Estudo dos efeitos da síndrome congênita do zika vírus em ratos pode subsidiar novas estratégias terapêuticas em humanos

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.

Saúde | Pesquisa aponta que, em ratos filhotes, o vírus causa alterações nos marcos de desenvolvimento e na barreira hematoencefálica que protege o sistema nervoso

*Foto: Flávio Dutra/Arquivo JU 09 abr. 2020

No dia 15 de novembro de 2015, o Ministério da Saúde reconhecia como Estado de Emergência Nacional de Saúde o surto de zika vírus, cuja maior concentração se deu no Nordeste – principalmente em bairros pobres e periféricos, locais sem saneamento básico que facilitam a proliferação do vetor, o mosquito Aedes aegypti. O período coincidiu com o aumento expressivo de casos de microcefalia fetal (malformação do cérebro no período pré-natal), e por algum tempo essa coincidência não era oficialmente associada às ocorrências de microcefalia, apesar de a vigilância de saúde da região ter sinalizado causalidade entre o vírus e a condição. Só em 2015, foram registrados 2.782 casos e 40 mortes por microcefalia. Posteriormente, com o empenho de cientistas locais e de outros países, a causalidade foi confirmada por meio de pesquisas laboratoriais. 

Apesar da contenção do surto de zika vírus e da diminuição dos casos de microcefalia, as pesquisas em torno do tema não cessaram, pelo contrário: avançam na direção de novas respostas. É o caso de um estudo da UFRGS, publicado no periódico Brain, Behavior and Immunity, que observou que o vírus provoca sequelas para além da microcefalia não só em humanos, mas também em ratos. Os pesquisadores detectaram que a presença do vírus no organismo de ratas provocou alterações na barreira hematoencefálica, estrutura que impede a passagem de substâncias do sangue para o sistema nervoso central. Essa alteração está associada ao estresse oxidativo notado nesses animais em virtude da contaminação.

Também foram notadas alterações importantes para a sua sobrevivência nos marcos de desenvolvimento dos filhotes. A identificação clínica desses efeitos em ratos, mesmo já tendo sido identificados em humanos anteriormente, é importante para que o modelo animal sirva de fonte de estudo para essa patologia, bem como para o subsídio de futuros tratamentos. O estudo foi realizado por pesquisadores do Instituto de Ciências Básicas da Saúde (ICBS) da UFRGS, da Universidade Federal de Pelotas e do Instituto de Cardiologia.

Dos métodos aos resultados

“A nossa proposta era inocular o vírus nas ratas prenhas a partir do nono dia de gestação, período crítico do desenvolvimento do sistema nervoso dos roedores”, explica a neurocientista e professora do ICBS/UFRGS Lenir Orlandi, líder da pesquisa. “As ratas não desenvolveram doenças e não foi observada mortalidade, diferente do que seria o ocasional para esse tipo de trabalho”, conta a professora. 

Nos filhotes nascidos das ratas inoculadas com o vírus, atrasos nos marcos de desenvolvimento foram observados após os 22 dias do período neonatal dos roedores, mesmo que os filhotes tenham nascido com o tamanho do cérebro sem alterações. Esses atrasos vão desde o soltar da orelha — que primeiro se desenvolve grudada e depois se abre com o aumento da expressão da audição — até a localização do ninho e da mãe por meio do olfato. Depois desse período, foi realizada a eutanásia dos animais para avaliar se o número de células importantes para estruturas como o hipocampo, por exemplo, havia sido reduzido, mas nenhuma mudança foi constatada. 

Entretanto, ao medir as proteínas da barreira hematoencefálica que protege o sistema nervoso, o grupo de pesquisadores percebeu diminuição em várias dessas substâncias, mostrando que possivelmente o cérebro daqueles roedores estava mais suscetível à presença do vírus. Essa diminuição de proteínas está associada ao estresse oxidativo notado nos filhotes, acusando presença desordenada de radicais livres (subproduto de reações químicas) no sistema nervoso, que podem ocasionar danos às células caso não neutralizados por antioxidantes. O estresse oxidativo se dá quando os níveis antioxidantes do corpo não estão altos o suficiente para combater as nocividades dos radicais livres.

“A gente também avaliou a placenta das mães e o tecido dos fetos, e vimos que o vírus estava no material fetal, estava na placenta”, detalha a neurocientista. Ela explica, ainda, que as alterações do sistema nervoso se justificam pela maior atração que o vírus tem pelas células desse sistema. 

“O zika vírus tem atração pelas células neuronais precursoras lá do período pré-natal. São essas células que dão origem a todas as células do nosso sistema nervoso” 

Lenir Orlandi

Esses efeitos da síndrome congênita do zika vírus já haviam sido estudados em humanos, mas tal descoberta também em ratos possibilita que se reproduza, em roedores, o que acontece em humanos. Isso permite que essas alterações sejam mais bem estudadas, o que pode, futuramente, contribuir para novas estratégias terapêuticas

SARS-CoV-2 no ônibus e zika vírus no CREAL

Quando o artigo do grupo foi aceito para submissão pela Brain, Behavior and Immunity, revista de alto impacto no meio científico, havia muito a ser comemorado. Mas a excitação durou pouco tempo: o primeiro revisor pediu que modificações fossem feitas. “Ele disse que o dado era interessante, mas pediu que a gente fizesse uma estatística um pouco mais aprofundada”, relata a neurocientista. Uma vez concluídas essas modificações, mais uma vez o trabalho foi submetido, e mais uma vez uma série de questionamentos fez com que a equipe de pesquisadores tivesse de reavaliar o artigo. Por fim, depois de um ano insistente em um processo de edições, revisões e conversas, o estudo finalmente foi aceito.

Com os resultados da pesquisa apurados e estruturados em um artigo, Lenir relembra dos esforços empregados para lidar com os desafios ao longo do estudo. Por utilizarem um microrganismo de risco moderado, os cientistas usaram uma estrutura de Nível de Biossegurança 2 (NB-2) no Centro de Reprodução e Experimentação em Animais de Laboratório (CREAL), órgão auxiliar do Instituto de Ciências Básicas da Saúde (ICBS), localizado no Câmpus do Vale. “Não tivemos incidentes durante a pesquisa, mas um pequeno volume do vírus e um dedo furado, por exemplo, poderiam infectar. E nós tínhamos várias mulheres em idade fértil [na pesquisa], e a gente estava estudando justamente o efeito congênito”, diz a professora, ressaltando a importância dos protocolos de segurança.

Em 2020, a pandemia de coronavírus chamou a atenção de milhares de pesquisadores pelo mundo, já que era a pesquisa do momento. Para o grupo de pesquisadores no CREAL, as dificuldades a partir daí se intensificaram: expostos a um vírus, teriam de se sujeitar a mais um. Com um sorriso no rosto pela superação do período crítico, a professora recorda uma rotina que ficou para trás. “Apesar dos desafios vencidos, tivemos muitos perrengues. Como parte da pesquisa foi feita durante a pandemia, era contato com o SARS-CoV-2 no ônibus [no trajeto até o câmpus] e com o zika vírus lá no CREAL”.

O próximo estudo dos pesquisadores já está em curso e deve ser divulgado a seguir. A pesquisa é uma extensão do estudo publicado na Brain, Behavior and Immunity, mas focado no comportamento das ratas mães infectadas pelo zika vírus, que, de acordo com o que foi observado, cuidam pior dos filhotes. “Diferente das ratas não infectadas, que pegam os filhotes, os agrupam num canto da caixa e fazem o ninho, as infectadas demoram mais para pegar os filhotes e passam menos tempo no ninho”, antecipa Lenir.

Compartilhe:

Share on whatsapp
Share on twitter
Share on facebook
Share on email
Share on linkedin
Share on telegram
Share on google
Language »
Fonte
Contraste