Livros clássicos mantêm seu legado na literatura contemporânea ao abordar temas universais

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.

Literatura | Obras clássicas marcam diferentes culturas e gerações, provocando reflexões sobre senso de comunidade, pertencimento e humanidade

*Foto: Pietro Scopel

Em 2014, a prova de redação do vestibular da UFRGS teve como tema uma pergunta: “Qual é o seu clássico?”. O texto orientador apontava: o “seu” clássico é “aquele que nunca saiu da sua cabeça, aquele que você sempre volta a ler”. Mas não foi apenas na redação que os clássicos estavam presentes no vestibular – eles sempre figuram nas leituras obrigatórias, inclusive agora, na seleção de 2025.

Para entender a importância dos clássicos, é preciso examinar o que os torna o que são – e por que, ainda hoje, é relevante lê-los. O conceito de clássico pode variar conforme a localização, a época e a perspectiva teórica. A definição varia, mas a sua leitura não: essas obras seguem sendo lidas, seja por escolha do leitor ou por exigência acadêmica – durante a preparação para o vestibular, por exemplo.

O dicionário define “clássico” como algo que segue os padrões estabelecidos ou que se relaciona com a literatura e cultura da Antiguidade greco-latina. Mas a professora do Instituto de Letras da UFRGS Cláudia Luiza Caimi traz outras reflexões sobre o conceito, reforçando que a literatura é algo fluido. Responsável pela disciplina Leituras Orientadas I e II, que introduz essas obras para os alunos de Letras da UFRGS, Claudia relembra que os clássicos são livros conhecidos e reconhecidos – tanto em sua época como por redescoberta. Além disso, são livros que ressoam para o leitor de hoje, mesmo escritos há muitos anos. 

Há, ainda, outro ponto: a definição temporal do que é uma obra clássica. Segundo o pesquisador da École Normale Supérieure de Lyon (França) Bruno Anselmi, na Europa considera-se clássico o que foi escrito antes da Revolução Francesa (1789-1799); após esse período, classifica-se como contemporâneo. Por outro lado, na América Latina, obras mais recentes já são consideradas clássicas. “Por um lado, ler Jane Austen pode ser a descoberta de uma época a qual não temos acesso, mas ler Gabriel García Márquez é descobrir uma época muito próxima”, explica.

Calvino e a definição de clássico

Ao refletir sobre o conceito de clássico, Cláudia cita a obra do escritor Ítalo Calvino, que, em 1981, teorizou sobre a importância de ler essas obras. O autor argumenta que toda leitura de um clássico é, de certa forma, uma releitura e uma nova descoberta. Essas obras chegam aos seus leitores com marcas de leituras anteriores – seja por já terem sido realmente lidas, na juventude ou infância, ou por estarem intrinsecamente ligadas à cultura e à sociedade.

Calvino apresenta, ainda, outras características para definir o que é um clássico:

  • Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: “Estou relendo…” e nunca “Estou lendo…”.
  • Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para os que tenham lido e amado, mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los.
  • Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual.
  • Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira.
  • Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura.
  • Um clássico é um livro que nunca terminou aquilo que tinha para dizer.
  • Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes).
  • Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas que continuamente a repele.
  • Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos.
  • Chama-se de clássico um livro que se configura como equivalente ao universo, à semelhança dos antigos talismãs.
  • O “seu” clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve para definir a você próprio em relação e talvez em contraste com ele.
  • Um clássico é um livro que vem antes dos outros clássicos; mas quem leu antes dos outros e depois lê aquele reconhece logo o seu lugar na genealogia.
  • É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo.
  • É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível.
Permanência ao longo do tempo

A história de A Megera Domada, de William Shakespeare, é familiar para muitos que assistiram ao filme 10 Coisas que Eu Odeio em Você. Da mesma forma, Emma, de Jane Austen, é reconhecida por quem viu As Patricinhas de Beverly Hills. O protagonista de Orgulho e Preconceito, obra mais célebre de Austen, moldou os personagens românticos nos séculos seguintes; Mr. Darcy não apenas gerou inúmeras adaptações para o cinema e a televisão, como também inspirou novos livros, como O Diário de Bridget Jones.

Para Claudia, em todo o romance contemporâneo há um pouco de Jane Austen. “Ela está sempre muito presente, uma espécie de modelo que produz”, explica. Já para a designer de interiores Emily Lorrany, que participa do Querido Clássico, clube do livro dedicado à leitura dessas obras, “todos os livros têm um pouco de Odisseia [de Homero]”, seu preferido. Como diz Calvino, “toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura”.

Bruno Anselmi aponta que há uma tendência de que as grandes histórias tenham versões em todas as mídias. O pesquisador assinala que hoje vivemos conectados à internet e temos mais formas de consumir histórias, o que traz outra definição de livros clássicos: são histórias que ressoam, mesmo através dos tempos, em seus leitores. Orgulho e Preconceito se tornou uma série no YouTube, com o canal The Lizzie Bennet Diaries (O Diário de Lizzie Bennet), em que Elizabeth agora é uma estudante de pós-graduação e tem um canal no YouTube em que conta sua história. 

Ao pensarmos na característica “um clássico nunca terminou aquilo que tinha para dizer”, lembramo-nos de outra definição para essas obras: elas ressoam nos leitores. Mia Sodré, mestranda em Estudos Literários pela UFRGS e fundadora do Querido Clássico, afirma que os clássicos contam as histórias ditas universais. São temas como amor, relações familiares, vingança, guerras, luto, que seguem presentes ao longo dos séculos.

Apesar de seu artigo ser intitulado Por que ler os clássicos, Calvino traz outra reflexão: a do equilíbrio. Para o autor, um leitor não pode apenas se debruçar sobre os clássicos e esquecer da produção atual: é preciso ler ambos, afinal, “o rendimento máximo da leitura dos clássicos advém para aquele que sabe alterá-la com a leitura de atualidades numa sábia dosagem”. Ao abordarem questões universais, resistirem ao tempo e marcarem culturas e gerações, os clássicos nos ajudam a conhecer a história. Por outro lado, os livros atuais refletem a realidade em que vivemos.

Na leitura das produções atuais há, também, outro ponto: elas podem vir a ser clássicas. Os clássicos de hoje são livros que podem ou não ter marcado a geração em que foram lançados, mas são obras que sobreviveram ao tempo, tanto por seu conteúdo quanto por questões mercadológicas.

Ao questionar os leitores e especialistas entrevistados sobre a possibilidade de prever se um livro se tornaria clássico ou não, a resposta consensual foi: ainda que não seja possível prever, livros com temas universais, que exemplificam uma época, apresentam uma boa narrativa e uma boa história têm boa chance de se encaixarem nesse critério.

Foto: Pietro Scopel/JU
Cânone ou clássico?

Uma obra só se torna clássica por sobreviver. Mas, além do conceito de clássico, ao abordarmos essas obras notamos que, normalmente, se atrelam, também, ao que se define por cânone: conjunto de regras, livros ou autores com que obras dadas como autoridades, oficiais ou exemplares em suas áreas estão contempladas. 

A diferença entre cânone e clássico reside em suas origens e funções na literatura. O cânone literário é uma lista arbitrária de obras consideradas essenciais por um grupo específico de críticos, acadêmicos ou instituições. Essa seleção, muitas vezes, reflete uma perspectiva particular, como a predominância de autores brancos e eurocentrados, e pode ser vista como um “pedestal” que confere status às obras. “O cânone é um exercício de poder que uma certa elite letrada exerce sobre a formação de uma disciplina”, aponta o jornalista e mestre em Letras Felipe Maciel.

Para ele, os clássicos são obras que, “de alguma forma, as pessoas que vieram antes de nós colocaram em um patamar diferenciado”, e complementa que elas seguem dialogando com a atualidade, com o passar do tempo, oferecendo reflexões relevantes aos leitores. “Não importa o tempo que passe sobre elas, elas continuarão conversando com a gente”, explica. 

Embora a noção de clássico também possa ser influenciada por padrões culturais e históricos, ela é menos rígida e mais aberta à interpretação. Livros são constantemente redescobertos e podem se tornar clássicos.

É o caso da escritora Júlia Lopes de Almeida. Uma das idealizadoras da Academia Brasileira de Letras, Júlia não recebeu uma cadeira porque, à época da fundação, a instituição seguiu o padrão europeu em que apenas autores homens podiam ser membros. Com o passar do tempo, suas obras foram resgatadas e incluídas na historiografia literária nacional – uma delas, A falência, inclusive é uma das leituras obrigatórias do vestibular da UFRGS.

Bruno traz ainda outro ponto acerca dos clássicos: a necessidade de tirá-los de um pedestal. Cláudia explica que muitas obras são, sim, difíceis de ler e necessitam de um auxílio e monitoria, mas é preciso tentar. Para Bruno, é um caminho natural para os leitores, mesmo que não obrigatório.

Afinal, por que ler os clássicos?

De acordo com Mia, ler os clássicos é encontrar uma identificação. Ao serem questionados sobre qual a importância de se ler essas obras, a opinião dos entrevistados convergia em um verbo: conhecer. Ao conhecer os clássicos, se conhece uma época, a sociedade e, ainda, a cultura atual. 

“A gente consegue se conhecer quando olha para o passado”

Mia Sodré

Para entendermos o presente, é necessário olhar para o passado. Como explica Calvino, a sociedade atual é banhada e construída em cima dos conceitos e das histórias clássicas. Além disso, Mia acredita que, ao ler os clássicos, é possível encontrar uma identificação, entender que as histórias se repetem e que as experiências não são individuais, mas, sim, compartilhadas. Para ela, acessar essas obras nos permite refletir sobre o senso de comunidade e entender o que nos faz humanos.

Carolina Bernardes Haubert, participante do Querido Clássico e bacharel em Teatro na UFRGS, afirma que ler os clássicos é importante “nem que seja para dizer: não gostei desse livro”. Ela acrescenta que é por meio dessa leitura que se constrói e define o senso crítico, ao conseguir ler, entender e perguntar o porquê de uma obra ser um clássico. “Literatura não é só entretenimento, é também forma de aprendizado”, explica.

Outra razão que justifica a leitura dessas obras são as reflexões trazidas por elas. “Aquela obra sempre vai fazer com que você vivencie uma reflexão profunda sobre alguma questão trabalhada nela”, acrescenta Felipe. 

“O clássico é sempre atual porque lemos com a mente da nossa época, do nosso tempo, e a obra está nos dizendo algo que, muitas vezes, não é tão evidente assim”

Cláudia Luiza Caimi

Para um indivíduo, o seu clássico é aquele livro que toma um lugar na sua vida e se torna, de certa forma, essencial. Na sociedade, essa também é a definição. Clássicos se tornam clássicos por marcarem fortemente uma época ou alguém a ponto de seu material sobreviver ao tempo e chegar à atualidade, sendo lido, relido e revisitado. Suas histórias ressoam ainda hoje por terem temas chamados “universais” e que ainda fazem o leitor refletir sobre e analisar as questões propostas, além de serem repertório de leitura.

Livros Clássicos - Machado de Assis - Biblioteca Central UFRGS - Foto Pietro Scopel
Sophia de Mello Breyner Andresen, Ruth Guimarães e Machado de Assis são Leituras Obrigatórias para o Vestibular da UFRGS 2025 e estão na Biblioteca Central UFRGS (Foto: Pietro Scopel)

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