Mais Médicos e o vazio na atenção básica

Publicado originalmente em O Estado do Piauí por Douglas Gomes. Para acessar, clique aqui.

O programa estimula o acesso à saúde no interior do Piauí, que conta com apenas 19.7% dos registros médicos de todo o estado

Saudade. Essa é a palavra que Dona Isabel Rodrigues da Silva, comerciante de 57 anos, usa ao recordar a presença dos profissionais do programa Mais Médicos durante os momentos em que precisou de assistência para tratar a saúde dos próprios pais. Em 2014, ela deixou a cidade de São Paulo para cuidar dos pais idosos e retornou à Santa Rosa do Piauí, uma cidade situada na região da caatinga, no interior do Estado do Piauí, localizada a aproximadamente 30 km de distância de Oeiras e a cerca de 270 km da capital, Teresina.  

Santa Rosa do Piauí está entre as inúmeras cidades espalhadas por todo o Piauí que precisam da expansão do atendimento na atenção primária à saúde, devido a existência de vazios de atendimento médico.

De acordo com a plataforma Demografia Médica, desenvolvida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), há menos de um registro de médico a cada mil habitantes para a população dos 223 municípios do interior do Piauí considerados pelo estudo. 

Em 2019, após uma infecção generalizada, o pai de Dona Isabel, o sr. Antônio José da Silva, com 82 anos na época, precisou amputar a perna. Ao lembrar do cuidado prestado durante a recuperação da cirurgia, Dona Isabel fala com carinho sobre a atenção das visitas e da rotina de tratamento prestada pelo médico do programa.

“Meu pai voltou de Teresina muito mal. Achamos que ele nem ia sobreviver. Mas o atendimento médico que ele recebeu ao retornar para casa e ser acompanhado pelo médico daqui foi muito especial para ele”, relembra.

Devido à dificuldade de deslocamento e à distância de 15 minutos a pé até o posto de saúde mais próximo da casa de Dona Isabel, foi necessária uma alternativa para que o Sr. Antônio recebesse acesso aos cuidados médicos necessários: o atendimento domiciliar.

“Como meu pai não podia se locomover, eu solicitava ao agente de saúde o atendimento e em seguida o médico do Mais Médicos e os enfermeiros vinham atendê-lo. O médico visitava nossa casa de duas a três vezes por mês. Ele cuidava dos curativos do meu pai, receitava antibióticos e conversava com ele”, explica.

A comerciante também passou pelo atendimento fornecido pelo programa. “Eu sempre me consultava, pois tenho pressão alta e diabetes. O atendimento era atencioso. Sem o programa, ficou mais difícil ter acesso frequente aos médicos”, conta Dona Isabel.

“O médico visitava nossa casa de duas a três vezes por mês. Ele cuidava dos curativos do meu pai, receitava antibióticos e conversava com ele”

Vazios

De acordo com dados da plataforma Demografia Médica, desenvolvida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), o Brasil possui um número adequado de médicos ativos para suprir as demandas da população. No entanto, mesmo com um contingente significativo, que figura entre os maiores do mundo, ainda prevalece uma situação de desigualdade na distribuição, fixação e acesso aos profissionais de saúde.

Dados atualizados este ano pela Demografia Médica revelam que o Piauí conta com um total de 7.662 registros médicos, o que representa aproximadamente dois médicos a cada mil habitantes do estado. No entanto, quando se analisa a distribuição desses registros, é possível observar que uma alta concentração de 6.132 registros, equivalente a cerca de 80,03% do contingente médico do estado, está acumulado na capital, Teresina. Esse valor representa que há cerca de sete médicos a cada mil pessoas que moram na cidade.

Número de registros médicos em Teresina e perfil dos profissionais (Fonte: CFM)

Por outro lado, os 1.530 registros médicos associados ao interior indicam uma insuficiência de profissionais para atender toda a população residente nessas áreas. É menos de um médico a cada mil pessoas para a população desses municípios. Essa disparidade na distribuição médica evidencia um desafio significativo, uma vez que as áreas rurais e os municípios do interior ficam desfavorecidos no acesso aos serviços de saúde, aumentando a desigualdade no acesso à assistência médica adequada.

Número de registros médicos nos municípios do interior do Piauí e perfil dos profissionais (Fonte: CFM)

Reformulação

Após reformulação, o Programa Mais Médicos para o Brasil foi retomado este ano com a ampliação da oferta de vagas. De acordo com o Governo Federal, foram disponibilizadas 15 mil novas vagas para o programa em todo o Brasil, com uma estimativa de alcançar 28 mil até o final de 2023. Idvani Braga, coordenadora do programa Mais Médicos no Piauí, informa que o edital contemplou vagas destinadas a médicos brasileiros formados no país, formados no exterior e estrangeiros.

“Ao todo, foram disponibilizadas 64 vagas, distribuídas entre 45 municípios do nosso estado”, ressalta.

Segundo o cronograma do edital, a publicação do resultado dos médicos alocados deve ocorrer no próximo dia 15, no site do programa. As atividades desses médicos estão previstas para iniciarem a partir do fim deste mês.

Novos profissionais

No contexto de criação do Programa Mais Médicos, foi instituída a Política Nacional de Expansão das Escolas Médicas das Instituições Federais de Educação Superior. De acordo com a Portaria 15/2013, essa política teve como objetivo a criação de novos cursos de graduação em Medicina e o aumento de vagas nos cursos já existentes. Com a retomada do Mais Médicos este ano, o programa pode contar com profissionais formados graças a essa expansão de vagas iniciada em 2013.

Olhar médico

Mais sensível. É como a médica Layanne Moura, que atuou no programa Mais Médicos por seis anos, descreve como essa experiência transformou o seu atendimento. Layanne trabalhou como médica na área rural de União entre 2017 e 2023.

“O programa Mais Médicos representou na minha carreira uma consolidação enquanto profissional médica. A experiência no programa me possibilitou ser mais sensível na hora do acolhimento, me proporcionou promover um atendimento humanizado, ético, responsável, integral de cada paciente, vendo ele como uma pessoa inserida numa comunidade, numa família, num contexto socioeconômico e cultural”, afirma. 

Layanne em atividade de conscientização sobre o câncer de mama durante o Outubro Rosa (Foto: arquivo pessoal)

Além das conquistas, existiram desafios para melhorar as condições de vida e o acesso à saúde de qualidade da população do interior de União. 

“Os desafios foram enormes. Muitos. O primeiro foi fazer com que a população pudesse entender que as unidades básicas de saúde também estavam ali para prevenir doenças, como formas de informação, forma de prevenir agravos das patologias crônicas que já existiam. Para fomentar hábitos saudáveis de vida e contribuir no cuidado com a mente”, explica.

Sobre o tipo de atendimento mais necessário nessas comunidades, Layanne resume em uma palavra: resolutividade

“A população quer se sentir acolhida, escutada e acompanhada. Sua demanda era se sentir cuidada, sentir-se abraçada por uma equipe que saiba onde ela vive, como é a realidade local. Ela deseja que, a longo ou a médio prazo, esteja com seus problemas resolvidos, ou ao menos reduzidos. Na atuação da nossa equipe, quebramos aquele tipo de atendimento que era só pra renovar receitas, vendo o paciente como um todo”, comenta.

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