Publicado originalmente em objETHOS por Dairan Paul. Para acessar, clique aqui.
Coube à Flavia Lima a tarefa de mergulhar no caos informacional da pandemia e escrever críticas públicas semanais no jornal Folha de S.Paulo. Ombudsman do veículo desde 2019, a jornalista viu sua rotina ser soterrada por uma pauta única, até mesmo nas conversas com os amigos. A pressa e o empenho para compreender o assunto se explicam pelo cargo que ocupa. “Sem entender, eu não poderia criticar”, sintetiza.
De forma geral, Flavia avalia que a cobertura da imprensa teve mais acertos do que erros. Destaca cuidados na veiculação de informações seguras e no didatismo dos textos, o que auxiliou para uma melhor leitura do acontecimento. Isto a despeito das idas e vindas das autoridades políticas, ressalva. Os recuos constantes do governo sobre o uso de máscaras, por exemplo, confundiram leitores, que identificaram as informações como um erro de cobertura, conforme os e-mails que a ombudsman recebe diariamente. Flavia também critica o debate em torno da cloroquina, “feito numa chave muito politizada de ser contra ou a favor do remédio”, o que se traduziu em textos polarizadores sobre o tema.
Além da cobertura, a entrevistada comenta como percebe as transformações do jornalismo em meio à pandemia, incluindo redução de equipes e demissões de profissionais da imprensa. “O mais desafiador é que o leitor não tem nada a ver com isso. Ele quer um produto, o que precisa continuar a ser entregue. Temos um baita desafio pela frente”.
Flavia Lima tem passagem por veículos como Valor Econômico, TV Bloomberg e revista Dinheiro. É repórter especializada em economia há 20 anos e chegou à Folha em 2017, onde atuava no caderno Mercado antes de se tornar ombudsman. Tem formação em Direito (Mackenzie) e Ciências Sociais (USP).
Na entrevista a seguir, ela comenta sua avaliação da cobertura da pandemia, o dia a dia no trabalho de ombudsman e como a crítica é assimilada na redação de Folha. Toca, ainda, em assuntos delicados, como a conflituosa relação do jornal com o tema da ditadura militar brasileira. E menciona ainda sua recente participação no congresso da Abraji, onde discutiu racismo nas redações ao lado de Yasmin Santos (ex-repórter da piauí) e Nikole Hannah-Jones (New York Times). Para Flavia, a homogeneidade das redações foi outra discussão levantada durante a pandemia – “nossa profissão tem falhas e é pouco diversa”, define. Confira:
“Não há garantias de que a valorização da informação confiável não vá desembocar em perdas importantes para o jornalismo”
Como você avalia os erros e acertos da imprensa na cobertura da pandemia?
Acompanhei detalhadamente alguns dos grandes jornais durante a pandemia. Diariamente, tento ler Folha, Estadão, Globo e Valor Econômico, além de me informar em sites e veículos de outras regiões do Brasil, e ficar de olho no New York Times. Tento absorver um pouquinho de cada um desses veículos, fora a televisão – Globo News e Jornal Nacional, por exemplo.
Posso dizer que a imprensa mais acertou do que errou na cobertura da pandemia. Acho que a informação foi repassada para o leitor da maneira mais precisa, ou segura, o quanto foi possível, em cada fase da pandemia. Vi um cuidado com o didatismo nas explicações dos textos.
De qualquer forma foi um novo universo de conteúdo, inclusive para aqueles que produzem informação. O começo foi exaustivo. Como leitora, eu me sentia soterrada de informações, mas, ao mesmo tempo, sabia que aquilo estava sendo feito com cuidado. As fontes ouvidas, por exemplo, eram da área sanitária e/ou científica, e as informações foram repassadas da maneira mais didática possível. Lembro que a Folha, bem no início, em março, fez um grande perguntas e respostas para os leitores, o que não deve ter sido fácil naquele momento de tantas dúvidas. Então é nesse sentido que eu falo mais acertos do que erros: os mecanismos de transmissão foram explicados, as condições de trabalho dos profissionais de saúde foram acompanhadas, assim como a situação dos hospitais, com dados, números, a causa das mortes, o drama das pessoas – o que também é super relevante. Como leitores, dá para dizer que nos foi entregue uma boa cobertura.
Por se tratar de um fenômeno novo aos jornalistas, quais foram as dificuldades iniciais na adaptação da cobertura? E quais desafios ainda persistem para os profissionais da imprensa?
Com relação às dificuldades iniciais, em primeiro, toda a redação foi para o home office num período curtíssimo de tempo. Até hoje, 95% estão trabalhando de casa. Operacionalmente falando, não deve ter sido muito simples – a gente até achava que não seria possível –, mas aconteceu. Outra dificuldade foi o temor de algum repórter se contaminar em pautas externas, sobretudo nas regiões mais afetadas. E teve ainda o aprendizado de equilibrar rotina doméstica junto com o trabalho. Como o jornalismo é, sobretudo, formado pela classe média, boa parte dos jornalistas não estava acostumada a lidar com a rotina diária da casa porque contava com trabalhadores domésticos.
Quanto aos desafios persistentes, a falta de comunicação presencial entre os jornalistas foi uma grande questão. Acho que ficou claro para todo mundo que a convivência diária nas redações é super importante para a troca de ideias. Ela ajuda a aprimorar o conteúdo do jornal, a discutir pautas, ajustá-las… Vejo que a comunicação em menor escala de quem produz a informação foi um desafio importante.
Mas me parece também que as idas e vindas das autoridades de saúde afetaram, de alguma forma, a cobertura – e aí não necessariamente sendo culpa das redações, portanto. Você dizer que hoje não precisa usar máscara, mas amanhã informa que ela é essencial, ou então a abertura das escolas, um tema que até hoje não tem consenso, por exemplo. Percebo, pelos e-mails que recebo dos leitores, que tudo isso acaba sendo visto como problemas de cobertura da imprensa – ainda que não sejam.
Como crítica, o que talvez tenha se sobressaído na cobertura da pandemia foi o debate sobre a cloroquina. Ele foi feito numa chave muito politizada de ser contra ou a favor do remédio, esquecendo que, na verdade, quem decide seu uso é o médico.
Parte dos jornais acabou se deixando pautar por um misto de teoria da conspiração com ignorância e até mesmo má-fé, o que se expressou na armadilha de opor textos contra ou a favor da cloroquina. Em meados de abril, por exemplo, as matérias mais lidas na Folha de S.Paulo tinham cloroquina no título. A imprensa acabou se deixando seduzir pela polarização em torno do remédio, o que achei lamentável.
Como ombudsman, você também é uma ponte do jornal com os leitores. Como eles vêm percebendo a cobertura da Folha sobre o tema? Há uma saturação em relação à pandemia?
Parte deles está, sim, saturada do assunto. Há cerca de um mês, recebi e-mails de leitores questionando se o jornal não teria mais nada falar, se [jornalistas] não estavam cansados de tanta desgraça, e que “não era possível que nada tivesse melhorado”. Cheguei a receber mensagens de leitores da região Sul que não entendiam a ênfase dada pela Folha à doença, numa fase na qual ela era mais expressiva no Norte, Nordeste e Sudeste do país. Outros também afirmavam que o vírus não é “tudo aquilo que vocês estão dizendo”. E aí eu sento e tento explicar a eles por quê continuamos falando sobre a pandemia.
O desejo do leitor por boas notícias é legítimo e, para atendê-lo, a Folha tem uma seção específica chamada Dias Melhores. Mas chamou a minha atenção que o governo tentou pegar carona nesse desejo ao pedir à imprensa uma agenda positiva. Precisamos reprisar algumas lições básicas que todo jornalista sabe. A função primeira da imprensa não é “ajudar” o poder constituído, nem trazer “boas notícias” ou trocar afagos com ele. Tem que fiscalizá-lo da melhor maneira possível. A pandemia acabou enfatizando a importância de cobrar o que tem sido feito nas formas de lidar com a doença.
Você acredita que há, por parte dos leitores, uma maior valorização do jornalismo e da informação de qualidade neste momento?
Acho que nunca ficou tão claro para uma parcela importante dos leitores a importância da informação bem apurada, já que, no limite, ela pode colocar suas vidas em risco. Houve, sim, uma corrida atrás da boa informação, e a Folha, assim como a maior parte dos veículos de comunicação, bateu recordes seguidos de visitantes durante os meses mais profundos da doença. O mais curioso é que essa valorização acontece num momento muito complicado para a imprensa, no qual a credibilidade tem sido atacada continuamente e sua utilidade vem sendo sendo colocada em xeque.
Agora, não há garantias de que a valorização da informação confiável não vá desembocar em perdas importantes para o jornalismo. Não tem a ver com a pandemia e a cobertura feita até então, mas com o quão ferido está o negócio dos jornais. Não se sabe se redações não vão sair ainda mais reduzidas dessa história. E o mais desafiador é que o leitor não tem nada a ver com isso. Ele quer um bom produto, o que precisa continuar a ser entregue. Temos um baita desafio pela frente.
Como a sua rotina de ombudsman foi afetada pela pandemia?
Produzo dois relatórios diários com críticas internas à redação, um no fim da manhã e outro no fim da tarde. Isso não mudou. Eu também trabalhava bastante em casa já antes da pandemia, então essa experiência não me era estranha. O que senti, e aí acho que não foi só comigo, é que parte ainda maior da minha vida foi absorvida pelo trabalho. Porque a partir do momento que você precisa lidar com uma quantidade de notícias gigante, você vai acabar trabalhando mais. Como eu lia muita coisa, me senti soterrada pelas notícias, e lembro que até no diálogo com outras pessoas o meu único assunto era o coronavírus.
Em relação ao trabalho de ombudsman, o que mudou foi a pandemia se tornar grande parte do que eu pensava ou escrevia, como reação ao que a própria Folha produzia. Senti a necessidade de entender o que estava acontecendo, e de uma maneira rápida, para poder fazer a crítica daquilo. Sem entender, eu não poderia criticar. Então foi uma corrida grande pela informação, para compreender o momento e poder contribuir, de alguma forma, com o conteúdo que estava sendo feito pelo jornal.
“Durante a implementação de governos autoritários no Brasil, a imprensa construiu uma imagem dela mesma como defensora da democracia, o que, olhando mais de perto, só se confirma a posteriori”
Sobre a função que você ocupa, sabemos que ela é delicada e que o jornalista está mais acostumado a vigiar outros poderes do que necessariamente ser, ele mesmo, o ‘alvo’ das críticas. Gostaria que você comentasse como a crítica é assimilada na redação da Folha e se há disposição dos profissionais para ouvi-las.
Antes de falar como eles recebem, quero te explicar como faço a crítica. Eu me imputo algumas regras. A primeira e talvez a mais importante é nunca pensar no autor da reportagem. Evitar ao máximo fulanizar essa crítica. Senão, no limite, o seu trabalho fica inviável, já que você conhece as pessoas da redação. Então é esquecer de quem escreveu a matéria e entender que a crítica não é dirigida à instituição Folha, ou ao autor, mas ao conteúdo do texto, com o objetivo de melhorá-lo. Isso é sempre muito ligado no que os próprios leitores estão dizendo.
Com relação ao diálogo, nós temos um blog interno onde posto a crítica. Repórteres, editores, qualquer um da redação pode comentá-la, e isso se transforma geralmente num diálogo, às vezes mais intenso, às vezes menos. Por exemplo, o jornalista escreve que discorda de algum ponto, que escreveu tal coisa por tal motivo, e eu respondo mostrando onde acho que ele errou – mas também tenho consciência de que nem sempre tenho razão. O que posso dizer, muito sinceramente, é que o diálogo sempre se dá de maneira bem tranquila e respeitosa. Não me lembro de alguma coisa ter acontecido e que eu tenha me sentido mal com aquela troca de mensagens.
Se as críticas se transformam em mudanças, acho que é algo mais complexo. Algumas eu vejo poucos dias depois, outras são mais profundas e não são uma ou duas críticas que vão alterar algo em curto prazo. Há mudanças que demandam um pouco mais de reflexão, digamos.
Alguns erros são recorrentes e te incomodam?
Ah, tem de tudo. Desde coisas mais estruturais até coisas básicas que comento todo dia – parágrafos com sentido truncado, abordagens pouco críticas, matérias que repetem muita fonte oficial ou não oferecem contexto suficiente ao leitor. Há bastante erro gramatical, o que os leitores odeiam e sempre apontam. É normal. E há os erros mais estruturais, como eu disse, que demandam reflexões profundas.
Em coluna recente, você retomou a relação espinhosa de Folha com o tema da ditadura militar. Para alguns assuntos como esse, o veículo demorou anos, até décadas, para rever conceitos e fazer uma autocrítica. Você acredita que esse exercício de refletir sobre suas próprias práticas acontece agora de forma mais rápida?
Retomei recentemente o episódio da “ditabranda” porque achei importante naquele momento para o leitor. O cenário político era de uma imprensa duramente atacada por governantes, e a Folha tem feito uma campanha importante pela democracia. Começo lembrando o manual de práticas da Folha, que apenas na sua versão de 2018 diz, com todas as letras, que a expressão “ditadura militar” designa o regime que vigorou no Brasil entre 1964 e 1984. Só em 2018. A partir dessa informação, talvez o episódio da ditabranda surpreenda menos o leitor. Como leitora da Folha à época, eu não consegui entendê-lo. Mas o jornal acabou se retratando e admitiu que o termo tinha uma conotação leviana, não se prestava à realidade do assunto.
O que quero dizer é que a imprensa, em momentos de implementação de governos autoritários no Brasil, construiu uma imagem dela mesma como defensora da democracia, o que, olhando mais de perto, só se confirma a posteriori. O apoio inicial é abalado quando esses governos vêm pra cima da liberdade de imprensa – por isso a posteriori, quando a imprensa se defende ao ter sua liberdade atacada.
Voltando ao presente, acho também que a Folha é um dos poucos jornais que se dispõem a ter alguém criticando seu conteúdo todos os dias. É relevante internamente, e também porque acontece semanalmente em público, na minha coluna de domingo. Acho que não é pra qualquer veículo. Mas estar disposto a ter alguém que é pago para fazer essa crítica não significa necessariamente acatá-la ou absorvê-la. Isso é outro processo, e que pra mim é difícil de avaliar. Sinto que são avanços e recuos. Há coisas que posso visualizar em pouco tempo no jornal, mas outras mudanças demandam um exercício de refletir sobre suas próprias práticas, o que nem sempre acontece tão rapidamente. No entanto, a reflexão é constante.
Você também escreveu uma coluna sobre a mudança das redações para o home office, o que poderia acelerar mudanças no setor. Gostaria que você comentasse um pouco mais sobre o impacto que as redações, como espaço físico, têm nas discussões dos jornalistas, nas suas tomadas de decisão e até mesmo na resolução de dilemas éticos, por exemplo.
O espaço físico comum é fundamental nas discussões de conteúdo do jornal, nos dilemas que repórteres enfrentam no dia a dia e, no limite, até nas discussões sobre as críticas. Além dos relatórios da ombudsman, a Folha ainda tem uma autocrítica diária produzida pela secretaria de redação. Crítica não falta.
Vejo o home office como possibilidade, mas não como algo permanente, porque a convivência é importante para jornalistas. Até cheguei a pensar que a ideia do trabalho remoto tinha vindo para ficar. Talvez seja verdade, mas não de uma maneira generalizada. O que se transformou em realidade é a possibilidade de trabalhar um ou dois dias remotamente, porque percebemos que isso funciona e é válido, mas a ideia de redação é fundamental pela troca. E acho que repórteres também sentem falta de se comunicar, da pauta que sai do cafezinho que você toma com alguém, troca ideia, e dali saem ideias para reportagens mais parrudas.
Para além das mudanças enfrentadas pelos veículos de comunicação na pandemia, é importante dizer que também descobrimos outras coisas. Aí volto para o que falei no sábado [na mesa que coordenou durante a Abraji]. Descobrimos, entre aspas, obviamente, que somos uma sociedade profundamente desigual e racista. E que veículos de comunicação são um grande espelho dessa sociedade. Por isso, gostaria de terminar falando que as discussões de saúde pública ganharam relevância, sem dúvida, mas, para além disso, fomos levados a discutir a homogeneidade das redações, o que transborda e também marca a cobertura jornalística. Estamos começando a entender que daí vem a importância de termos profissionais negros, pretos e pardos, mulheres, da comunidade LGBTQIA+, com experiências profissionais distintas, participando de todas as etapas da produção jornalísticas. Tudo isso aconteceu ao mesmo tempo – a pandemia e essas “descobertas” de que nossa profissão tem falhas e é pouco diversa.
*Dairan Paul
Doutorando em Jornalismo (PPGJOR/UFSC) e pesquisador do objETHOS