Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.
Artigo | A mestranda em Educação em Ciências Viviane Marques dos Santos propõe, a partir de suas experiências, formas de incentivar que crianças e jovens se aproximem da literatura de modo a refletirem e aprenderem sobre sua realidade
*Por Viviane Marques dos Santos
*Foto: “Cérebro Adormecido” (1975), tela de Clarice Lispector em exposição na mostra “Constelação Clarice”,
de 2021, no Instituto Moreira Salles, em São Paulo (Reprodução: Flávio Dutra/ Arquivo JU 05 nov. 2021)
Março foi comemorado o mês da mulher. Várias instituições públicas abriram suas portas e promoveram eventos de conscientização e combate à violência contra a mulher, fenômeno crescente no Brasil – país que ocupa o 5.º lugar no mundo em feminicídio. Na página da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica do Tribunal de Justiça do RS, há o violentômetro, contador de medidas protetivas expedidas no estado, o qual tem seu valor incrementado em tempo real.
Infelizmente foi preciso que Maria da Penha vivenciasse duas tentativas de feminicídio para que o país promulgasse uma lei de proteção à mulher. Fundamental destacar que a Lei 11.340/2006 não visa apenas à proteção da mulher e de seus filhos, mas também a reeducação do agressor. O fato é que, em qualquer parte do globo, as mulheres são vítimas do machismo estrutural, vivenciando diariamente violências veladas, simbólicas até a culminância da agressão em relações abusivas. Qualquer um dos tipos de violência sofrida acarreta traumas que a vítima carregará consigo por toda a vida.
No período como estudante de graduação de Biblioteconomia, participei como voluntária do Projeto Borboleta, do Foro Central de Porto Alegre, no qual contava histórias para mulheres em situação de violência doméstica. Observei a catarse de Aristóteles em algumas mulheres, ao trabalhar histórias como o Mito da Medusa ou, após contar as três versões de Chapeuzinho Vermelho e discutir com elas os contextos em que a fábula foi escrita, permitir que elas criassem uma versão contemporânea, passando inclusive a ter uma nova cor para o capuchinho: lilás. Lilás como a cor predominante em todo o material de combate à violência contra a mulher produzido pelas instituições.
A leitura tem um poder restaurador, mas, para ser eficaz, é preciso que seja mais bem trabalhada ainda na fase escolar. Hoje temos um programa de leitura que contempla uma lista de autores nacionais aclamados e clássicos da literatura estabelecida pelo MEC e, por meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, os livros são encaminhados às escolas da rede pública para que sejam disponibilizados em suas bibliotecas. Contudo, conforme pesquisa realizada pelo Instituto Pró-Livro, chamada Retratos da Leitura, no ano de 2019, somente 52% dos porto-alegrenses são leitores. Conforme a última avaliação do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Aluno), trazida em matéria publicada em dezembro de 2019 pela Folha de S.Paulo, o Brasil ocupa a 57.ª posição no ranking da leitura, e desde o ano 2000 flutua nessa posição. Não podemos, portanto, considerar nossa sociedade plena no quesito ‘leitura’.
Em 28 de março, no estado do Rio de Janeiro, pais de alunos de uma escola tradicional solicitaram a retirada do livro Pequeno Manual Antirracista, de Djamila Ribeiro, como leitura obrigatória, o que racionalmente foi negado. Penso sobre o que aconteceria se colocássemos na lista do MEC mais quatro livros que promovam o empoderamento feminino e o combate à violência contra a mulher? Ou teríamos uma sociedade com um novo olhar frente à igualdade de gênero, ou se perpetuaria a desigualdade de gênero?
Claro que pensar só na leitura é pouco; é fundamental o desenvolvimento de políticas sociais e da formação de professores combatentes a toda forma de violência. Mais do que a rede de atendimento psicossocial, saúde, segurança pública e justiça preparados para o atendimento às vítimas, é fundamental que professores e bibliotecários também sejam integrados no cenário de prevenção.
Como bibliotecária de formação, poderia tranquilamente sugerir ao menos uns quatro livros para serem trabalhados em sala de aula: dos Cadernos da Biblioteca Nacional, o volume 7, temos o Escorço biográfico de Dom Pedro I, o qual traz as cartas trocadas pela Imperatriz Dona Leopoldina com Maria Graham, que foi contratada pela corte para ensinar os filhos do imperador e contempla cenas de violência vividas pela Imperatriz.
Na linha da poesia, teríamos o lirismo de Rupi Kaur, com o qual a autora faz da sua dor poesia, e talvez tenha me surpreendido pois foi escolha de minha filha, que tem 15 anos. Embora seja um livro forte, é uma boa ferramenta para falarmos sobre assuntos tão espinhosos como a violência com adolescentes. Evidentemente, diante de um conservadorismo decrépito que tem contagiado as pessoas, esse livro jamais seria adotado nas escolas, haja vista o ocorrido com o Manual Antirracista. Marina Colasanti, no Congresso Internacional de Leitura realizado em 2020, deixou palavras ecoando pela minha existência: “Podemos falar sobre tudo e todas as coisas com crianças, basta sabermos como falar”, então morrerei defendendo a poesia de Rupi em sala de aula.
Por último, e não menos importante, a obra da cubana Teresa Cárdenas em Cartas para minha mãe. A história de uma menina negra e órfã e o preconceito racial, ambientado em Cuba. Apenas algumas sugestões, pois o que realmente considero fundamental e importante para incentivarmos o gosto pela leitura é permitir que nossos estudantes compartilhem em sala seus gostos, ou seja, mais do que uma lista obrigatória, deveria ser permitido que cada aluno escolhesse um livro para sua leitura e compartilhasse com colegas. Comigo, lá nos anos 1980, lembro de ter tido essa liberdade. Tenho a lembrança vívida de, nas folhas pautadas que comprava na vendinha perto de casa, fazer toda a ficha de leitura solicitada pela professora e ir para frente do quadro ler para a classe, o que me fez sentir tão importante, compartilhar uma história tão mágica. Eram livros que me faziam sonhar e me trouxeram lá da vila, de rua de chão batido, até os bancos acadêmicos.
Viviane Marques dos Santos é graduada em Biblioteconomia e mestranda do PPG em Educação em Ciências.