Publicado originalmente em Coletivo Bereia por Leonardo Félix. Para acessar, clique aqui.
As conjecturas sobre o novo governo eleito na Argentina, empossado em 10 de dezembro, com Javier Milei à frente do seu novo partido político “La Libertad Avanza”, trazem a sensação de se estar navegando em uma incerteza temerosa e, ao mesmo tempo, na euforia vitoriosa de um “novo reinado”. Um reinado que elimine, de um só movimento, o pecado da “casta política” e restaure a fantasia de uma terra sem corrupção e “com gente de bem”, e, se possível, sem essa casta no horizonte.
Talvez a etapa mais difícil de aceitar, ao ler as notícias e os níveis de confronto que ocorreram nos meses anteriores à eleição geral para a Presidência, seja o ponto em que uma extrema-direita conquista 55% do eleitorado em um dos países fortes da região, com partidos políticos com mais de um século, como a Argentina. É um ponto de não retorno, onde tudo o que há para descobrir é novo e com um certo ar de angústia (ainda para os eleitores diretos da Libertad Avanza).
Como isso é possível, vocês se perguntarão, assim como muita gente na América Latina? Talvez o mais novo dessas últimas décadas, como já vem explicando com profundidade e acerto a Dra. Magalí Cunha, seja a aparição do variado e amplo setor “evangélico” como parte do cenário político-partidário.
Embora este segmento ainda esteja longe de ter autonomia própria na Argentina, aparece notoriamente como parte da estrutura discursiva de muitos partidos políticos tradicionais. Ele é tanto parte de uma estratégia de angariação de votos quanto, porque em suas fileiras, claramente, há setores evangélicos que se somam a essas dinâmicas particulares e próprias dos partidos políticos.
Outro fato evidente, nessa pluralidade e variedade do campo religioso cristão em geral, e evangélico em particular, é que os votos à extrema direita ou a um partido popular como o peronismo, assim como a uma esquerda de corte marxista, estão distribuídos como uma reprodução em pequena escala do que a sociedade como um todo mostra hoje. É uma vulnerabilidade extrema sem um sistema imunológico suficientemente desenvolvido, capaz de frear os meios de comunicação hegemônicos que, dia após dia, propagam um ódio radicalizado que se torna viral diariamente.
Porém, há algo evidente no discurso da religiosidade monoteísta, tanto para judeus, cristãos quanto muçulmanos. O ódio é injustificável em si mesmo, desde seus próprios textos sagrados, e sempre prevalece uma prática de amor e trabalho comunitário árduo, onde os seres humanos recriam, em suas ações, uma divindade justa, compassiva e amorosa.
Portanto, como esse dado não pode ser justificado e endossado, os cristãos que decidem fazer parte e eco do ódio que os meios de comunicação hegemônicos propagam diariamente, bem como de nossas práticas político-partidárias no continente, recorrem a toda uma estrutura narrativa simbólica. Nela surgem novos “líderes”, “juízes” que imporão uma nova moral que permita o uso do chicote ou de elementos mais contundentes, com o peso do julgamento eterno.
Como exemplo, a Alianza Evangélica de Iglesias Evangélicas de la República Argentina (ACIERA) convocou diretamente para “uma caminhada em 9 de dezembro – dia anterior à posse presidencial – de oração e adoração pela Argentina, quando pastores, intercessores e adoradores de todo o país são convocados para este grande movimento de oração, para estabelecer o governo de Deus na Argentina, exaltando o nome de JESUS CRISTO“. A caminhada começou na Casa Rosada (sede do governo), seguiu pelo Congresso Nacional e, em seguida, pelos edifícios dos tribunais federais, todos espaços físicos na cidade de Buenos Aires, relativamente próximos entre si. A orientação foi para que se use apenas camisas brancas e bandeiras argentinas e nenhuma consigna partidária seja levada.
Por outro lado, a Federación Argentina de Iglesias Evangélicas (FAIE), de menor porte que a anterior, da qual o arco evangélico de origem é o das igrejas da Reforma, mais outras pentecostais e menonitas aderidas, reafirmou nos dias anteriores às eleições de 19 de novembro, quando se decidiu a vitória de Milei, que: “A solidariedade com aqueles que nascem em presépios esquecidos, sofrem injustiças e carregam sobre seus corpos o pecado do mundo… o compromisso com a defesa e promoção dos Direitos Humanos. Assim como ontem, também hoje dizemos ‘Nunca Mais’. O sangue das vítimas dos crimes de lesa humanidade perpetrados pela última ditadura em nosso país continua clamando ao céu por Memória, Verdade e Justiça”.
Nossas frágeis democracias na região são construídas com andaimes incertos e variados. Porém, mesmo assim, deve ser fundamental e estratégico que o povo evangélico em geral compreenda que a noção de um Estado plural, diverso, democrático e com liberdade de escolha para a cidadania que o habita, se dá a partir de uma espiritualidade que, em sua ampla gama, ajuda, defende e promove a defesa das vidas mais vulneráveis a todo momento.
Não há mercado, ódio ou império que subsista diante do marcado exercício de amor e ternura que os textos sagrados demandam e, como diz o apóstolo João em uma de suas cartas: “o amor perfeito lança fora todo medo“. Que o amor continue sendo o exercício necessário para sustentar a estrutura social e, assim, repelir o ódio que tenta se tornar viral.
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*** Foto de capa: Wikimedia Commons