Publicado originalmente em Observatório de Comunicação Pública – OBCOMP. Para acessar, clique aqui.
Com seis meses de governo Lula, a Frente em Defesa da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) cobrou mais avanços na retomada da Comunicação Pública por parte da atual gestão. Em carta endereçada ao governo (confira o texto completo ao final da matéria), os participantes da frente destacam frustrações como falta de recursos e priorização da comunicação governamental em detrimento ao jornalismo público.
“Das imensas expectativas, vieram as primeiras grandes frustrações. Desfalcada em recursos, estrutura e pessoas durante o governo bolsonarista, a EBC passou por um redesenho, no qual a comunicação pública foi a principal sacrificada. A maioria dos cargos da área de jornalismo público foi transferida para o serviço governamental. Além disso, apareceram distorções, como o fato de o setor de Comunicação Institucional ter ganhado uma gerência executiva, após remanejamento que retirou essa mesma estrutura de áreas da atividade-fim da empresa”, diz a carta da Frente em Defesa da EBC.
A Frente aponta ainda como falhas na gestão da EBC a falta da participação social na governança da empresa pública e também decisões editoriais tomadas em detrimento do jornalismo público. A carta aponta avanços em coberturas e diversidade nas pautas, mas enfatiza que representam ações pontuais e facilmente reversíveis, se não houver a consolidação da autonomia para a empresa pública. A mensagem aponta ainda a manutenção de problemas advindos do governo passado.
“Trabalhadores se queixam da repetição de problemas que deveriam ter ficado no passado, como a manutenção em cargos de chefia de servidores que promoveram assédio e censura na gestão passada, totalmente alinhada ao bolsonarismo. Além disso, a maior parte desses cargos está sendo preenchida por perfis de homens cis brancos, sem qualquer preocupação com a diversificação de gênero e raça em posições de comando, algo que tem sido uma prática cada vez mais comum, sobretudo em segmentos de comunicação, inclusive os privados”, pontua a carta, reforçando estranhamento pela demora na retomada do caráter público da EBC.
EBC e Secom prometem nova NBR
No cenário da carta assinada pela Frente em Defesa da EBC, a EBC e a Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom-PR) já discutem a possibilidade de recriação da antiga TV Nacional Brasil (NBR), com o nome de Canal Gov. A proposta, de acordo com o site Tela Viva, é a de realizar a comunicação governamental com a divulgação de ações do governo utilizando o que atualmente é o sinal da TV Brasil 2.
Atualmente, o Canal Gov já funciona no YouTube e abriga publicações de vídeos com a agenda do presidente, entrevistas com ministros, inaugurações e entrevistas com outros gestores. Na proposta da Secom e EBC a ideia é implementar no portfólio de serviços rádio web, newsletter, agência de notícias e redes sociais do poder Executivo. Todo o sistema, chamado de Rede Gov pela Secom, ficaria sob a gestão da EBC. Veja detalhes sobre como funcionaria a Rede Gov.
Veja a carta completa da Frente em Defesa da EBC
Seis meses de governo sem comunicação pública
Por uma EBC participativa e portadora do imaginário democrático brasileiro
Um projeto estruturado de comunicação pública tornou-se um sonho no segundo mandato do presidente Lula, quando o Congresso Nacional aprovou a Medida Provisória (MP) que criou a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), convertida na Lei nº 11.652, de 7 de abril de 2008. Esta nasceu com essenciais instrumentos de autonomia, com destaque para o mandato de diretor-presidente da empresa, não-coincidente com o mandato do presidente da República, um Conselho Curador com ampla participação social e com atribuições deliberativas sobre o trabalho da Comunicação Pública, além de uma Ouvidoria para receber avaliações do público e analisar a programação dos veículos públicos. Já a viabilidade inicial foi assegurada pela criação da Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública (CFRP), também incluída na lei de criação da EBC.
Para um país que praticamente só conheceu a comunicação privada, com exceção de experiências locais importantes como a TV Cultura de São Paulo, a EBC com seu alcance nacional foi criada para fazer cumprir a Constituição Federal de 1988, cujo texto estabelece que o Poder Executivo deve observar o princípio da complementaridade dos sistemas privado, estatal e público de comunicação.
A nova empresa de comunicação pública nasceu forte, ao reunir as emissoras e agências operadas pela Radiobrás (Rádio Nacional, TV Nacional de Brasília, Agência Brasil e Radioagência Nacional) e as geridas pela Acerp (Rádio MEC e TVE RJ e MA). E com uma missão estratégica: articular uma rede nacional de comunicação pública, que também passava a ser beneficiária da CFRP. Sem prejuízo de sua natureza de empresa de comunicação pública, a lei também atribuiu à EBC a prestação de serviço ao Governo Federal em canal próprio e separado – a TV NBR –, assim como na Rede Nacional de Rádio e em programas como A Voz do Brasil e Café com o Presidente. Isto era um serviço, e não a missão principal da empresa.
No entanto, o golpe contra a democracia, com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, atingiu também o princípio da complementaridade dos sistemas de comunicação. Por meio de uma outra Medida Provisória, editada pelo presidente Michel Temer apenas um dia após ter sido confirmado no cargo, e que acabou sendo transformada em lei pelo Congresso Nacional, todos os instrumentos de autonomia da EBC foram extirpados da empresa, que se tornou, na prática, apenas um braço governamental. Na ocasião, foram extintos o mandato do diretor-presidente da empresa e o Conselho Curador, substituído por um órgão, batizado de Comitê Editorial e de Programação, completamente desprovido de caráter deliberativo, com viés decorativo, e que, apesar de previsto na lei, sequer foi instituído até os dias atuais.
Ainda em 2019, o governo Bolsonaro unificou a programação das emissoras pública e governamental (NBR), misturando-as e subordinando o que deveria ser comunicação pública, sem proselitismo, à comunicação de governo. Tornaram-se rotina as interrupções de programação da TV Brasil, a emissora pública, incluindo na faixa horária infantil, para a exibição de eventos ao vivo com o presidente da República, o que deveria ser prática exclusiva de um canal oficial.
Desta forma, vemos que a perda dos instrumentos participativos de regulação da EBC e a subordinação da empresa ao projeto autoritário bolsonarista afastou-a de sua missão pública, ferindo sua autonomia e ameaçando reduzi-la a porta-voz oficial do governo vigente. O uso que o ex-presidente Jair Bolsonaro fez da TV Brasil durante sua campanha eleitoral, e que resultou na decisão do STF pela sua inelegibilidade, expressa bem o alto grau de distorção que transformou as estruturas da EBC nos últimos anos. É preciso urgentemente reverter esse processo e retomar a implementação do projeto de sistema público de comunicação.
A volta do presidente Lula ao governo, eleito em 2022, trouxe novamente esperanças. Durante seis anos, organizações preocupadas com a comunicação pública mantiveram a vigilância e a denúncia dos sucessivos desmontes da EBC, através da Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública, criando inclusive uma Ouvidoria Cidadã da EBC e realizando debates, cursos e seminários. É importante ressaltar que um monitoramento da Frente resultou na elaboração de quatro edições de um relatório sobre censura e governismo na EBC, que geraram grande visibilidade na imprensa, expondo os abusos cometidos pelo governo de então na comunicação pública. Esse acúmulo foi sintetizado no Caderno Reconstrói a EBC e a Comunicação pública e nas contribuições entregues ao governo pelo Grupo de Transição sobre a comunicação pública.
Destas contribuições, as principais eram as de retomada do projeto inicial com a separação entre sua missão de comunicação pública e o serviço prestado ao governo, bem como a volta do Conselho Curador. O jornalismo público deveria ser fortalecido. A programação precisaria contemplar os movimentos culturais periféricos, e sua produção que ainda hoje está sem apoio. A luta ambiental deveria ser travada com inclusão das vozes originárias das florestas, regiões e ambientes afetados – hoje sem canais públicos ao seu alcance, assim como as lutas por direitos e contra as desigualdades. O papel da comunicação pública na cena internacional também foi reivindicado como estratégico na defesa da soberania. A EBC deveria ser portadora do imaginário democrático, participativo e inclusivo, livre das amarras de mercado ou político-partidárias. Poderia ser um instrumento importante de informação sobre o Brasil e de soft power da cultura brasileiro no exterior, como o são as diversas experiências importantes de comunicação pública de outros países, que mantêm uma presença relevante em diversas partes do mundo. Ao mesmo tempo, um forte movimento reivindicava o enegrecimento da EBC, a começar pela sua direção.
A tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023 expôs a fragilidade da EBC – ainda sob o efeito das transformações operadas durante o governo de Bolsonaro – na cobertura dos eventos que colocaram em risco a democracia brasileira. Estava claro que o projeto de comunicação pública deveria ser retomado, começando pela troca imediata da gestão. Essa transição foi iniciada com ajuda de duas lideranças trabalhadoras da Casa, uma ex-conselheira e presidenta do Conselho Curador cassado e duas assessoras do governo. Foi um brevíssimo período de tempo, até que o governo nomeou a atual diretoria, sob o comando do jornalista Hélio Doyle.
Das imensas expectativas, vieram as primeiras grandes frustrações. Desfalcada em recursos, estrutura e pessoas durante o governo bolsonarista, a EBC passou por um redesenho, no qual a comunicação pública foi a principal sacrificada. A maioria de cargos do aérea de jornalismo público foram transferidos para o serviço governamental. Além disso, apareceram distorções, como o fato de o setor de Comunicação Institucional ter ganhado uma gerência executiva, após remanejamento que retirou essa mesma estrutura de áreas da atividade-fim da empresa.
A prometida separação entre o público e o governamental ainda não aconteceu e a participação social na governança até agora não foi retomada. Nem mesmo um instrumento como o Comitê Editorial previsto na Lei de Temer, ainda que insuficiente, foi instalado, mesmo tendo o Ministério Público cobrado da empresa o cumprimento da lei. Nesses seis meses de governo, decisões importantes foram tomadas na EBC sem qualquer debate com a sociedade civil, como o fim de quatro telejornais e a realização de um pitching para reformular as grades da TV Brasil e das rádios. Decisões de gabinete que afastam a empresa do cumprimento de sua missão pública. É preciso reconhecer que algumas medidas, como uma maior diversidade na pauta e na programação das emissoras, bem como a retomada de coberturas importantes, como o Festival Latinidades, temas de direitos humanos, entre outras, têm sido positivas, mas estão longe de contemplar as necessidades da comunicação pública, dado que são avanços pontuais e facilmente reversíveis, ainda mais sem os devidos instrumentos de autonomia.
Trabalhadores se queixam da repetição de problemas que deveriam ter ficado no passado, como a manutenção em cargos de chefia de servidores que promoveram assédio e censura na gestão passada, totalmente alinhada ao bolsonarismo. Além disso, a maior parte desses cargos está sendo preenchida por perfis de homens cis brancos, sem qualquer preocupação com a diversificação de gênero e raça em posições de comando, algo que tem sido uma prática cada vez mais comum, sobretudo em segmentos de comunicação, inclusive os privados. A EBC é quem deveria ser referência em diversidade de gênero, raça e orientação sexual tanto em sua programação, quanto no perfil de suas equipes, mas está ficando vergonhosamente para trás.
Na Ouvidoria, permanece um militar de carreira nomeado no apagar das luzes do governo passado para esse cargo fundamental na interlocução dos setores da empresa com a sociedade. As análises críticas previstas na lei simplesmente deixaram de ser feitas – um papel que a sociedade civil precisou assumir com a criação da Ouvidoria Cidadã da EBC.
É desconcertante como as falas vindas da gestão da EBC mostram desconhecimento do que seja comunicação pública. O equívoco começa por chamar de “pública” uma parte da empresa que ainda é totalmente governamental. A empresa passará a ser pública quando o controle público for restabelecido, com um Conselho deliberativo, representativo das regiões, diversidade étnica-racial e de gênero, bem como a inclusão de qualificações técnicas e conhecimento acadêmico mediante consulta pública.
Lembramos que a participação social foi um aspecto enfatizado pelo governo Lula ao recompor e criar conselhos de participação em diversos setores sociais, inclusive com o “Conselhão”. Recuperar a participação na comunicação para retomar sua missão pública passa, evidentemente, por entraves políticos que podem ter inibido, até agora, o envio de uma Medida Provisória ou Projeto de Lei para que um conselho deliberativo na EBC seja restituído. Mas, a vontade política da retomada democrática deve prevalecer. E a EBC precisa ser compreendida como parte fundamental dessa retomada.
Retomar os mecanismos de autonomia da EBC, recompor a força de trabalho reduzida desde 2016 e assegurar recursos para que a EBC volte a cumprir seu papel na condução de um projeto de comunicação pública para o Brasil são providências urgentes para reverter o golpe que feriu esse projeto quase de morte, ao mesmo tempo em que assombrou nossa democracia.
Esta nota pública expressa nosso estranhamento pelo tardar do resgate da EBC, que continua sem um projeto minimamente consistente e sem diálogo suficiente com a sociedade civil, mas é também uma manifestação de esperança e compromisso com a sua reconstrução. Nos manifestamos aqui para mais uma vez abraçarmos a EBC e nos colocarmos à disposição do governo, parlamentares, gestão e segmentos democráticos da sociedade para que a nossa jovem empresa de comunicação pública volte a cumprir sua missão, a servir nossa democracia e a soberania nacional.
Seis meses após o início do Governo Lula, a EBC segue sem fazer comunicação pública. Até quando?
FRENTE EM DEFESA DA EBC E DA COMUNICAÇÃO PÚBLICA