemente consideradas boas, e outras que foram unanimemente consideradas não boas.” Parte das receitas envolvendo o butiá foram criadas em um concurso de receitas em Giruá, município que realiza uma feira sobre a fruta. Entre os resultados do projeto, estão receitas de arroz doce, biscoito, escondidinho, bolo de legumes e pizza subtropical – tudo com o butiá.
Levar para o mercado uma bebida produzida com frutas nativas e de impacto socioambiental positivo é o objetivo do Gasosa Biodiversa. A ideia de Augusto Antunes André e Nilton Tavares tomou forma em um curso de extensão de Empreendedorismo para a Sociobiodiversidade, promovido pelo Círculo de Referência em Agroecologia, Sociobiodiversidade, Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (AsSsAN CR). Atualmente o produto está sendo incubado pela Incubadora Tecnológica Empresarial de Alimentos e Cadeias Agroindustriais (ITACA), do ICTA da UFRGS. A bebida já existe, mas no momento sua produção está pausada, aguardando solução de questões burocráticas. Augusto e Nilton ressaltam o foco no orgânico e na sociobiodiversidade. “Não há futuro sem uma agricultura sustentável”, afirma Augusto.
Enquanto era pós-doutoranda e professora colaboradora do PGDR, Tatiana Miranda pesquisava temas relacionados à etnoecologia e à conservação pelo uso. Decidiu sair da teoria e aplicar os conhecimentos na prática, empreendendo na área de gastronomia: em 2019, começou a idealizar a Cozinha Erva Doce, que mantinha junto com a rotina na Universidade. Neste ano, o empreendimento ganhou um local físico. Atualmente, ela comercializa uma tortelete com geleia de butiá e bolo caseiro da fruta. Um dos objetivos é permitir que as pessoas conheçam as frutas e percebam que é viável utilizá-las no dia a dia.
Na produção, Tatiana utiliza produtos de agricultores alinhados à sua antiga linha de pesquisa, como a Cadeia Produtiva Solidária de Frutas Nativas. Trabalhando com a valorização da sociobiodiversidade, a Cadeia Solidária faz a articulação entre agricultores, agroindústrias — responsáveis pelo processamento das frutas —, empreendimentos de comercialização e agentes de assessoria e assistência técnica.
Coordenador estadual da Cadeia Solidária, Alvir Longhi explica que a maioria dos produtores são agricultores pequenos, preocupados com a conservação ambiental, e que contribuem para a Cadeia em escalas diferentes. Algumas das frutas são extraídas de agroflorestas, enquanto outras estavam sem uso nas propriedades e os donos resolveram dar um novo destino. Alvir conta que é perceptível o impacto na geração de renda dos agricultores: há aqueles que têm quase 30% da renda dessa produção. Uma agricultora, por exemplo, conseguiu, com o comércio das frutas não utilizadas em sua propriedade, juntar dinheiro para comprar uma geladeira nova.
São relatos como os de Joseane, das artesãs de Torres, de Tatiana e dos agricultores da Cadeia Solidária que demonstram o quanto o butiá vai além de um dito popular. Eles já não ‘caem mais dos bolsos’; o que cai são as palmeiras que os sustentam, que seguem sendo extintas pela urbanização e pelos agronegócios não sustentáveis. O butiá, que já foi a principal moeda de troca para muitas famílias, foi esquecido por muitos, mas diversas iniciativas recolocam em prática seus usos em uma relação de respeito e resgate.