Publicado originalmente em Jornal da UFRGS por Alexandre Briozo Gomes Filho. Para acessar, clique aqui.
Cultura | Em um cenário no qual os editais de incentivo não suprem a demanda e requerem aparatos administrativos para lidar com as questões burocráticas, artistas precisam realizar uma série de esforços individuais e coletivos para continuar trabalhando
*Foto: Vilmar Carvalho (Arquivo/27 mar. 2022)
Um recente estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), feito com base nas leis de incentivo do estado de São Paulo, apontou que, para cada 1 real investido em cultura, o retorno para a economia paulista é de 1,6 reais. No Rio Grande do Sul, as leis de incentivo à cultura se fazem presentes ao longo de todo o ano através de editais direcionados a diferentes campos do setor artístico. Diversos grupos e associações, tal qual a Companhia de Ópera do RS (CORS), possuem uma organização interna que facilita a captação de recursos disponibilizados por meio desses editais, enquanto outros grupos, como o bloco de batucada coletiva independente Turucutá, são privados desses incentivos por não possuírem o aparato administrativo necessário para lidar com as burocracias desse tipo de financiamento.
Segundo a Secretaria de Estado da Cultura (Sedac), em 2022 foram financiados cerca de 450 projetos com o Fundo de Apoio à Cultura e 421 com recursos da Lei de Incentivo à Cultura. Nesta última, foram investidos 70 milhões de reais, valor máximo autorizado pelo Governo do Estado.
Quando a demanda de projetos é maior que a oferta de incentivo financeiro, os artistas se reinventam no improviso e buscam meios alternativos de subsidiar seus trabalhos. Raphael Oliveira, mestrando em Economia pela UFRGS, diz que na ausência de capital financeiro e presença de capital intelectual, este deve ser explorado, e ressalta que o trabalho coletivo é uma saída viável para artistas e grupos que não possuem acesso a investimentos ou querem obtê-los sem tantas dificuldades. Associações que atuam como cooperativas em grupos de arte, apesar de ainda não serem tão presentes no cenário cultural, acenam positivamente para o desenvolvimento da economia da cultura, quer sejam juridicamente reconhecidas ou não.
Unindo forças para fazer acontecer
Marcelo Ádams, ator, professor do curso de Teatro da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS) e cofundador do Grupo Teatro ao Quadrado, conta que no campo dos incentivos públicos o número de produções realizadas por ano é maior que os financiamentos ofertados. “A maioria dos grupos não tem financiamento e trabalha de forma cooperativada”, ele diz. Na ausência de fomento estadual, Marcelo financia os próprios projetos e conta com uma série de esforços individuais e coletivos para trazer à realidade os projetos que esboça junto de sua esposa, a atriz Margarida Peixoto.
Para que o grupo consiga montar um espetáculo teatral autofinanciado, em várias ocasiões são reunidos profissionais de diferentes partes integrantes, como figurino, iluminação, sonoplastia, arte gráfica, produção, atuação e direção, para fazerem um trabalho de forma cooperativada. “Chamamos isso de ‘trabalhar por bolinha’”, explica, e detalha que a remuneração dos profissionais se dá apenas após as apresentações do espetáculo, conforme o dinheiro vai entrando no caixa, sendo que o profissional é pago de acordo com o nível de responsabilidade que assume com o seu papel — no caso de atores, diretores e produtores, é comum que recebam mais devido à complexidade de seu trabalho. “Se são 10 profissionais no projeto, retiramos do valor bruto as despesas com transporte e demais gastos e dividimos o valor líquido de acordo com a quantidade de ‘bolinhas’ atribuída a cada um dos trabalhadores.”
A maneira mais adequada de fazer esse trabalho seria por meio de remuneração prévia aos trabalhadores. Com todos os desafios enfrentados a partir dessa instabilidade financeira dentro de projetos artísticos, o ator comenta que a cooperação é a maneira pela qual os artistas independentes conseguem continuar trabalhando.
“A expressão ‘a união faz a força’, apesar de clichê, é absolutamente autêntica. A gente vê como a união pode fazer a força se há uma harmonia mínima entre os elementos que propõem essa união”
Marcelo Ádams
O bloco de batucada coletiva independente Turucutá atua há mais de 15 anos no cenário cultural de Porto Alegre e “se vira nos trinta” para se manter em atividade. O músico e treinador corporativo Eduardo Gerhardt, um dos responsáveis pela organização do grupo, diz que o financiamento vem das apresentações feitas pelo grupo-show de 16 pessoas. Fora do carnaval, que é o período em que o grupo ganha mais destaque no cenário cultural, o financiamento vem das apresentações em casas de shows e da oficina de batucada. “Nós até já entramos em um edital de incentivo, mas isso envolve uma rede de gestão administrativa e financeira da qual não dispomos”, diz Eduardo. A complexa burocracia em torno das leis de incentivo acaba por desgastar o grupo, que, no fim das contas, opta por não seguir com a submissão de um projeto. Com um retorno financeiro insuficiente para permitir dedicação integral ao projeto, os integrantes do grupo possuem fontes de renda alternativa.
A burocracia das leis de incentivo à cultura não é o único obstáculo ao bloco Turucutá. A recepção do trabalho do grupo pelo público local e pela prefeitura é, de acordo com Eduardo, algo que contribui para que o grupo viva em um constante período de dificuldade financeira.
“A gente tem uma sociedade porto-alegrense que desconsidera a cultura popular em prol de um tradicionalismo que é tido como a cultura oficial, e isso reflete diretamente nas políticas públicas, nos financiamentos e nas fontes de renda”
Eduardo Gerhardt
Trabalhar em cooperativa com outros coletivos de batucada possibilitaria maior facilidade na realização do trabalho do grupo, mas isso ainda não é uma realidade. Eduardo entende que os grupos de batucada possuem personalidades muito distintas entre si, o que poderia complicar na tomada de decisões coletivas a respeito do que aceitar ou não, da origem e da destinação do dinheiro. “A unificação de certas coisas pode pesar, acho que não rola isso ainda”, finaliza.
A Lei Rouanet permite que pessoas físicas e jurídicas destinem parte do imposto de renda devido ao financiamento de projetos culturais previamente aprovados pelo Ministério da Cultura. Marcio Noronha, professor do curso de Dança da UFRGS e pesquisador em Economia da Cultura, destaca que, pelo fato de a Lei Rouanet ser uma lei que atende aos mecenas e dá autonomia ao empreendedor, ela possibilita o fortalecimento da estratégia de produção cultural do marketing das empresas. “Se eu sou um empresário e tenho uma marca X, eu tenho o interesse de vincular o meu empreendimento a grandes artistas, nomes célebres com carreiras nacionais consolidadas”, ele explica. O que fica fora dessa concepção são os artistas que não fazem parte do mainstream da cultura brasileira ou local, e que acabam por não ter o mesmo incentivo ou reconhecimento em seus projetos, tal qual o grupo Turucutá.
Arte é trabalho
O improviso e a reinvenção são duas características fortes da arte. À medida que as transformações socioculturais acontecem, paralelamente a arte se reinventa para manter o seu papel de tradutora dessas mudanças, e os artistas improvisam conforme as ferramentas de que dispõem. Realizar tal manobra individualmente pode ser um grande esforço, mas fazer isso coletivamente, além de facilitar o trabalho, abre caminhos que antes não eram avistados no horizonte.
Um exemplo do que resultou da união do empreendimento com a arte é a Companhia de Ópera do RS, que é reconhecida juridicamente como uma associação, mas que atua como uma cooperativa. Com o intuito de criar algo independente das instituições já existentes na área, a companhia, hoje composta por mais de 40 profissionais da arte, começou a se formar ainda no início da pandemia de coronavírus. Foi nesse mesmo período que Flávio Leite, diretor da CORS, inscreveu a companhia na Lei Aldir Blanc, que previa ações emergenciais de apoio ao setor cultural. Com o agravamento da pandemia, o grupo de cantores líricos teve que esperar o retorno das atividades presenciais para inaugurarem o nome da companhia com a sua primeira apresentação. Desde então, o investimento dos espetáculos vem do dinheiro da bilheteria.
O sucesso da primeira apresentação rendeu uma repercussão positiva na imprensa e um oferecimento do diretor do Theatro São Pedro para que o espaço sediasse as atividades da companhia. Flávio atribui o sucesso da CORS à organização do grupo, que conta com a contribuição de profissionais de diferentes áreas de trabalho. Ele conta que os integrantes da companhia possuem diferentes habilidades para além do canto. “Eu sou formado em Relações Públicas, cuido desse assunto na companhia. Também temos uma produtora, uma pedagoga que toca piano e que ensina, temos um jornalista que cuida da comunicação da CORS, uma figurinista maquiadora, e assim fomos indo”, relata. Os solistas mantêm carreira independente para além da companhia, o que os permite ter uma fonte de renda alternativa. Contemplados pela última vez no início de 2020, o grupo planeja voltar a participar de editais de incentivos culturais neste ano.
Expandindo a rede de trabalho que a CORS promove, para alguns espetáculos são contratados artistas externos ao trabalho da companhia, como bailarinos e artistas visuais para a produção de cenários. Isso ocorre porque um espetáculo de ópera precisa de artistas de diferentes especialidades.
Flávio não tem dúvidas de que o trabalho em cooperativa é o caminho a ser seguido para maior fomento da arte, assim como esse formato tem sido usado em outras áreas, como no mercado financeiro e no setor agrícola. “Uma andorinha só não faz verão”, metaforiza. Mas o diretor também ressalta a importância do papel social da arte. “Precisamos deixar de lado essa concepção de que a arte é um custo, sendo que a arte, na verdade, é uma indústria, é emprego para as pessoas, é trabalho. Sem falar que [a arte] tem todos os objetivos de mudança da sociedade, sensibilização social através de cultura e a reflexão sobre temas atuais”, conclui.