Publicado originalmente em Brasil de Fato por Xaman Minillo e José Luiz Luna. Para acessar, clique aqui.
Nosso sistema de direito se sustenta em nossa cultura que é cis/heteronormativa, sexista, racista e classista
Somos a sociedade que mais mata pessoas LGBTQIAP+ do mundo. Somente em 2022, 228 assassinatos tiveram relação direta com a LGBTfobia. Mais da metade das vítimas eram mulheres transexuais e travestis, e mais de um terço eram homens gays. Sabemos, no entanto, que, devido às dificuldades de se isolar gênero e sexualidade como causas específicas dessas violências, os números são maiores.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que ofensas diretas relacionadas a homofobia e transfobia devem ser equiparadas ao crime de injúria racial. Tais práticas criminosas englobam ofensas contra uma pessoa embasadas em discriminação devido a raça, cor, etnia ou origem, incluindo agora os critérios de identidade de gênero e orientação sexual. O aditivo de motivação de preconceito agrava tais injúrias, que são agora reconhecidas como um crime inafiançável e sem data para prescrever, e que pode resultar em pena de 2 a 5 anos de prisão.
:: Há 13 anos no topo da lista, Brasil continua sendo o país que mais mata pessoas trans no mundo ::
A decisão dá continuidade à decisão do STF de 2019, que estabeleceu que a homo/transfobia deveria ser enquadrada como crime de racismo – entendido como discriminação contra um grupo – após ação da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), argumentando falta de clareza sobre os crimes contra a honra, injúria e difamação.
A ABGLT tem uma história de mais de duas décadas de lutas, período marcado por violências e perdas de vidas – quem não lembra de Dandara, brutalmente assassinada nas ruas de Fortaleza? A disputa remonta ao Projeto de Lei (PL) nº 5003 de 2001, que propunha sanções a práticas discriminatórias devido a orientação sexual e, cinco anos depois, transformou-se no Projeto de Lei da Câmara (PLC) nº 122/2006, que associava crimes fruto de discriminação ou preconceito de gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero a racismo. Apesar de aprovado na Câmara, o projeto de lei não foi colocado em votação no Senado, sendo arquivado em 2014. Tal omissão foi denunciada pela ABGLT e pelo Partido Popular Socialista (PPS), o que encaminhou para o avanço de 2019.
O reconhecimento como crime de injúria racial, decisão tomada menos de um ano depois do fim de um governo que encorajava homo/transfobia, é um símbolo poderoso do combate a violências direcionadas a indivíduos, a forma mais recorrente de homo/transfobia. Ela reafirma a responsabilidade do Estado em garantir a segurança e dignidade de minorias sexuais. No cenário de disputas políticas que marcam nossa sociedade polarizada, essa é uma vitória para movimentos e instituições que lutam pelo bem-estar e direitos de pessoas LGBTQIAP+ e contra discursos de ódio. Esse dispositivo passa a mensagem de que tais atos são inaceitáveis, não serão ignorados e assim, desencorajam sua prática.
Mas não basta. Não estamos sequer falando da vulnerável jurisprudência que associou o crime à Lei do Racismo. Nem da necessidade de uma lei específica que defina os conceitos de homofobia e transfobia em suas nuances e especifique as violências que envolvem. Para que o objetivo de que pessoas LGBTQI+ tenham acesso a plena cidadania é preciso ir além do sistema legal e do punitivismo criminal. Aparatos legais e jurídicos permitem nomear sujeitos que, de outra forma, seriam invisibilizados.
Por outro lado, sua natureza positiva silencia as complexas relações entre diferentes categorias que sustentam as hierarquias que dividem nossa sociedade e incidem sobre a distribuição de justiça – acessível apenas a alguns privilegiados. Vamos pensar na prática: justiça para quem? Quem são aqueles que efetivamente têm recursos materiais e psicológicos para buscar justiça? Vamos nos perguntar: quem é que será punido? Quem não se lembra de Rafael Braga, condenado a cinco anos de prisão por portar produtos de limpeza que se encontram em qualquer casa? O caso do catador demonstra o desequilíbrio judiciário que trata elites com luvas de pelica enquanto pesa sobre não brancos, pobres e, sim, minorias sexuais.
:: DF tem maior índice de registro de queixas por homofobia ou transfobia no país ::
Nosso sistema de direito se sustenta em nossa cultura. Esta que é cis/heteronormativa, sexista, racista e classista. Ele não escapa de valores elitistas e não podemos contar com a lei e sua aplicação para solucionar a LGBTfobia enquanto vivemos em uma cultura de violência. Apesar de, no ano seguinte da tipificação de homo/transfobia como crime de racismo em 2019 os casos caírem, eles voltaram a crescer. A resistência a uma cultura de diversidade é sinalizada pela aversão de setores religiosos à decisão. Além disso, invisibiliza outros tipos de violência, como os 30 suicídios entre pessoas LGBTQ+ no ano passado. A violência que vidas LGBTQIAP+ enfrentam é estrutural. É social, econômica e é política. Precisamos nos despir dessa cultura que aceita a distribuição seletiva de cidadania entre super-cidadãos acima da lei ou a conta-gotas dependendo da posição que se ocupa na sociedade. A solução do problema da LGBTfobia no Brasil vai muito além do arcabouço legal. Ela depende da edificação de uma consciência coletiva pautada em valores e práticas de reconhecimento. Queremos vidas dignas de serem vividas independente de quem e como somos e amamos. Privilégio negado a tantos, que habitam realidades inóspitas e tem seus dias ceifados como o jovem Rafael Melo, como Luana Barbosa e como Suzy, militante LGBTQIAP+ e sem-terra aqui da Paraíba.
*Xaman Minillo é professora do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), possui graduação e mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e doutorado pela Universidade de Bristol, já trabalhou na avaliação de projetos de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento e Pesquisa em Políticas Sexuais.
**Jose Luiz Luna é estudante do curso de Relações Internacionais na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), tem participado dos programas de monitoria acadêmica e é membro do Grupo de Pesquisa sobre Políticas Sexuais Internacionais – POLISEX.
***Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Fonte: BdF Paraíba
Edição: Maria Franco