Extrema-direita troca YouTube por Cos.TV para espalhar e lucrar com desinformação

Publicado originalmente em Agência Lupa por Carol Macário. Para acessar, clique aqui.

Usuários do YouTube que tiveram vídeos removidos por violação de políticas de integridade da plataforma nos últimos anos encontraram espaço e formas de monetizar conteúdo em uma outra rede social: a Cos.TV. Levantamento da Lupa mostrou que conteúdos sobre as eleições, a segurança das urnas e a Covid-19 que foram banidos por disseminarem desinformação seguem ativos, repercutindo e gerando renda nessa plataforma. 

Cos.TV foi lançada em 2019 pela Contentos, uma empresa de conteúdo digital com sede em Singapura, na Ásia, e seus principais diretores são chineses. A plataforma funciona de uma forma muito similar ao YouTube, inclusive no layout. A diferença principal é que é baseada na tecnologia blockchain (sistema que, resumidamente, permite transações de moedas digitais). Isso significa que tanto quem produz e compartilha vídeos quanto quem assiste a esses conteúdos pode ganhar dinheiro. Até o dia 2 de fevereiro, essa rede social contava com 2,1 milhões de usuários cadastrados em todo o mundo. Não há dados sobre o total de membros no Brasil.

Em janeiro, uma pesquisa publicada pelo Núcleo Jornalismo identificou que, a partir de maio de 2021, houve um crescimento de menções à Cos.TV por canais de extrema-direita populares no YouTube, como Vlog do Lisboa, Ed Raposo e Gustavo Gayer (deputado federal eleito em 2022 pelo PL de Goiás). Esse “chamado” para migrar de rede coincide com o endurecimento do YouTube em relação a vídeos com informações falsas e à decisão de desmonetizar canais por causa de desinformação.

Nas redes sociais, especialmente no Twitter, é possível observar um movimento crescente de tuítes com chamados para mudar de rede, motivado por usuários que dizem sofrer censura e alegam que, na Cos.TV, a liberdade é total.

Uma pesquisa sobre as menções à Cos.TV no CrowdTangle, ferramenta que monitora o Facebook e o Instagram, confirma a tese de que as tentativas de chamar seguidores para a rede social de vídeos da Contentos coincide com os pedidos de remoção do YouTube — tanto por decisão judicial, como as do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), especialmente em 2022, como em razão do endurecimento da política da plataforma contra desinformação. Entre 2021 e 2023, os picos de publicações sobre a plataforma foram em maio e em novembro de 2021, depois em julho e setembro de 2022 e em janeiro de 2023.  

‘Liberdade incondicional’

Pelo menos 28 vídeos removidos do YouTube por terem veiculado informações falsas foram localizados em canais da Cos.TV. Veja a lista aqui (atualizada até 6 de fevereiro). Entre os exemplos, estão conteúdos que associam o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à facção de crime organizado PCC, relações entre presidiários e Lula, bem como que o novo coronavírus teria sido fabricado em laboratório — informações que já foram desmentidas. 

Um dos canais da Cos.TV em que é possível localizar conteúdos idênticos aos que foram banidos no YouTube pertence a Gustavo Gayer, influenciador de extrema-direita que assumiu em 1º de fevereiro como deputado federal (PL-GO). O blogueiro já foi condenado pela Justiça por veicular informações falsas sobre a pandemia. Em 2021, o Google revelou que ele foi o segundo youtuber que mais lucrou com fakes sobre a Covid-19. 

Em maio de 2021, Gayer já tinha feito um apelo aos seguidores para que começassem a usar uma nova rede e, dessa forma, escapar do que ele chamou de censura. Em junho de 2022, ele repetiu o pedido, alegando que já estava na hora de “parar de depender do YouTube e das Big Techs” e convocando usuários a mudarem antes que “todos” sejam censurados. Já em 2023, especialmente em seu canal no Gettr (rede social que tem grande aderência de conservadores), esse recado está na legenda da maior parte das publicações de Gayer.

Isso talvez explique o fato de ele ter se tornado uma figura central para a comunidade da Cos.TV Brasil. Em janeiro deste ano, Gayer foi citado no relatório mensal da empresa por ter encabeçado uma campanha chamada “SomosLivres”. Segundo o documento, mais de 50 mil usuários participaram da campanha e ao menos 2 mil fizeram parte das discussões. O relatório se refere a Gayer como um dos “comentaristas políticos mais influentes do Brasil”. 

O deputado Gustavo Gayer foi procurado pela Lupa e respondeu apenas que os vídeos que foram citados como exemplos na pergunta feita a ele pela reportagem não foram removidos por decisão judicial. 

Quem está na Cos. TV

Embora tenha 69 mil inscritos em seu canal na Cos.TV, Gayer não é o único youtuber que tem levado conteúdos descontextualizados, falsos ou com desinformação disfarçada de opinião para a plataforma de vídeo da Contentos. Também têm uma atuação ativa o blogueiro bolsonarista Renato Barros (21,6 mil inscritos), o youtuber Fernando Lisboa, do Vlog do Lisboa (12,5 mil inscritos) — que faturou dinheiro com desinformação sobre urnas eletrônicas no YouTube —, e Ed Raposo (4,7 mil inscritos), entre outros. 

Além deles, canais como Hipócritas (15 mil inscritos), Farmador Inteligente Patriota (16,5 mil inscritos), Odair Del Pozzo (9,1 mil inscritos), Pátria Amada 2023 (2,3 mil inscritos) e BR Pátria Amada BR (1,5 mil inscritos), costumam postar semanalmente vídeos com padrão similar: títulos alarmantes, apoio incondicional ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), críticas ao Supremo Tribunal Federal (STF) e seus ministros e ataques aos políticos de esquerda e ao “comunismo”. 

Recentemente, em 17 de janeiro deste ano, a ex-comentarista da Jovem Pan Zoe Martinez entrou para a Cos.TV e, em menos de 15 dias, arregimentou mais de 7,1 mil inscritos. Em seu vídeo de estreia, ela disse que é importante “achar caminhos contra a censura” e celebrou o fato de a Cos.TV “oferecer liberdade total aos usuários”. Em outra publicação, alardeou que o Brasil está se transformando em uma “ditadura” — o que não é verdade. 

Em janeiro deste ano, Martinez foi uma das funcionárias demitidas da Jovem Pan — o desligamento ocorreu depois de o Ministério Público Federal de São Paulo (MPF-SP) instaurar um inquérito para investigar a veiculação de informações falsas e estímulo aos ataques antidemocráticos na emissora.

Rede não tem diretrizes sobre desinformação

Cos.TV não tem em seus Termos de Uso e Políticas de Privacidade nenhuma regra contra desinformação. A plataforma informa que conteúdos de pornografia, violência e bullying, discurso de ódio, atividades ilícitas e eventos trágicos (como desastres naturais, por exemplo) são proibidos. Entretanto, para conteúdos falsos, especificamente, não há nenhum detalhamento. 

Uma busca rápida com termos comuns entre quem compartilha desinformação, como “urna eletrônica”, “fraude urna”, “tratamento precoce” e “STF”, por exemplo, leva a posts com informações falsas já incansavelmente desmentidas por agências de checagem – reforçando que a plataforma é usada para disseminar fakes.

Lupa entrou em contato com a Contentos via e-mail e não obteve retorno. Também tentou contato por meio dos canais oficiais nas redes sociais da Cos.TV Brasil, sem resposta. Ainda procurou os diretores da empresa no LinkedIn. Somente uma funcionária da área de relações públicas, sediada na Argentina, retornou, informando que “algumas informações são confidenciais”.

A empresa também não respondeu a perguntas feitas pela Lupa sobre o número de usuários brasileiros e a evolução dos perfis desde a criação em 2019; o faturamento da empresa no Brasil; quais são os canais brasileiros que mais monetizaram e quais são os usuários que também faturaram. A reportagem será atualizada em caso de resposta.

Ativos em moeda digital

Cos.TV foi lançada em 2019 como uma plataforma de vídeo com conceito similar ao YouTube, mas que oferece a possibilidade de tanto criadores de conteúdo quanto usuários que consomem conteúdos serem remunerados. Isso é possível por meio da tecnologia blockchain, sistema que, entre outros, permite transações de criptomoedas (moedas digitais). Essa rede de vídeos está disponível em 10 idiomas, entre eles inglês, chinês, português e espanhol. 

Quanto mais interações um criador de conteúdo tiver, mais ativos receberá. Da mesma forma, quanto mais um usuário, ou seja, alguém que consome esses vídeos, interagir (curtir, comentar, compartilhar), mais será remunerado. O pagamento é com criptomoedas (moedas digitais) e, para receber os valores conquistados, o usuário necessariamente terá que ter uma conta em alguma corretora de criptomoedas, como a Binance, por exemplo. 

Além disso, o valor arrecadado (ativos já convertidos em moeda — em real, no caso do Brasil) em cada vídeo fica visível para todos os usuários. Ou seja, cada vídeo mostra em tempo real quanto está rendendo. O valor do quanto cada usuário está ganhando também fica visível na área de comentários. Vale pontuar que os valores das criptomoedas mudam diariamente, e por esse motivo, pode haver muita oscilação no valor dos rendimentos.

Lucro da empresa e dos usuários não é público

Por trás da Cos.TV está a Contentos, empresa voltada para conteúdo digital que atua especialmente com o que chama de protocolos de blockchain. Em sua página oficial, a Contentos se descreve como uma “comunidade digital descentralizada que permite que o conteúdo seja produzido, distribuído, recompensado e negociado livremente, enquanto protege os direitos do autor”.

À Lupa, um ex-colaborador da empresa que pediu para não ser identificado explicou que a Cos.TV é um protocolo que funciona numa rede descentralizada. “Normalmente, esses protocolos, por terem resistência à censura, vêm pregando uma narrativa de liberdade, de ‘free speech’. Essa liberdade total acaba atraindo pessoas que foram de alguma forma penalizadas em plataformas convencionais em razão de conteúdos falsos”, diz o ex-funcionário. 

Tanto é que, quando chegou ao Brasil, a propaganda da nova plataforma usava justamente esse artifício para atrair usuários. “É uma plataforma que não acontece algoritmicamente, ou seja, não tem um sistema de inteligência artificial que ‘analisa’ conteúdos de outros vídeos sendo replicados. Toda essa manutenção é manual, inclusive a curadoria de todos os conteúdos”, conta o profissional.

Por isso que conteúdos que viralizam são bem-vindos — e as plataformas convencionais são a prova de que teorias conspiratórias e desinformação são como fogo num palheiro e se espalham com velocidade.

Por meio da página explorer.contentos.io é possível acompanhar o número de usuários globais e a quantidade de transações por hora. Não há dados específicos sobre o Brasil. Também não estão públicas informações sobre faturamento mensal ou anual da empresa nem o valor total arrecadado pelos usuários com mais inscritos em seus canais ou que mais interagiram. Embora a Contentos publique relatórios mensais, esses documentos apenas relatam acontecimentos da comunidade de usuários ou da empresa.

De acordo com o ex-funcionário da organização, assim que a Cos.TV chegou ao Brasil os usuários brasileiros eram especialmente do interior, principalmente da região Sul, e que compartilhavam conteúdos similares aos das correntes do WhatsApp, como teorias conspiratórias ou informações descontextualizadas. “Não sei como o modelo da Cos.TV vem se sustentando: ou o custo é muito baixo ou a rede está de fato crescendo”, avalia o ex-funcionário.

Editado por

Leandro Becker e Maurício Moraes

Clique aqui para ver como a Lupa faz suas checagens e acessar a política de transparência

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