Por Mariana Lins | Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPE
Matéria publicada originalmente no Coronavírus em Xeque. Para acessar, clique aqui.
A pandemia da COVID 19 não tem provocado apenas um surto de desinformação. Temos testemunhado também mudanças no modo como as próprias informações jornalísticas estão sendo transmitidas. O mundo ocidental ainda tentava entender a dimensão do novo coronavírus, quando o governo da Itália anunciou, em 9 de março de 2020, o decreto-lei de lockdown (isolamento completo) para todo o país. Com pouco mais de 400 mortes até então, o território italiano já se delineava como o próximo epicentro da doença que a Organização Mundial da Saúde (OMS) elevaria ao status de pandemia dali a poucos dias. No Brasil, a informação chegou de manhã cedo pela TV, numa entrada ao vivo, bastante emocionada, da repórter Ilze Scamparini, no telejornal Bom Dia Brasil da Rede Globo. A notícia foi transmitida em meio ao choro incontido da repórter.
Correspondente na capital italiana desde 1999, Scamparini testemunha a evolução do vírus no país, ao mesmo tempo em que agencia um processo de humanização de sua cobertura jornalística, a partir de sua própria vulnerabilidade. Aos 61 anos, logo, pertencente ao grupo de pessoas idosas e com maior risco de contágio grave da Covid-19, ela segue no ar, apesar de a emissora ter decidido afastar do vídeo e das redações os profissionais com mais de 60 anos ou portadores de comorbidades.
Numa época em que quase a totalidade das notícias televisivas são transmitidas por rostos mais jovens, a performance da repórter desafia a configuração operacional que orienta a nova articulação entre os critérios de noticiabilidade e os protocolos de proteção. Narrando a si mesma, a cobertura de Scamparini incorpora camadas outras de percepção à crise sanitária global.
Segundo a pesquisadora Virpi Yläne, o papel e o grau de influência de certos grupos sociais, como mulheres e idosos, por exemplo, são parcialmente refletidos na presença ou ausência na mídia. No momento em que o novo coronavírus se consolida como uma doença de alto nível de letalidade para os mais velhos, alguns indícios parecem sugerir que os estigmas do idadismo (discriminação pela idade) podem estar sendo reiterados, seja por memes nas redes sociais ou pela forma algumas vezes infantilizada como são retratados os idosos na televisão.
A mídia, como aponta Yläne, é o espaço onde tanto idosos quanto jovens entendem e modelam o conceito de velhice. Devemos levar em conta que nossas experiências no mundo são mediadas pelo nosso corpo e todas as suas implicações. Por isso, observar a performance de Scamparini na cobertura da pandemia na Itália é reconhecer também as sensibilidades acionadas por sua condição de mulher, jornalista, moradora local e parte do grupo de risco de idade ameaçado pelo vírus. Elementos que orbitam seu corpo e lhe fornecem um conhecimento situado incapaz de ser descartado, sobretudo, numa época em que a credibilidade jornalística é continuamente questionada.
No dia 27 de março de 2020, o Globo Repórter exibe uma matéria especial de Scamparini, na qual ela mesma é a personagem, mostrando as adaptações que precisou incorporar para continuar trabalhando sem fugir das regras de isolamento social. Se na semana anterior a jornalista havia registrado, em reportagem para o Fantástico, uma volta de carro – e algumas caminhadas na rua – pelos principais pontos turísticos desertos de Roma, agora ela se resguarda e abre seu apartamento para detalhar sua rotina em lockdown.
Sempre em primeira pessoa, o texto do off se esforça para aproximar os telespectadores do sentimento de alerta permanente que ela experimenta em casa. “Eu acho que um dos momentos piores desse isolamento, dessa quarentena, acontece às seis da tarde, hora da Itália, 14 horas em Brasília, quando o boletim de mortos é atualizado pela Defesa Civil”, comenta Scamparini, filmada diante de sua TV acompanhando o anúncio das autoridades italianas.
A reportagem segue apresentando os desafios do jornalismo, mais artesanal do que nunca, produzido em meio às atividades domésticas da repórter.“Não é só a nossa liberdade pessoal que sofre restrições. O trabalho fica mais difícil e claustrofóbico. Ainda bem que a tecnologia ajuda a superar barreiras, as entrevistas pela internet trazem os entrevistados para dentro de casa”. Nesse momento, vemos a jornalista realizando apurações ao telefone, entrevistando via Skype e gravando passagens no estúdio improvisado em seu terraço.
Em seguida, ela se aprofunda mais em sua intimidade fora do ofício, revelando instantes de relaxamento com a jardinagem – “é muito bom recuperar o contato com as plantas” – e toda a operação envolvida na hora de fazer compras de frutas e verduras, por videochamada, com quem parece ser um quitandeiro conhecido seu de longa data. “Olá, Máximo, tudo bem? Você pode me enviar uma caixa de frutas?”, pede ela. A câmera acompanha o trajeto do entregador até o prédio da repórter, que o atende por interfone. Logo depois, ela surge carregando o pequeno caixote de frutas. “O isolamento nos ensina a comprar o necessário. Nessa época, é melhor comprar as frutas que podem ser descascadas e cozinhar todas as verduras”, recomenda.
No decorrer do vídeo, percebemos como a experiência vivida é fundamental não só para a construção da narrativa de Scamparini, mas também para o conhecimento produzido por mulheres, quando o pensamos de maneira mais ampla. Como aponta a socióloga estadunidense Patricia Hill Collins, há duas formas por meio das quais as mulheres costumam vivenciar o saber: uma é localizada no corpo e no espaço que ele ocupa, a outra é indo além dele.
Para Collins, a mediação desses dois aspectos, a partir das vivências pessoais do dia-a-dia, permite acessar subjetividades capazes de validar o processo de conhecimento de maneira muito mais próxima e empática. Isso fica bastante evidente ao longo da cobertura dos efeitos da pandemia, a partir dos relatos pessoais da repórter brasileira na Itália.
Se a narração de si está sempre implicada num conjunto de relações sociais, normas e temporalidade, como sugere a filósofa Judith Butler, parece oportuno afirmar que a exposição da rotina de Scamparini, sob o enquadramento adotado, acena também para a atualização de certas tensões do modelo de telejornalismo tradicional ao qual a repórter parece se filiar ao longo da carreira. A pessoalidade de sua cobertura vai mais além do realismo factual, porque compartilha o agenciamento de sua experiência naquele momento, na Itália, pelos fatores que lhe situam no grupo de risco, apesar de ser uma profissional da linha de frente. Um processo que gera empatia quase que inevitável, sobretudo, entre os que enfrentam as consequências do distanciamento social de maneira mais aguda.