Iniciativas de difusão da ciência esbarram no distanciamento que persiste entre saberes científicos e populares

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.

Popularização | As novas tecnologias e os ambientes por elas gerados potencializaram os meios de acesso à ciência, mas a interação, a sensibilidade e a contextualização de conteúdos permanecem imperativas para a compreensão dos distintos saberes, avaliam pesquisadores

*Foto: Dentro da sala de aula, estudantes têm acesso à ciência de forma técnica, mas ainda assim podem trazer conhecimentos
aprendidos fora dos ambientes estudantis, como em livros e revistas, para auxiliar no entendimento. (Foto: Marcelo Pires/JU)

“Aos meus 10 anos, quando estudava em colégio de freiras, ganhei de meu pai um álbum chamado El Porqué de las cosas. Ele tinha mais de 200 figurinhas, que abrangiam todas as áreas das ciências. Lembro que aquilo mobilizou as crianças do lugar em que eu vivia. Eu era observadora; aquele álbum despertou o meu interesse pela leitura, fiquei muito atenta às coisas da Saúde.”

Essa lembrança da pesquisadora Elvira Alicia Aparicio Cordero sobre a sua primeira aproximação com a ciência, em Jauja, sua terra natal no interior do Peru, está longe da realidade de muitas infâncias urbanas atuais, dominadas pelas tecnologias e pelas relações virtuais. “A cidade mal tinha telefone fixo e TV. As pessoas se comunicavam via telégrafo e rádio”, lembra a pesquisadora mais de quatro décadas depois. Em comum com o presente há o convite à curiosidade dos jovens como um importante fator para despertar o interesse em descobrir o funcionamento das coisas e a relevância desse incentivo por meio de iniciativas de popularização da ciência.

Mas, se nos anos recentes se transformaram aceleradamente os espectros, os meios, o volume e a velocidade de difusão de informação – e com isso as formas de acesso à ciência –, isso não significa necessariamente que os saberes acadêmicos se popularizaram em ritmo e qualidade equivalentes. Por depender de recursos geridos por interesses que mudam em cada governo, é normal que as políticas públicas para a popularização da ciência, e com elas os programas e projetos nesse setor, avancem em descompasso com as demandas locais.

Quatro jovens estudantes aparecem posando para foto, com as mãos na cintura. Elas estão uniformizadas, porém com calças de cores diferentes.
A Descoberta do Mundo: Elvira Cordero (segunda da esquerda para a direita) nos anos 1980, no Peru, ainda estudante em um colégio de freiras. (Foto: Acervo pessoal)

“As escolas públicas brasileiras, sobretudo nos projetos diferenciados de educação, como escolas quilombolas e indígenas, atravessam de forma geral problemas estruturais no que tange ao acesso a computadores, internet e cultura digital”, repara o professor do Instituto de Física Alan Alves Brito, um entusiasta no trabalho de levar o saber acadêmico para além dos muros da universidade. “Há também uma questão fundamental de formação inicial e continuada de professores para o letramento computacional e digital”, complementa.

O acesso às tecnologias – e a formação docente para utilizá-las –, todavia, é apenas um entre muitos outros aspectos que cercam o desafio da popularização da ciência. O ambiente da escola, o engessamento dos currículos, as abordagens e os usos limitados dos livros didáticos, os mitos e preconceitos na ciência, a desqualificação histórica de algumas áreas em detrimento de outras, enfim, um amplo espectro de condições se apresenta ainda ao professor – tanto como obstáculos quanto como oportunidades – na empreitada de traduzir os diferentes saberes em aprendizado interessante, envolvente e prazeroso. No âmbito da Universidade, a extensão é uma dessas dimensões possíveis.

Acessos e Interesses

A trajetória de Elvira é, nesse sentido, também um exemplo de superação de tais contradições. Hoje naturalizada brasileira e pós-doutora em Fisiologia pela UFRGS, a pesquisadora atua no Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde Hospital Moinhos de Vento (PROADI-SUS – HMV). Antes disso, porém, seu percurso acadêmico envolveu um trabalho marcante com comunidades escolares.

Em 2017, Elvira colaborou com sua então ex-colega de pós-doc, a professora Cristina Campos Carraro, na concepção do projeto “Fisiologia na Escola, Ciência no Cotidiano”. A iniciativa leva professores e alunos de graduação e pós-graduação da área da saúde para palestrar em escolas da capital e da região metropolitana. São abordados temas como gravidez, doenças sexualmente transmissíveis, saúde mental, vacinas, drogas, cuidados com o corpo, entre outros.

“Por haver atendido alunos dos colégios públicos e ver de perto essa realidade, esse projeto contribuiu para o meu crescimento educacional, profissional e social. Além disso, me ajudou também no aprendizado sobre a importância de cuidar e saber como funciona o organismo como um todo”

Elvira Alicia Aparicio Cordero

Vinculado ao Programa de Pós-graduação em Fisiologia da UFRGS, o projeto foi interrompido em 2019, sendo retomado em 2022 com a coordenação de Cristina, já como professora adjunta da Universidade, atualmente lotada no Laboratório de Fisiologia Cardiovascular. Com uma equipe de três professores, seis alunos daquele programa e um bolsista de iniciação à popularização da ciência, esse trabalho já atendeu cerca de 600 alunos das redes pública e privada de Porto Alegre.

Programa Ciência na Sociedade Ciência na Escola, nas modalidades BIPOP (Bolsa de Iniciação à Popularização da Ciência) e BIENC (Bolsa de Iniciação ao Ensino de Ciências), incentiva projetos de docentes da Universidade que desenvolvem ou tenham interesse em desenvolver ações nessa área, concedendo bolsas a alunos de graduação. A bolsa de ensino se destina à atuação em ambientes escolares; já a de popularização é voltada a ações em espaços não formais de educação (museus, indústrias, parques, ONGs, etc.).

“São bolsas dentro da proposta de iniciação científica, sempre direcionadas ao orientador, mas podem surgir de uma sugestão de um aluno da Universidade, mesmo no início de seu curso”, explica Bruna Bertoglio Lorenzoni, técnica da Divisão de Iniciação Científica da Pró-reitoria de Pesquisa da UFRGS, ela mesmo com doutorado em Educação em Ciências.

Desafios para construir parcerias

Ainda que desenvolva atividades periódicas nas redes de ensino, uma das dificuldades para a realização das ações tem a ver com a própria identificação da demanda. “Poderíamos atender muito mais escolas, mas isso não acontece por causa dessa dificuldade de comunicação. Eu procuro o número de telefone das escolas na internet e ligo. Então me passam o contato da diretora ou coordenadora, mas muitas vezes é difícil falar com elas”, explica a professora Cristina.

Um outro desafio que se coloca no estabelecimento de parcerias entre escolas e projetos científicos externos tem a ver com os conteúdos das propostas. “Muitos desses projetos não ofertam uma continuidade adequada ao calendário escolar ou ainda não oferecem um tema afinado com a necessidade mais urgente da instituição. Pode acontecer a partir disso um impedimento, descrédito ou ainda a descontinuidade por parte da escola”, observa a pedagoga Vanise Baptista, também servidora da UFRGS e autora da dissertação A popularização da ciência a partir da análise do Programa “Ciência na Sociedade, Ciência na Escola” desenvolvido pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Em sua pesquisa, Vanise explora a possibilidade de “divulgar a ciência a partir de uma ponte entre a Universidade e outros lugares através da difusão não formal do conhecimento, acompanhada de uma rede de recursos culturais, científicos e educacionais, dando espaço de fala a cada grupo social que aderia ao projeto ofertado”, explica. A pesquisa compreende o período entre os anos de 2009 e 2013 da vigência daquele programa.

Sob um conceito governamental, a popularização da ciência tem a ver com o “ato de difundir e divulgar a ciência para toda sociedade, em meio a tantos desafios sociais, ambientais, econômicos e tecnológicos, entre outros” (MCTI). Essa definição é, no entanto, concebida também sob outras perspectivas. Em seu artigo Popularização da Ciência: uma revisão conceitual, os professores Marcelo Gomes Germano (UEPB) e Wojciech Andrzej Kulesza (UFPB) destacam, por exemplo, esse conceito sob as dimensões da educação popular, da transposição de ideias e da recriação.

Discursos e Hierarquias

Sob outra perspectiva, o professor Alan Alves Brito destaca os estereótipos presentes na construção do conhecimento científico como um fator limitante para a compreensão da ciência nas escolas. “O discurso da ‘autoridade científica’ é dominante nas vivências científicas. Há o predomínio do viés positivista das ciências, quase sempre vistas como neutras, objetivas, ateóricas e a-históricas. Eu, particularmente, penso que deve haver um diálogo entre todas as ciências, que precisam estar comprometidas com a democracia no sentido mais profundo da palavra.”

Já a professora da Faculdade de Educação Marília Forgearini Nunes salienta que essa imagem contrastante, que afasta o exercício científico do que se faz na escola, tem a ver com razões diversas, como a falta de infraestrutura, a ausência de apoio ao estudo e à pesquisa e a permanência de uma visão tradicional do que é fazer ciência.

“A relação teoria e prática assumida sob a ordem da diferença, e não da complementaridade, também reforça o afastamento de modo geral”, analisa Marília, que é docente no Departamento de Ensino e Currículo, na área de Didática dos anos iniciais, leitura e escrita.

Para ela, há espaços tradicionais na escola, como a biblioteca escolar e a quadra de esportes, que têm potencialidades para o desenvolvimento do aprendizado científico e que deveriam ser mais bem explorados.

“O exercício científico ainda é lido sob a ótica exclusiva do fazer associado às ciências naturais, e não do exercício em si, que envolve imaginação, método para abordar um problema e a solução, processos que podem ser aplicados em qualquer área do conhecimento escolarizado ou da vida”

Marília Forgearini Nunes

Sob uma perspectiva das relações entre as disciplinas escolares e a sua visibilidade na abordagem da imagem da ciência, Alan destaca outro problema, que é o de uma certa hierarquia entre saberes. “As ciências humanas e sociais entram para a história da ciência como ciências menores, o que é um absurdo, uma vez que as ciências humanas e sociais não apenas têm os seus construtos teóricos, metodológicos e epistêmicos particulares, como são fundamentais para nos ajudar a interpretar e descrever as realidades”, considera.

A partir desse reconhecimento, o docente valoriza o papel das diversas áreas no despertar do interesse científico no aprendizado. “Há, certamente, um projeto político de poder por trás dessa hierarquização. Eu, particularmente, penso que deve haver diálogo entre todas as ciências, que precisam estar comprometidas com a democracia no sentido mais profundo da palavra”, arremata.

Braços de pelo menos sete jovens estudantes estão apontando para quadro de sala de aula, que contém projeção de constelações. O rosto dos estudantes não aparece, pois eles estão de costas e apenas seus braços estão em destaque.
Atividade sobre astronomia cultural (constelações africanas e indígenas) com jovens estudantes do ensino fundamental I leva a ciência de diferentes formas para dentro da sala de aula. (Foto: Arquivo pessoal da professora Maria Priscilla dos Santos)
Livros, telas e práticas

O processo de aceleração das novas tecnologias enquanto fontes, ao mesmo tempo, de entretenimento, de informação e de consumo modifica as relações sociais e implica novos padrões de educação que afetam diretamente o ambiente escolar. Nele, o livro didático é às vezes subestimado ou até desconsiderado enquanto recurso de trabalho.

Mas para o professor Marcos Roberto de Oliveira, docente do Departamento de Bioquímica da UFRGS, os livros são a fonte mais segura de conhecimento para estudantes de qualquer área, ainda que se torne necessário considerar outros meios. “Os livros são o guia inicial da jornada e cumprem muito bem seu papel. No entanto, em minha área, a ‘famosa’ Bioquímica, sabe-se que não são o bastante devido, especialmente, à complexidade dos temas que tratamos ali”, acredita. Já o professor Alan ressalta a importância do livro enquanto alternativa acessível e democrática.

“Em muitos casos, o livro didático é a única possibilidade. Considero, com todas as críticas que possamos fazer a ele, que o Programa Nacional do Livro e do Material Didático do Brasil é uma política pública exitosa e que deve ser fortalecida”

Alan Alves Brito

Uma outra questão que emerge no desafio da popularização da ciência é a de como interferir construtivamente nesse ambiente de novas mídias. Para a professora Marília Forgearini, isso não é necessariamente um obstáculo para o exercício científico. “Assim como os diferentes meios de comunicação desde a escrita já viveram seus momentos de serem considerados empecilhos, agora o celular está nessa posição. Mais uma vez somos desafiados a entender como usar essa ferramenta de comunicação que também pode ser importante para a formação científica”, acredita.

O professor Alan, por sua vez, vê os ambientes propiciados pelas tecnologias como possibilidades instrumentais para a produção científica na escola. “As mídias sociais e tecnologias digitais têm ampliado as vozes de pessoas distintas e, nesses processos, mais do que nunca precisaremos aprofundar sobre como os diálogos entre cientistas e não cientistas poderão acontecer, entendendo que os conhecimentos científico e popular se retroalimentam”, repara.

De fato, a emergência das plataformas digitais como uma tecnologia acessível, barata e abrangente oportunizou a visibilidade dos mais diferentes perfis de produtores e difusores de conteúdo – os chamados Influencers – que, no seu esteio, também abriram novas portas para a popularização da ciência. A esse respeito, recentemente a física brasileira Larissa Santos, que trabalha na China, foi destaque em uma revista nacional pelo trabalho de divulgação científica que realiza por meio de seu perfil Bariogênese.

Trazendo isso para o debate em tela, o professor Alan considera que as novas mídias e seus canais exigem do docente um papel mediador na interpretação das informações acessadas nos suportes tecnológicos. “Os professores são fundamentais para ajudar os estudantes a ‘lerem’ essas informações. O celular é, ele mesmo, um exemplo de aplicação tecnológica que só é possível por meio do desenvolvimento da ciência, que não está apartada da indústria cultural”, considera.

“Quanto mais formas de exposição do conhecimento, e quanto mais acessível for a linguagem, melhor”

Marcos Roberto de Oliveira

Precisamente sobre esse aspecto, o professor Marcos chama a atenção para o caráter consumista da informação nesses meios. “Falar em metabolismo virou mais ‘marketing’ que ciência, manutenção da saúde e prevenção de doenças. É importante que os estudantes tenham indicações de como o conhecimento científico está próximo, e não distante, como em filmes de ficção científica”, recomenda o docente.

Saiba mais:
Programa Ciência na Sociedade Ciência na Escola – iniciativa da Pró-reitoria de Pesquisa que contempla projetos nas modalidades BIPOP (Bolsa de Iniciação à Popularização da Ciência) e BIENC (Bolsa de Iniciação ao Ensino de Ciências)

Fisiologia na Escola, Ciência no Cotidiano – projeto desenvolvido pelo Programa de Pós-graduação e Fisiologia da UFRGS, que realiza palestras em escolas públicas de Porto Alegre. Contato com a professora Cristina Campos Carraro pelo e-mail cristinacamposcarraro@gmail.com

Canal Metabolismo – Dr. Marcos Roberto de Oliveira – dicas, esclarecimentos e informações sobre o metabolismo humano e temas afins

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