Publicado originalmente em Agência Bori. Para acessar, clique aqui.
Por Márcia Tait e Laura Martins de Carvalho
Apesar de ter-nos pego de surpresa, a pandemia de Covid-19 não foi um fenômeno tão imprevisto quanto se imagina. Ela integra a explosão de doenças que presenciamos nas últimas décadas. Tendo problemas ecológicos como agravantes, registramos o surgimento de cerca de 300 novos patógenos nos últimos 50 anos. Com isso, desenvolvemos doenças emergentes (como a própria Covid-19) e presenciamos o retorno de outras.
Nesse contexto, a alimentação é central. Ao longo do isolamento social, vimos reportagens alertando para a possibilidade de novas pandemias, destacando, por exemplo, a criação de animais para consumo humano como um criadouro de novos patógenos. Alguns cientistas consideram que o que estamos enfrentando nos últimos anos é uma “sindemia” (conjunto de pandemias) caracterizada pela simultaneidade de desnutrição, obesidade e mudanças climáticas, fruto da atual organização de nossos sistemas alimentares. Tudo está conectado.
Assim, as cidades e seus habitantes estão cada vez mais vulneráveis e ao mesmo tempo são corresponsáveis por problemas complexos que envolvem o meio ambiente, a saúde e a alimentação. A busca por soluções implica envolver as cidades nas políticas agroalimentares pensando os diversos territórios urbanos não apenas como locais de consumo, mas como espaço de vivências e de produção de alimentos pela agricultura.
A chamada Agricultura Urbana e Periurbana (AUP) é potente nesse sentido: relaciona-se com as dimensões humana, ambiental e de saúde das cidades. Trata-se de um fenômeno relativamente recente em diversos lugares do mundo e adaptável às diversas práticas culturais de cada cidade ou comunidade. Os impactos positivos são vários, indo desde a coesão social até o estímulo à economia local, passando, é claro, pelo apoio à segurança alimentar.
Partindo da cidade de São Paulo como um exemplo, percebemos que os bairros e populações que vivem em periferias altamente urbanizadas têm manifestado um crescente interesse em hortas urbanas, uma vez que descobrem suas funções de produção de alimento a preço acessível.
Quando acompanhamos os espaços de organização de hortas urbanas — os quais ainda são de difícil acesso para mulheres, mas que, uma vez que as acolhem, melhoram significativamente sua qualidade de vida — é possível entender o entrelaçamento das práticas ambientais, redes de apoio e saberes populares e a capacidade de gerar e fomentar fluxos de abundância. Isso tem impacto positivo em questões como falta de emprego, de oportunidade, de conformidade às forças do mercado de trabalho e das estruturas opressoras contra a mulher. Além disso, as hortas urbanas têm efeitos positivos na saúde: foram relatadas percepções como perda de peso, melhora na pressão arterial e na sensação de bem-estar em geral.
Esse conjunto de vantagens reafirma a importância de formulação de políticas efetivas para transformar sistemas agroalimentares em busca de segurança alimentar e equidade. A articulação de esforços entre setores da sociedade civil, Estado (em suas diversas instâncias) e produtivos é fundamental para redesenhar os sistemas agroalimentares nacionais. Essas novas formas de organização devem considerar a integração das cidades e o envolvimento permanente de moradores e gestores públicos.
As hortas urbanas comunitárias têm o potencial de integrar ações mais amplas num horizonte de construção de uma governança democrática da alimentação e uma nova geografia alimentar. As relações que se estabelecem nesses espaços mostram potenciais de transformação dos sistemas agroalimentares em direção a possibilidades concretas de integração das práticas das hortas comunitárias urbanas às dimensões da saúde coletiva, justiça social, ambiental e de gênero e ao direito à cidade.
Sobre as autoras
Laura Martins de Carvalho é doutora em Saúde Global e Sustentabilidade pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Atualmente é assistente de pesquisa no projeto “Better Decision Support for Better Urban Governance”, liderado pela Universidade de Manchester (Reino Unido), em parceria com a Universidade de Brasília, a Fundação Getulio Vargas de São Paulo e El Colegio de Jalisco (México), sobre métodos que apoiam a tomada de decisão usados por diferentes atores envolvidos na governança urbana.
Márcia Tait Lima é pesquisadora no Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) e professora do Mestrado em Divulgação Científica e Cultural da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em 2021 integrou a equipe de pesquisa contemplada com o financiamento do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso) e da Organização das Nações Unidas (ONU-Mulheres) para projetos no tema Feminismo e Ambiente na América Latina.