Fatores como estresse e transtornos mentais podem estar por trás dos bloqueios criativos

Publicado originalmente em Jornal da Universidade por Luísa Teixeira Mendonça. Para acessar, clique aqui.

Processos de criação | Especialistas explicam que, ao contrário do que se costuma pensar, a criatividade não está apenas associada a grandes feitos e pode ser exercitada

*Foto: Oito e Meio, Federico Fellini/ Reprodução YouTube

Quem nunca passou por um bloqueio criativo, aquele momento em que paramos em frente a um documento em branco e não sabemos por onde começar uma tarefa? Apesar de comum, poucas pessoas sabem que a criatividade é uma função psicológica, não um talento nato – e, por isso, pode e deve ser exercitada.

“A sua chance de ser criativo numa área é diretamente proporcional ao conhecimento que se tem dessa área. A gente só pode criar onde a gente conhece”, explica a professora do Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano do Instituto de Psicologia da UnB Mônica Souza Neves. De acordo com ela, a criatividade implica trazer um elemento novo ou ressignificado e é um conceito que varia conforme o local e a época: o que é considerado criativo aqui no Brasil pode não ser considerado na Mongólia ou em uma comunidade tribal, por exemplo.

A necessidade de pesquisar e estudar diferentes contextos e ambientes também é destacada pelo professor do curso de Escrita Criativa do Núcleo de Ensino de Línguas em Extensão (NELE) da UFRGS, Tiago Kickhöfel. Na escrita, por exemplo, se a pessoas não têm um repertório ou têm pouca prática, podem surgir bloqueios na hora de produzir.

Bloqueios: relação corpo e mente

Outro aspecto pouco conhecido sobre a criatividade é o impacto de questões de saúde física e mental. Professora do Instituto de Psicologia e coordenadora do Núcleo de Neurociência Clínica (NUPENC) da UFRGS, Rosa de Almeida pesquisa sobre estresse e efeito de álcool e drogas no cérebro e explica que a regulação do cortisol – hormônio que age em situações de estresse – pode afetar a cognição. Para se ter criatividade, acrescenta, é preciso que os neurotransmissores do sistema nervoso central estejam em níveis adequados. Esses índices variam de uma pessoa para outra, mas, caso estejam muito baixos ou muito elevados, podem prejudicar a parte cognitiva e criativa.

Neurotransmissores são mensageiros químicos que transmitem informações entre os neurônios. A adrenalina, por exemplo, é um neurotransmissor que costuma ser liberado quando estamos em alguma situação de enfrentamento, em que se exige alguma reação ou que desperte medo e fortes emoções. A coordenadora do NUPENC explica que a motivação é um dos fatores importantes para a criatividade e está relacionada à dopamina, que atua em situações de prazer e recompensa. A desregulação dessas sinapses pode afetar o processo criativo.

Outro fator que altera o funcionamento do corpo são os efeitos colaterais de medicamentos. Rosa explica que, quando uma pessoa utiliza um medicamento que age no sistema da serotonina – como os antidepressivos Fluoxetina e Sertralina – “é mais complicado porque a serotonina tem muitos receptores espalhados por todo o encéfalo, então o medicamento melhora uma função, como, por exemplo, tirar da depressão, mas pode alterar outros comportamentos”. A professora enfatiza que isso varia, pois cada pessoa tem um desenvolvimento individual e que comportamento, cognição e emoção andam sempre juntos.

Esse efeito rebote dos medicamentos acontece porque as drogas não são completamente específicas: um remédio que auxilia no tratamento da depressão pode alterar sono e comportamento alimentar, por exemplo. Como a criatividade não está localizada em uma área exclusiva do cérebro, essas mudanças podem influenciar o seu desenvolvimento, pois todo o sistema está envolvido.

Mônica Neves conta que existem estudos que mostram que as condições de saúde mental afetam o processo criativo de uma forma negativa. Vincent Van Gogh, por exemplo, tinha uma deficiência mental severa e, pelo fato de ter sido um gênio na pintura, muitas vezes, é feita uma associação fantasiosa do “gênio louco”. “Quando estudamos a vida dele, percebemos que nos momentos de crise ele não produzia, se afastava, se recolhia. Os momentos produtivos dele foram momentos de crises ‘menos graves’”, relata a professora. Não se pode afirmar, entretanto, que pessoas com algum transtorno mental não são criativas: tudo precisa ser avaliado e investigado, porque o cérebro é complexo, e os comportamentos mudam de acordo com cada pessoa.

Em Oito e Meio, filme do cineasta italiano Federico Fellini, de 1963, Marcelo Mastroianni faz o papel de Guido Anselmi, um cineasta em crise criativa (Fotos: Reprodução YouTube)
De onde vem a criação

Engana-se quem pensa que crianças são mais criativas que adultos. Elas apenas passaram por menos bloqueios e sentem que têm mais liberdade para se expressar. Pensar em criar coisas novas é algo recorrente em todas as pessoas, mas a criatividade expressa em produtos (ou seja, as criações) demanda que as pessoas enfrentem a sociedade e, consequentemente, sejam alvo de críticas. “É muito mais difícil você enfrentar essas ideias no campo social do que você manter as ideias com você”, comenta Mônica. Ela complementa que o processo educativo que acontece na família e na escola, por si só, é um processo de limitações e que, ao se fazer uma análise sociológica, é possível perceber que existem muitos bloqueios impostos – não só relacionados à criatividade, mas também a memória, percepção e emoções. Para ela, usar a expressão “bloqueio criativo”, entretanto, é legítimo “porque bloqueios não faltam para a expressão completa do sujeito. Em momentos em que o período é conservador, castrador e punitivo, é muito difícil ser criativo”, explica.

A liberdade e o desprendimento das certezas são fatores essenciais para a criatividade apontados pela professora do Instituto de Artes da UFRGS Camila Bauer.

“No momento em que a gente passa a lidar com ideias fixas, tem pouco espaço para criação”

Camila Bauer

Para Camila, que também é diretora de teatro e encenadora, a criatividade passa por conseguir dar corpo a pensamentos e ideias. Ela comenta que, muitas vezes, chegamos a um ponto em que parece que as ideias se esgotaram, e quando isso ocorre é necessário parar, se afastar e fazer algo diferente. “Se estamos muito fechados em alguma coisa ou muito obsessivos em alguma ideia, as respostas podem estar ao nosso lado e não as percebemos porque não prestamos atenção”, ressalta.

Tiago afirma que os processos criativos são muito individuais. Na turma de Escrita Criativa do NELE, ele recebe alunos de diferentes graus de experiência – desde aqueles que nunca escreveram literatura aos que já publicaram romances – e considera que é importante pensar que o processo criativo é um aprendizado e, portanto, está em constante evolução. O docente complementa que a criatividade não está apenas nas artes que as pessoas costumam admirar em museus e, sim, na capacidade de resolver um problema com as ferramentas disponíveis naquele contexto. “Recortar uma garrafa pet para consertar uma goteira é tão criativo quanto criar um personagem. A gambiarra é o exercício da criatividade brasileira”, brinca.

Dicas para exercitar a criatividade:
: Pesquise e estude: para incentivar o surgimento de novas ideias, é importante ter um grande repertório de referências. Criar um personagem, por exemplo, exige estudos sobre origem, história e comportamento. A partir disso é que surge a criação.
: Cuide da sua saúde: a prática de exercícios ajuda a manter os níveis dos neurotransmissores e outras substâncias em quantidades saudáveis para o funcionamento do cérebro.
: Busque uma segunda opinião: outra pessoa pode propor algo novo em que você não havia pensado, e isso pode ajudar a contornar um bloqueio criativo.
: Quando travar em algum ponto a partir do qual não consegue avançar, faça algo completamente diferente – um bolo, por exemplo. Isso dá espaço a ideias novas.

*Fontes: Tiago Kickhöfel, professor de Escrita Criativa do NELE/UFRGS; Rosa de Almeida, docente do Instituto de Psicologia da UFRGS; e Camila Bauer, professora do Instituto de Artes da UFRGS

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