Juridificação reativa e economia da performance

Publicado originalmente em Observatório da Transição Religiosa no Brasil. Para acessar, clique aqui.

Texto de autoria de Olívia Bandeira (Laboratório de Antropologia da Religião/Unicamp) e Rafaela Marques (Religião & Cultura).

O ensaio é parte de uma série de publicações do NER (UFRGS)LAR (Unicamp) e Nues (Unicamp). Todos eles tomam como ponto de partida a decisão envolvendo Católicas pelo Direito de Decidir, que as proibiu de utilizar o termo católicas.

Invocando a Santíssima Trindade do cristianismo enquanto faziam com as mãos o sinal da cruz, três integrantes da Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura iniciaram a live intitulada “Vão ter que tirar o nome de ‘católicas’!”, que foi ao ar pelo canal da associação no YouTube no dia 27 de outubro de 2020. No dia anterior, o Tribunal de Justiça de São Paulo havia publicado o acórdão [1] do julgamento realizado em 20 de outubro, no qual os desembargadores determinaram que Católicas pelo Direito de Decidir (CDD), organização da sociedade civil que defende os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres no Brasil desde 1993, teria de retirar o termo “católicas” de seu nome e de seu estatuto.

A ação foi ajuizada pelo próprio Centro Dom Bosco (CDB) [2], e a decisão de segunda instância reviu decisão anterior, de 2019, em que o juiz da 2ª Câmara de Direito Privado do Estado de São Paulo encerrou a ação argumentando ilegitimidade ativa por parte da organização proponente, uma vez que não ficou comprovada sua legitimidade como representante da Igreja Católica ou qualquer prova de dolo causado pela CDD à organização.

Neste breve ensaio nos atemos à live comemorativa realizada pelo CDB depois da decisão em segunda instância. A transmissão teve início com a oração “Ave Maria”, proferida pelos participantes – Pedro Affonseca, presidente do CDB, Lucas Henrique, outro membro da organização, e a deputada federal e ex-advogada do Centro, Chris Tonietto (PSL-RJ). Os três oraram de olhos fechados e em seguida revezaram-se nos comentários.

À Chris Tonietto coube o papel de situar as Católicas pelo Direito de Decidir e o debate sobre o aborto, enquanto o presidente do Centro Dom Bosco interpretou o significado da decisão judicial. Lucas Henrique assumiu o papel de mediador. A transmissão durou 2 horas e 7 minutos, e a audiência pôde fazer comentários ao vivo pelo chat. Até o momento da elaboração deste texto, em 16 de novembro de 2020, o contador do YouTube marcava 50.318 visualizações do vídeo. Na narrativa apresentada, os integrantes do CDB comemoram a decisão como uma importante “vitória” de uma guerra em curso, na qual os “verdadeiros católicos”, assim reconhecidos pela sentença da justiça, são convocados a lutar contra “inimigos da fé” em todas as esferas da sociedade, incluindo o Poder Judiciário.

Logo no início da live, Tonietto referiu-se às mulheres que fazem parte da organização Católicas pelo Direito de Decidir como “grupelho abortista” e “pilantras feministas”. A ofensa foi recebida com largos sorrisos pelo mediador, Lucas Henrique. Logo depois, em sua primeira participação, Affonseca passou a chamar as Católicas pelo Direito de Decidir de “Coisas pelo Direito de Decidir” e seguiu assim até o fim da live, afirmando que elas, “as coisas”, seriam parte de um grupo de “pseudo-católicas infiltradas na igreja”.

A fala de Affonseca foi dividida em dois blocos. No primeiro, centrou-se na análise da aceitação do Centro Dom Bosco como legítimo para seguir com a ação contra Católicas pelo Direito de Decidir. No segundo, analisou o mérito da sentença. Affonseca comemorou o que seria uma “decisão [judicial] brilhante” diante do “cenário catastrófico do judiciário brasileiro”. Os motivos do adjetivo “brilhante” em referência ao acórdão, de 61 páginas, seriam dois. Em primeiro lugar, a aceitação pela justiça de que uma associação civil formada por leigos católicos teria o direito de “defender a fé católica”. Em segundo, o fato de os magistrados terem fundamentado sua decisão não apenas no Código Civil, mas no Código de Direito Canônico – entre outros documentos da Igreja Católica, como declarações de Papas, o texto bíblico e até mesmo conteúdo gerado por sacerdotes, como o site do padre Paulo Ricardo, um dos maiores expoentes do conservadorismo católico brasileiro, com larga produção midiática e um dos professores do Centro Dom Bosco. A convocação à ação civil dos fiéis foi feita em vários momentos da live, como neste trecho da fala do presidente do CDB:

“Fiéis católicos que nos assistem, utilizem-se desta decisão para renovarem os seus ânimos e se unam a outros fiéis católicos, nas suas cidades, nos seus estados, para defender a fé, para promover a fé, para combater os inimigos da fé em juízo e fora dele, perante às autoridades civis, perante os cidadãos brasileiros, os cidadãos das suas cidades, dos seus estados. Infelizmente nós nos deparamos com muitos católicos, e nós mesmos às vezes caímos na tentação do pessimismo, de nos entristecermos até com os revezes, no último sábado mesmo aqui no Centro Dom Bosco nos questionamos diante de uma série de insucessos no âmbito judicial. Será que vale a pena ajuizar ações? Será que vale a pena combater os inimigos da fé no âmbito judicial? E me parece que essa decisão é quase um sinal de Deus, um sinal dos céus de que sim, vale a pena, sim, vale a pena em meio a vitórias, em meio a derrotas, nós defenderemos a fé, em meio a vitórias e derrotas nós não esmorecemos.”

O presidente do CDB, assim, incentiva que católicos leigos sigam o mesmo caminho trilhado por sua instituição. O Centro Dom Bosco foi fundado em 2016 e já ingressou com uma série de ações [3] judiciais. Outra ação do Centro que ganhou ampla cobertura da mídia foi a promovida contra a produtora de humor Porta dos Fundos e a empresa Netflix, por exibirem, no final de 2019, um especial de Natal em que Jesus era retratado como homossexual. A veiculação do programa chegou a ser suspensa pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em dezembro de 2019, mas o vídeo foi liberado por uma liminar concedida pelo STF em janeiro de 2020 (provavelmente uma das derrotas a que o presidente do CDB se referiu na live), decisão confirmada pela Suprema Corte em 3 de novembro de 2020.

O STF, aliás, foi criticado em vários momentos, como parte do “cenário catastrófico” mencionado por Affonseca. Em um deles, Chris Tonietto acusou a Corte de promover “ativismo judicial”, de “subverter o espírito das leis” e de legislar no lugar do poder legislativo. Tonietto é relatora na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados do Projeto de Lei n° 4.754/2016, que “tipifica crime de responsabilidade dos Ministros do Supremo Tribunal Federal a usurpação de competência do Poder Legislativo ou do Poder Executivo”. Invertendo o sentido do que seja o Estado democrático de direito, a deputada afirma em dois momentos da live que o que ela chama de ativismo do judiciário ameaça a democracia ao promover a “ditadura da minoria”. O que a deputada está chamando de ativismo do judiciário é, portanto, a conquista de direitos, sobretudo os que se referem a questões de gênero, que vêm sendo garantidos por meio da ação de grupos historicamente marginalizados na justiça.

Compreender os argumentos mobilizados pelos participantes da live requer uma análise em dupla dimensão. Observando como os dispositivos jurídicos são utilizados para validar (ou deslegitimar) a identidade religiosa, é importante observar que o acórdão, publicado em 26 de outubro de 2020 é assinado pelos três desembargadores, José Carlos Ferreira Alves (relator), José Joaquim dos Santos (presidente) e Álvaro Passos. Dentre os argumentos apresentados pelo Centro Dom Bosco e acolhidos pelos desembargadores estão: i) o uso da expressão “católicas” é ilícito e abusivo no caso concreto, constituindo verdadeira fraude […] sob o pretexto de defender os “direitos reprodutivos das mulheres”, pratica-se autêntica promoção de conduta que nada mais é que o “homicídio de bebês no útero materno”; ii) há evidente descompasso com a doutrina absolutamente clara da Igreja; iii) o uso da palavra “Católicas” por uma organização feminista revela a pretensão de implementar agenda progressista e anticatólica em meio aos católicos promovendo a descriminalização e legalização do aborto. Já quando a esfera judicial nega acolhimento aos argumentos apresentados, é a própria esfera judicial que torna-se alvo de deslegitimação por parte dos integrantes do CDB, como no exemplo citado sobre o STF.

O episódio ilustra, portanto, o conceito que Juan Marco Vaggione definiu como “juridificação reativa”: “o uso do direito por parte de atores religiosos e seculares em defesa de princípios morais que estes consideram violados pelas demandas dos movimentos feministas e LGBTQI, empregando diferentes argumentos e estratégias” [4]. Enquanto arena de disputa de ordem moral, o direito é utilizado por grupos conservadores para afirmar uma pretensa moral universal, em que secular e religioso não são excludentes, mas se completam mutuamente. É interessante notar como a deputada, advogada e católica, utiliza tanto trechos da bíblia e de documentos do Vaticano quanto leis brasileiras e tratados internacionais para fundamentar seus argumentos contra o aborto e para acusar as feministas de promover a “cultura de morte” [5]. É assim que interpreta o Artigo 5 da Constituição Federal e o Pacto de San José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, para defender a vida do nascituro, e ao mesmo tempo acusa o STF de interpretar a lei a partir de “convicções pessoais”, quando, na estratégia discursiva da deputada, deveria optar pela moral universal do cristianismo que seria, nesse discurso, fundante da “civilização ocidental”.

A outra dimensão da análise que buscamos desenvolver concentra-se no incentivo à batalha religiosa “do bem contra o mal”. Comum na Teologia do Domínio que pode ser vista em parte do mundo pentecostal brasileiro, vem sendo utilizada também por grupos católicos conservadores. Essa batalha, conforme os argumentos apresentados, deve se dar por meio da ação nas várias esferas da sociedade, como o sistema judiciário, o poder legislativo e a mídia. A noção de que há uma guerra por ser enfrentada se apoia na retórica do medo, em que o discurso é utilizado para gerar o sentimento de insegurança, de que a ordem moral e social já está ameaçada e que poderá se tornar pior caso não se faça alguma coisa. A defesa dos direitos reprodutivos feita pelas Católicas pelo Direito de Decidir, entre outras organizações feministas, é nessa chave apresentada como porta de entrada para uma dissolução completa da sociedade. Nas palavras da deputada Tonietto, “aborto é o último reduto moral. Se o aborto for permitido, tudo vem a reboque, tudo vem junto, porque se uma nação permite que o assassinato intraulterino seja aprovado, o que mais não vai aprovar? Pedofilia e toda sorte de crimes. Por isso não podemos descansar e se for preciso ajuizar quantos processos forem necessários”.

A mobilização do medo está diretamente atrelada àquilo que Christina Vital da Cunha vem qualificando como “retórica da perda” [6], que pode ser considerada uma “tática discursiva articulada por diferentes lideranças sociais e políticas (dentre elas, religiosas) baseada em um imperativo: o retorno da ordem, da previsibilidade, da segurança, de uma unidade (ainda que imaginada)”. Ou seja, alimenta-se o medo social de que algo está sendo ameaçado e que a solução está nas guerras travadas por uma “maioria” contra os direitos conquistados pelas “minorias”. As armas dessa guerra, conforme pudemos assistir na live, vão da judicialização da “defesa da fé cristã” à ocupação do Congresso Nacional por partidos conservadores. O voto em partidos de esquerda é desaconselhado com base nessa retórica do medo: “não votarem no PT, PSOL, nenhuma legenda de esquerda, não vote em partido liberal para não dar oportunidade de votar em gente que assassina pessoas”, nas palavras de Lucas Henrique.

A retórica da batalha encontra eco nos comentários publicados pela audiência no chat do YouTube, e a aceitação do vocabulário demonstra que essa cosmovisão pode ser encontrada no catolicismo do mesmo modo que está em correntes do pentecostalismo. Em relação à acusação de Lucas sobre a freira católica que discursou na convenção do Partido Democrata antes das eleições dos Estados Unidos [7], uma espectadora disse: “essa freira nunca foi católica é uma comunista infiltrada, a trabalho do demônio. Maria passa na frente e esmaga a cabeça da serpente!” (Sic). Outro membro da audiência comentou: “quero lutar com vocês, se preciso for dar a vida pelo evangelho”. A frase foi ironicamente seguida por três corações vermelhos.

Registramos essas manifestações porque acreditamos ser importante refletir como esta estratégia de judicialização está fortemente atrelada à visibilidade que as ações adquirem tanto na mídia tradicional quanto nas redes sociais. A ação contra as Católicas, assim como a ação contra o Porta dos Fundos, foi amplamente noticiada pela imprensa brasileira, colocando uma associação de apenas quatro anos de existência no centro do debate sobre a moral sexual no Brasil. A decisão da Justiça de São Paulo contra Católicas pelo Direito de Decidir, por sua vez, gerou uma enorme repercussão nas redes sociais. O assunto foi comentado durante dias e apresentado como um grande triunfo, por exemplo, nas redes sociais da deputada Tonietto, que possui mais de 50 mil seguidores tanto no Twitter como no Instagram.

A eficácia das ações judiciais, assim, não reside apenas no resultado concreto das sentenças – o Centro Dom Bosco foi derrotado pelo STF no caso do Porta dos Fundos e a decisão sobre as Católicas pelo Direito de Decidir ainda pode ser revista, tanto pelo Tribunal de Justiça de São Paulo como pelo STF -, mas ambos os casos revelam a capacidade dos agentes de inflarem sua relevância na arena de disputas sobre a qual a questão da sexualidade será regulada. Nesse sentido, a performance da vitória que esses grupos protagonizam nas redes sociais é essencial.

Por outro lado, é preciso observar também que não apenas o Centro Dom Bosco e a pauta reativa do conservadorismo católico ganham visibilidade com o caso. As Católicas pelo Direito de Decidir e a pauta dos direitos sexuais e reprodutivos também se tornaram assuntos difundidos pelas mídias e redes sociais, recebendo o apoio de uma série de organizações da sociedade civil – como na nota assinada por mais de 100 entidades [8] -, juristas, lideranças políticas e mesmo artistas, como Daniela Mercury, que repercutiu o caso em seu Twitter. Cabe aqui enfatizar que essa maior exposição da CDD não parece ser encarada pelo CDB como colateral ou indesejada, mas sim como mero fator resultante, que não justifica comentários.

Forma-se, assim, uma economia da performance, por meio da qual transaciona-se visibilidade e legitimidade para mobilizar a identidade religiosa. Como efeito, as trocas simbólicas que produzem esses marcadores transferem-se da arena jurídica para o meio digital. Nessa interação entre juridificação reativa e performance, engendram-se novos modos de constituir e mobilizar o religioso na esfera pública, em jogos de poder que complexificam a reflexão possível sobre secularismo na contemporaneidade.

Notas:
[1] O acórdão é o instrumento jurídico que requisita o consenso dos desembargadores envolvidos no caso, em uma decisão colegiada.[2] A ação contra as Católicas pelo Direito de Decidir foi protocolada em 2018, quando a entidade de defesa dos direitos das mulheres ganhou visibilidade ao ser admitida pelo Supremo Tribunal Federal para sustentação oral em favor da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 nas audiências públicas convocadas pela ministra e relatora da ação, Rosa Weber. A ADPF questionava dois dispositivos do código penal, 124 e 126, que criminalizam o aborto, e que estariam por isso em contradição com fundamentos constitucionais como a liberdade de consciência, a liberdade e a saúde das mulheres, e pedia a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação.[3] A plataforma Jusbrasil indexa 15 processos em nome da Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura. Ver:  https://www.jusbrasil.com.br/processos/nome/157543904/associacao-centro-dom-bosco-de-fe-e-cultura. Acesso em novembro de 2020.[4] VAGGIONE, Juan Marco. “A restauração legal: o neoconservadorismo e o direito na América Latina”. In: Biroli, F; Machado, M.D.C.: Vaggione, J.M. Gênero, neoconservadorismo e democracia. SP: Boitempo, 2020.[5] Como aponta Vaggione, o termo “cultura da vida” em oposição à “cultura da morte” foi formulado por João Paulo II na Encíclica Evangelium Vitae, de 1995.[6] Ver: Apoio evangélico a Bolsonaro é marcado por uma grande volatilidade, entrevista concedida por Christina Vital da Cunha ao site do Instituto Humanitas Unisinos.  Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/592934-apoio-evangelico-a-bolsonaro-e-marcado-por-uma-grande-volatilidade-entrevista-especial-com-christina-vital-da-cunha. Acesso em novembro de 2020.[7] Ver: Catholic Nun Who Addressed DNC Convention Declined to Take Position On Abortion: ‘I Would Have to Study It More Intensely’. Disponível em: https://news.yahoo.com/catholic-nun-addressed-dnc-convention-022417782.html. Acesso em novembro de 2020.[8] Disponível em: https://intervozes.org.br/nota-de-solidariedade-a-organizacao-catolicas-pelo-direito-de-decidir-e-em-defesa-da-liberdade-de-expressao-e-associacao-no-brasil/. Acesso em novembro de 2020.

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