Publicado originalmente em ObjETHOS. Para acessar, clique aqui.
Clarissa Peixoto
Jornalista, mestra em Jornalismo pelo PPGJor/UFSC e pesquisadora do objETHOS
Uma questão bastante delicada dentro do ethos e da práxis jornalística é a participação política de jornalistas. Valores míticos desse universo profissional, como neutralidade e imparcialidade, ainda povoam o imaginário social quando se tenta dar contornos para um conceito de jornalismo ou mesmo sobre o modo que se espera que jornalistas ajam.
Nos últimos anos, jornalistas vivenciaram uma série de violências, relatadas com detalhe nos relatórios da Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj) que buscam diagnosticar a violência contra jornalistas e a liberdade de imprensa no Brasil. O contexto jogou luz sobre as condições desses profissionais, deixando mais nítidas as fronteiras entre os interesses da categoria em detrimento de patrões ou mesmo do status quo vigente.
A desqualificação pública da identidade profissional, que já sofre com a crise do modelo hegemônico de se fazer jornalismo, empurrou jornalistas para uma radicalização na defesa de seus próprios direitos. Ou seja, quando a corda aperta o pescoço, torna-se premente a necessidade de organização para responder às condições materiais que se impõem. Nesse sentido, parece bastante oportuno que jornalistas tomem posições, sob o peso de manter a sua própria sobrevivência, não apenas como um conjunto profissional, mas como indivíduos que sentem na pele os reflexos da radicalização política.
Esse movimento nos obriga a olhar com mais cuidado para o papel social de jornalistas e o direito à participação política, ainda que valores como neutralidade e imparcialidade ainda se façam presentes na disputa de ideias sobre uma práxis jornalística.
Parto da ideia de que é importante pensar o jornalismo como uma práxis social que defende valores como “a capacidade de ouvir o máximo de ideias em jogo na sociedade, fazendo correlações discursivas, comparações equivalentes, desmistificações” (PEIXOTO, 2021) e contextualizações em defesa do interesse público.
Jornalistas, participação política e ética jornalística
A avalanche de notícias falsas e a ofensiva contra jornalistas demonstraram a necessidade desses profissionais de confrontar sua própria identidade e modelos de representação. Logicamente, a situação já era crítica antes desse novo período de recrudescimento da violência.
Quando o tema é participação política de jornalistas, parece oportuno considerar algumas frentes de reflexão e ação participativa. A primeira diz respeito ao papel desempenhado em defesa da radicalização democrática. Ora, se cabe ao jornalismo prezar pelos preceitos democrático, é fundamental que ele atue sob valores como transparência jornalística e honestidade discursiva, explicitando não só pontos de partida e metodologias de trabalho, como as fronteiras sociais, os interesses econômicos e os horizontes políticos que delimitam cada narrativa jornalística.
O combate às notícias falsas e os discursos de ódio precisam se manter fortemente. Assim como iniciativas que se dedicam à investigação e a denúncia de entes públicos e privados que atacam a própria democracia liberal e qualquer tentativa de transformá-la em um sistema mais justo e participativo.
Isso diz respeito à segunda reflexão que me proponho: a ideia de um ativismo em defesa do próprio jornalismo. Atuar contra as fake news, primar pela ética profissional na defesa dos direitos humanos, como prevê os códigos de ética jornalística, é uma tarefa cotidiana de jornalistas, mas nem sempre é algo simples de realizar no âmbito profissional.
O terceiro aspecto que se coloca como desafio para jornalistas e exige participação política tem a ver com a ampliação de direitos e da representação da diversidade dentro do próprio campo jornalístico, seja na pauta cotidiana ou mesmo (e principalmente) dentro das redações, locais e postos de trabalho. Considero como essencial, para salvaguardar os direitos humanos, a questão racial e de gênero, sobretudo, porque no Brasil se tratam de maiorias subalternizadas.
De acordo com o Perfil da/o Jornalista Brasileira/o 2021, 57,8% das pessoas respondentes são mulheres. Pessoas identificadas como pardas e pretas somam 29,9%. Embora as mulheres sejam maioria, ainda são poucas as que atuam em cargos de chefia e ganham os maiores salários. Já no que diz respeito à questão racial, a participação desses profissionais ainda é pequena, se comparada a porcentagem de pessoas pretas e pardas da população brasileira, estimada em 56%, conforme dados do IBGE.
Direito à organização e defesa dos próprios direitos
Se o jornalismo é uma profissão com tanta importância para a vida em sociedade, a medida é bastante desigual quando o assunto são direitos trabalhistas. Os contratos por pessoa jurídica e os excessos, no que diz respeito às jornadas de trabalho, são comuns entre os profissionais de jornalismo.
A precarização não é relativa apenas ao vínculo empregatício. De acordo com dados do Perfil da/o Jornalista Brasileira/o 2021, 41% das pessoas entrevistadas admitem ter um ritmo de trabalho muito intenso e 67% dizem que vivenciam lógicas de organizações enxutas, com poucas pessoas para realizar as atividades.
Do ponto de vista salarial, a maioria ganha no máximo R$ 5.500. Já quando o assunto é estresse devido a carga laboral, 48,8% das pessoas se sentem estressadas com frequência ou diariamente.
Não são poucas as dificuldades dessa categoria profissional, no entanto, a participação em defesa dos seus próprios direitos é ainda limitada. 68,6% das pessoas entrevistadas pelo Perfil da/o Jornalista Brasileira/o declararam não ter filiação a nenhum sindicato.
A pesquisa considera que o contexto geral do trabalho jornalístico, com a flexibilização e precarização do trabalho, coloca dificuldades à organização sindical. Freelancers, MEIs e PJs acreditam que seus vínculos empregatícios não estão protegidos pelos sindicatos, assim como a falta de tempo e a sobrecarga de trabalho são motivos para a não filiação e participação sindical.
As críticas sobre a ação sindical também revelam um certo desinteresse da categoria em se organizar e protagonizar as resoluções de seus próprios problemas classistas. É como se houvesse uma terceirização de um trabalho organizativo que requer o empenho de todas e todos, não apenas de direções sindicais.
No entanto, para qualquer ampliação da participação política de trabalhadores em sindicatos, o que se pode observar é a necessidade de reconstrução desses espaços, o que exige uma reflexão sobre o atual mundo do trabalho e as novas demandas de quem vende a sua força produtiva.
O momento político demonstra a necessidade de participação política de jornalistas sob o risco de desmantelamento da profissão, pela sua importância para a sociedade e pela defesa dos direitos conquistados por essa categoria a duras penas. Tudo está em disputa, incluindo os novos contornos que se desenham para o jornalismo e para jornalistas deste início de século.