Publicado originalmente em Jornal da Universidade por Stéfani Fontanive. Para acessar, clique aqui.
Literatura | As mulheres sempre escreveram, mas, devido a um apagamento sistêmico, suas obras não são destacadas nos cânones. Projetos dentro e fora da UFRGS procuram voltar os olhares e as leituras para elas
*Foto: Flávio Dutra/JU
Na literatura, há diversas listas de livros clássicos “obrigatórios”, ou de “obras que você precisa ler antes de morrer”; existe até um Cânone Ocidental dos Clássicos. E todas essas listas têm algo em comum: a presença massiva de livros escritos por homens e um apagamento das obras escritas por mulheres. A historiadora Renata Dal Sasso, entretanto, afirma que “elas sempre estiveram lá, fazendo tudo o que os homens fazem”, inclusive, escrevendo.
Em suas épocas, as mulheres escreviam, eram lidas, publicadas e recebiam críticas, conta Cinara Ferreira, professora do Programa de Pós-graduação em Letras da UFRGS. Até Machado de Assis, grande nome da literatura brasileira, escrevia resenhas de obras publicadas por mulheres. É o caso da autora Narcisa Amália e seu livro Nebulosas.
“O apagamento vem mais da história que se conta depois”, finaliza Renata. Apesar dessa invisibilidade tardia e planejada, atualmente existem iniciativas que buscam trazê-las de volta para o centro da história e dar nova voz – ou capas – a elas.
Esquecidas pela história
“É inegável que o trabalho intelectual das mulheres foi sistematicamente invisibilizado durante séculos”, comenta Constância Duarte, coordenadora do grupo de pesquisa Mulheres em Letras, do CNPq. A pesquisadora traz um termo para explicar esse fenômeno, o memoricídio, que designa o assassinato e o apagamento de memória de determinada cultura. Ela explica que esse termo engloba o “processo de opressão e negação da participação da mulher ao longo da história, pois, ao eliminar a memória de luta e resistência ao patriarcado, a História impôs o silêncio e a invisibilidade às pioneiras”.
Mas “elas estavam aí, escrevendo”, afirma Anélia Pietrani, coordenadora do Grupo de Trabalho (GT) Mulheres na Literatura da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll). Na opinião da coordenadora, os cânones literários podem ter afastado as mulheres do centro da escrita.
Os cânones são conjuntos seja de regras, de livros ou de autores. Neles, estão presentes obras dadas como autoridades, oficiais ou exemplares, de suas áreas. Renata lembra que “o cânone é sempre obra de alguém”, em geral, homens, brancos, cisgêneros e heterossexuais. A historiadora e doutoranda em estudos africanos Thuila Ferreira complementa que “essa estrutura canônica já é criada de forma a manter as configurações sociais excludentes”. Essa é uma das razões para que escritoras mulheres não estejam presentes – e quando estão, serem brancas e europeias.
O esquecimento dessas autoras para a história, comenta Constância, “teve como consequência um grave dano à identidade feminina e ao acervo cultural brasileiro, além do desconhecimento generalizado da história de nossa opressão e de nossa resistência”. A pesquisadora vê apenas uma solução: a reconstrução de um novo cânone, levando em conta a participação feminina.
Mais visibilidade
Os cânones e as leituras dadas como “obrigatórias” surgem no meio acadêmico, então, a contrapartida também deve surgir. Fundado em 1984, o GT Mulheres na Literatura da Anpoll é uma das formas de trazer a leitura de mulheres – e da história dessa autoria – para a Universidade.
A UFRGS também apresenta projetos com o mesmo objetivo. Cinara ministra cursos de extensão voltados à leitura de poesias escritas por mulheres. A professora lembra-se da importância de se ler não apenas autoras brancas, mas também negras e indígenas.
Nesse recorte, há o projeto ”Biografias de Mulheres Africanas”, um projeto do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros, Indígenas e Africanos (NEAB-UFRGS). Nele, 559 mulheres africanas têm suas biografias contadas em português e disponíveis no site. Há diversas autoras nessa lista, como Maaza Mengiste e Chimamanda Adichie. Thuila, que foi uma das idealizadoras da pesquisa, explica que as obras dessas autoras “nos inspiram a refletir sobre temas relevantes, como migrações, xenofobia e racismo”. A pesquisadora ainda lembra da história do Brasil, formado por europeus, africanos e indígenas, e que apenas um desses grupos é reconhecido. “Dialogar com nossas origens é nos conhecer, é lembrar de nós mesmos enquanto indivíduos e enquanto povo”, finaliza.
Ao se referir ao resgate da história de mulheres escritoras, Cinara, Anélia e Constância citaram a pesquisadora Zahide Muzart, responsável pela coletânea Escritoras Brasileiras do Século XIX, obra em três volumes que contempla a biografia de diversas autoras dos séculos XVIII, XIX e XX. A pesquisadora era a responsável pela editora Mulheres, que buscava republicar livros de escritoras silenciadas pela história.
Fora dos portões das universidades, a Biblioteca Pública do Estado do Rio Grande do Sul lançou o projeto “Leia uma Autora”. Por meio dele, ao escanear um livro escrito por um homem, aparecerá a indicação de outro, escrito por uma mulher, com temática ou gênero semelhante. Ao escanearmos, por exemplo, a capa de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, indica-se a obra Memórias de Adriano, da belga Marguerite Yourcenar. “O objetivo é usar a visibilidade masculina para dar lugar a visibilidade feminina”, aponta Morgana Marcon, diretora da biblioteca e idealizadora do projeto.
A biblioteca conta com um acervo de mais de 200 mil livros; destes, 60 mil estão catalogados e 400 já contam com pares – um livro escrito por um homem e um por uma mulher, mas o objetivo é que todos sejam catalogados e encontrem um match. No site, ainda é possível ver o catálogo de autoras presentes no local. Clássicas como Virginia Woolf e Jane Austen estão presentes, assim como Carolina Maria de Jesus e Lygia Fagundes Telles. “Temos grandes escritoras mulheres, seja no Rio Grande do Sul, no Brasil ou no mundo. Precisamos dar visibilidade a elas”, afirma a diretora, que conta que o projeto ampliou o acervo da biblioteca, e autoras mulheres agora levam suas obras até a biblioteca para fazer parte dele.
Constância aponta que projetos como o da biblioteca são “antídotos” ao memoricídio. “O importante é que as pessoas leiam, e ainda mais que essas mulheres sejam lidas”, afirma Morgana.
Uma forma de ampliar a visão de mundo
Leitura é, muitas vezes, relembrada como uma ação que faz o leitor viajar, conhecer diferentes realidades. Renata e Anélia citam a importância da literatura no exercício da empatia, ao se imaginar no mundo dos personagens. Quando uma mulher escreve, ela também se transporta para as páginas, ela traz “sua voz e realidade para os livros”, aponta Cinara. Há um consenso entre as entrevistadas que a leitura é uma forma de conhecer novos olhares sobre o mundo.
Ao entrar em contato com livros de diferentes autorias, e não apenas masculinas, tem-se uma visão mais ampla da sociedade e de suas relações. Cinara ainda traz um desejo: de que, um dia, seja “natural” para todos ler mulheres da mesma forma que é ler clássicos escritos por homens.