Publicado originalmente em O Estado do Piauí por Juliana Andrade/Vitória Pilar e edição de Luana Sena. Para acessar, clique aqui.
Bernadete, Iwalma, Elvira, Amélia, Dirce e Josefina: piauienses com P de pioneiras
Da sufragista Ida Wells a Marielle Franco, mulheres ocupando cargos, lugares e espaços historicamente dominados por homens é um fato visivelmente incômodo. Ao longo da história da humanidade, a elas sempre foi destinado o espaço privado, o lugar doméstico, repetindo práticas opressoras sob o pretexto de associar ao gênero feminino a noção de fragilidade e proteção.
O mundo não é mesmo um lugar seguro quando se é uma mulher. Nem tampouco foi gentil com aquelas que arriscaram ir além dos papéis predestinados para elas, seja por seus pais, maridos ou homens de poder, décadas e séculos atrás. Os desejos, vontades e sonhos femininos tendem, até os dias atuais, a serem desacreditados, desmerecidos ou menosprezados por uma sociedade que segue repetindo práticas machistas excludentes.
Mulheres que quiseram usar calça (!!), que ansiavam por conhecimento ou que almejaram – veja que audácia – se envolver nas tomadas de decisões políticas, enfrentaram preconceitos e dificuldades abrindo caminho para as que vieram depois. Montadas em seus alazões ou, na boleia de um caminhão, o pecado das mulheres cujas histórias contamos aqui foi um só: tomar as rédeas da própria vida.
Nessa primeira semana de março, aproveitamos a data do Dia Internacional da Mulher para apresentar a você, leitora ou leitor, Bernadete, Iwalma, Elvira, Amélia, Dirce e Josefina. Piauienses com P de pioneiras.
Conduzindo a própria história
A vontade de sentir o volante sobre as mãos era grande, mas Bernadete Sousa e Silva não foi estimulada pelos pais quando jovem. Quando se casou e foi à Brasília, para ajudar nas contas de casa, virou caminhoneira – conduzindo desde vans à carretas. A paixão por dirigir foi tamanha que, quando retornou ao Piauí, o primeiro local onde buscou emprego foi na empresa de ônibus Dois Irmãos. A contragosto do marido, enfrentando preconceitos mas, encorajada pela vontade de fazer o que gostava, Bernadete se tornou a primeira motorista de ônibus do Piauí.
Entre as garagens e ruas de Teresina, muita gente parecia incomodada com o fato de Bernadete assumir uma função quase nunca ligada às mulheres. Hoje, do alto de seus 73 anos, ela coleciona reportagens e fotografias dos momentos em que sua profissão foi destaque na capital. Não dirige mais veículos grandes, apenas o carro de passeio para fazer viagens curtas com a família – mas confessa ter muitas saudades do volante do ônibus. “A minha vida inteira foi de ocupar um lugar que diziam que não era para mim”, relembra. “Eu só tinha duas opções: acreditar ou fazer diferente. Optei por fazer o que me fazia feliz”.
Uma amazonas na PM
Iwalma Matos tinha planos de ser enfermeira mas, quando concluiu a faculdade, decidiu fazer um concurso da Polícia Militar. Dali em diante, sua vida tomaria outro rumo e ela faria história na corporação. Cinco anos se passaram entre plantões pelo Batalhão do Ronda Cidadão e nos batalhões da Polícia Militar – ela só tirou licença das ruas durante a gravidez. Quando anunciaram o 1° Concurso de Pelotão de Choque da Polícia Montada no Piauí, Iwalma se inscreveu para concorrer a uma das vagas. Foi com a aprovação que ela se tornou, então, a primeira amazona a integrar uma tropa de elite da Cavalaria da PM – posto antes exclusivamente ocupado por homens.
Da seleção que participou, dos 43 aprovados, apenas 23 concluíram o curso com êxito. A preparação contou com testes técnicos, físicos e psicológicos – sendo a montaria o passo mais difícil para a soldada. Iwalma, que ingressou sendo a única sem experiência na área, foi convocada em 2014 para trabalhar na equipe de policiais da cavalaria durante a Copa do Mundo no Brasil.
E de Elviríssima
Na década de 60, quando poucas mulheres se aventuravam para além da família e o lar, a voz de Elvira Raulino ecoava brilhante no radiojornalismo piauiense. Pioneirismo era com ela: criou a Associação de Turismo do Piauí, a primeira agência de publicidade, a I Amostra da Moda Piauiense – até o primeiro fã clube do Elvis Presley. Percebeu que sua voz precisava ser ouvida além da comunicação e não demorou muito para se articular na política. Na sala da sua casa, articulou e fundou o primeiro partido feminino do Piauí, em 1982, pelo Partido Democrático Social (PDS feminino). Foi a presidente da legenda e quase 20 anos depois, tornou-se prefeita da cidade de Altos.
Sabia onde queria chegar e que caminho percorrer para isso. Se impedida, fazia história: tirou as calças para entrar na Assembleia Legislativa, quando à época, apenas os homens poderiam usar calça para transitar pela casa. Sua vida, diante de câmeras e microfones, tem cenas dignas de uma história de cinema. Chegou a ser apresentadora de TV antes da televisão chegar no estado onde nasceu, foi jurada no Cassino do Chacrinha, comeu panelada ao lado de Torquato Neto no mercado da Piçarra e até o rei da Jovem Guarda se encantou pela mulher de cabelos negros volumos. Elvira não passa despercebida e acredita que as mulheres podem ocupar os lugares que quiserem: até mesmo no coração de Roberto Carlos.
Amélia, médica de verdade
O ano era 1935 quando a piauiense Rosa Amélia Tajra concluiu o ginásio – designação para o atual ensino fundamental. Naquela época, poucas mulheres chegavam sequer ao ensino médio, visto que a elas era logo concedida a missão de casar, cuidar da casa e dos filhos. Mas Rosa quis mudar o curso de sua própria história.
Com sua vontade de estudar e, apoiada pelo pai, mudou-se para a capital carioca, a época também capital da república. De Teresina foi a São Luís, onde pegou um avião rumo ao sonho de fazer faculdade. A repercussão na provinciana Teresina foi imensa: mulher, filha de sírios-libaneses indo cursar medicina no Rio de Janeiro. “Saí sozinha e dona das ventas, é isso aí”, disse, na época, em entrevista a um veículo de comunicação local.
Anos mais tarde, Rosa voltaria a sua cidade natal, dando início a sua trajetória profissional – ingressou no serviço público estadual como pediatra nos anos 40. Seu trabalho foi marcado não só pela assistência às enfermidades das crianças, mas também na orientação de ações preventivas, como a importância da higiene, vacinação e aleitamento materno. Rompeu estigmas, quebrou padrões: e foi a primeira médica do Piauí.
Oficina dona Dirce
Em janeiro de 1910, instalava-se no Piauí a primeira escola de educação profissional federal, na capital Teresina. Durante muitas décadas a escola não admitia estudantes mulheres – um corpo discente estritamente masculino foi irrompido por Maria Dirce de Oliveira nos anos 1970 – época em que ingressou como a primeira mulher no curso de eletrônica da Escola Técnica Federal do Piauí.
Diferente das mulheres de elite, Dirce pertencia a uma família de classe média baixa, população excluída do processo educacional. Sempre inseriu-se em vagas de empregos que não exigiam muitas qualificações. Seu ingresso na Escola Técnica (Hoje, Instituto Federal do Piauí, o IFPI), reflete a organização patriarcal da época. Mas seu acesso ao estudo profissionalizante é oriunda de uma história triste.
Dona Dirce, como ficou conhecida, perdeu o marido vitima de um choque elétrico na oficina de rolamento de motores que mantinha. Era dali que ele tirava o sustento da família e Dirce se viu viúva, herdeira da oficina e com dois filhos para criar.
Após a tragédia, Dirce pensou em se qualificar e dar continuidade ao trabalho na oficina. Decide ir à direção da Escola Técnica e solicitar sua matrícula no curso de Eletrotécnica. Os documentos oficiais da instituição, dão conta de que Dona Dirce realizou os exames exigidos para ingresso no curso e, em 1970, passou a ser a primeira estudante mulher do instituto.
Mulher eleita
Vanguardista, como muitos a intitulavam, Josefina Ferreira Costa nascida no município de São Raimundo Nonato, desbravou campos nunca antes desbravados por mulheres no estado. Josefina foi a primeira mulher a se tornar deputada estadual na história do Piauí – e a segunda do Brasil.
No dia 22 de abril de 1970 foi eleita com 6.335 votos, pelo partido Arena. Cumpriu seu mandato na Assembleia Legislativa de 1971 a 1974. Josefina, assim como muitas mulheres, dividia as funções parlamentares com os papéis impostos pela sociedade: ser uma boa mãe e esposa. Ao final do primeiro mandato e, a pedido do marido, não disputou outras eleições.
Atualmente aos 94 anos, Josefina vive na cidade de São João do Piauí. Lúcida, entende e se orgulha da importância de ter sido pioneira na representatividade política das mulheres no Piauí. Em 2017, aos 89 anos, mesmo não sendo mais obrigada a votar, Josefina Ferreira fez questão de realizar o recadastramento biométrico na Justiça Eleitoral, afim de evitar o cancelamento do seu título de eleitora. Foi às urnas como exemplo e fez valer a importância da conquista do voto feminino.