Publicado originalmente em Agência Bori. Para acessar, clique aqui.
Além da crise sanitária e econômica, a pandemia exacerbou uma crise política no Brasil, materializada nas disputas federativas. O conflito entre a negação da Covid-19 e seu enfrentamento gerou consequências evidentes nos atritos entre presidente e governadores, e, de forma menos evidente, também permeia os corredores das repartições públicas.
Essa disputa entre políticos e burocratas, que não é nova, ficou mais evidente e crítica durante o Governo Bolsonaro, especialmente no último ano. Isso porque cabe à burocracia pública operacionalizar as decisões políticas e, ao mesmo tempo, garantir continuidade e funcionamento do Estado. Frente a um governo negacionista e com decisões muitas vezes questionáveis, parte da burocracia tem agido de forma insubordinada, tocando o funcionamento da máquina à parte das decisões presidenciais.
Até que ponto esta insubordinação é indesejada em uma democracia? Ou seria uma legítima manifestação do funcionamento burocrático frente a governos disfuncionais? Em crises como a que vivemos, deveria existir uma gestão pública vigilante, que antecipa problemas complexos e busca contribuir para a solução. Esse é o principal argumento que eu e Marcelo Marchesini trazemos para o livro “Legados de uma Pandemia”, organizado por Laura Muller Machado. Ao longo do nosso capítulo, discutimos três elementos que mostram como a pandemia estimulou essa gestão pública vigilante, não só no Brasil, mas em várias partes do mundo.
De forma resumida, um primeiro elemento é a busca dos Estados nacionais em adquirir e usar dados populacionais. Medidas como rastreamento de contatos e monitoramento de circulação aumentam a capacidade dos governos de tomar decisões com base em evidência, mas impactam na liberdade e privacidade dos indivíduos. Um segundo foco é a autonomia que burocracias têm ganho para constituir e operar arranjos de governança.
No Brasil, o funcionamento do SUS, do Butantan, da Fiocruz e da Anvisa frente à política são evidências deste processo. Fortalecidas, algumas organizações públicas conseguiram construir parcerias e desenvolver ações a partir de princípios próprios, o que certamente é uma virtude, mas que deveria ser limitada pela transparência e controle social. O terceiro e último elemento tem a ver com o papel dos profissionais da linha de frente dos serviços públicos, que ganharam inequívoca visibilidade e importância durante a pandemia. Lidando com governos disfuncionais, falta de diretrizes, recursos e suporte, esses profissionais se viram limitados na sua capacidade de entrega, porque ao contrário do que por vezes aconteceu, não estavam no centro das atenções dos governos.
Para fortalecer o Estado brasileiro e a gestão pública vigilante, o ideal seria que houvesse sistemas de políticas com arranjos colaborativos e controle social, além de uma valorização dos servidores públicos. Encontrar um meio termo entre política e burocracia seria uma forma de lidar com as disfuncionalidades atuais do Estado brasileiro. Afinal, se a política é inerente à democracia, a burocracia é inerente à legalidade e ao Estado de direito. O equilíbrio entre ambos é condição essencial para a construção de um Estado democrático de direito.
Sobre esse artigo
Gabriela Lotta é professora da EAESP FGV, coordenadora do NEB, pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole e uma das autoras do livro “Legado de uma Pandemia”, que está sendo lançado neste dia 01 de março de 2021. O livro é gratuito em formato ebook.