Estigma dificulta acesso e permanência de estudantes autistas na Universidade

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS por Ana Gonzalez. Para acessar, clique aqui.

Inclusão | Estudantes no Espectro Autista enfrentam percalços no acolhimento a suas necessidades no ambiente acadêmico e muitos preferem esconder o diagnóstico

*Foto: Marcelo Pires/JU

“Eu não sou um fardo.” É isso que a doutoranda em Ciências do Movimento Humano, Luísa Trevisan, tenta provar desde o início de sua extensa jornada no ambiente acadêmico. Hoje com 54 anos, Luísa é educadora física, artista, fotógrafa, dançarina e pesquisadora. Além disso, também tem o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA) desde os três anos de idade.

Estudante da UFRGS desde 2011 entre graduação, mestrado e doutorado – este em andamento –, Luísa relata que dificuldades de adequação ao modo como as coisas são feitas na Universidade permearam toda a sua vivência acadêmica. O trabalho que funciona à base de prazos apertados, as longas aulas sem intervalos e exigências dos professores e orientadores dificultam sua permanência na Universidade. Ela afirma que a junção de fatores se torna danosa à sua saúde mental. “Existe uma tradição de que só os fortes resistem”, afirma. “Não percebem que é um ambiente que adoece as pessoas. É um faz de conta de que tá tudo bem, e na verdade não tá tudo bem.”

A estudante de Ciências Sociais Mariana – o nome é fictício, já que ela prefere não se identificar –, ao ingressar na UFRGS em 2015, então no curso de História, não compreendia por que tinha tanta dificuldade de estudar os conteúdos do curso do mesmo jeito que os colegas. As leituras densas e extensas rendiam noites sem dormir e geravam sentimentos de frustração e culpa, além de resultarem em um mau desempenho acadêmico. Foi só em 2022, aos 28 anos e após a transferência interna para o curso de Ciências Sociais, que veio o diagnóstico que ajudou a amarrar as pontas soltas e colocar os fatos em perspectiva: autismo de nível 1, que requer o menor grau de suporte. “O diagnóstico me ajudou a entender que o meu jeito de estudar é diferente; consegui, então, compreender por que era tão difícil antes.”

A parte escondida

Não existe uma contabilização oficial que mapeie o número de estudantes autistas matriculados em universidades, mas, mesmo que existisse, o número poderia não ser um retrato fidedigno da realidade. “Muitos estudantes escolhem não revelar o diagnóstico ou não ingressam na universidade por reserva de cotas de pessoas com deficiência, então pode ser difícil conseguir um número preciso”, explica a coordenadora do Núcleo de Inclusão e Acessibilidade da UFRGS (Incluir), Adriana Arioli.

A escolha por não compartilhar essa parte de si com amigos, colegas, professores e até mesmo familiares é tomada por alguns estudantes com TEA por motivos variados, mas quase todos se voltam a um mesmo fator: o medo do estigma que o diagnóstico carrega. Mariana conta que opta por não compartilhar a informação com colegas e professores por medo de sofrer consequências futuras no mercado de trabalho. “Eu sei que esse diagnóstico poderia ser usado contra mim no futuro”, explica. “Por isso, conto nos dedos as pessoas que sabem.”

Já para Luísa, a decisão de manter o diagnóstico uma informação compartilhada com poucos na Universidade vem de uma necessidade adquirida com o tempo de se adaptar aos meios em que está inserida, estratégia chamada de ‘masking’ e que se caracteriza pelo esforço, consciente ou não, que algumas pessoas autistas fazem de camuflar características e estereotipias relacionadas ao diagnóstico para se encaixar em situações sociais. 

“A gente é treinada pra se adequar o tempo todo”

Luísa Trevisan

Enquanto não revelar o diagnóstico pode servir como um escudo contra preconceitos, essa decisão também pode significar a privação de estudantes autistas dos seus direitos dentro da Universidade. A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência garante o direito à educação das pessoas com TEA e à oferta de profissionais de apoio escolar para esses estudantes em qualquer nível de ensino. No entanto, entrar em contato com os órgãos de suporte oferecidos pela Universidade para solicitar auxílio relacionado às demandas pedagógicas asseguradas legalmente é uma decisão que precisa vir de cada estudante a partir de suas necessidades específicas. “A gente paga um preço bem alto, quer a gente se identifique ou não”, observa Luísa.

Importância do preparo docente

Para Mariana, mesmo antes de ter conhecimento do diagnóstico, uma das maiores dificuldades desde seu ingresso na Universidade foi comunicar aos professores suas necessidades de apoio e ter seus pedidos de ajuda diminuídos ou ignorados. Ela atribui isso a uma falta de preparo geral por parte de docentes para atender alunos que possam precisar de auxílio individual, sejam eles neuroatípicos ou não. A lógica individualista do ambiente acadêmico dificultou seu aprendizado e impôs barreiras que tornaram sua jornada universitária mais desafiadora. “Eu preciso de um acompanhamento mais de perto, mas acabei não conseguindo ter esse acompanhamento porque eu acho que isso não é da estrutura da faculdade”, relata. Por isso, a estudante teve que se adaptar ao modelo universitário de aprendizagem sozinha, aos poucos, “conforme deu”. Com o tempo, a mudança de curso e o reconhecimento de seu método próprio de aprendizagem tornaram a vivência de Mariana mais amena. “Nas Ciências Sociais, eu estudo coisas do dia a dia, então me ajuda também a entender como as outras pessoas pensam pra eu as entender e me entender”, reflete. “Eu sinto que tem acolhimento.”

No âmbito da pós-graduação, Luísa vive sob a pressão pungente de provar seu bom desempenho e habilidades aos orientadores e colegas, mesmo aqueles que não sabem seu diagnóstico. Seu processo de criação particular, que acontece em fluxos intensos e espaçados de produtividade, colide com a intransponibilidade dos prazos de entrega exigidos. “Pra fazer essas coisas, eu me aprofundo muito. Eu tenho um hiperfoco quando eu tô trabalhando nisso que, quando eu vejo, passou o tempo e eu esqueci de comer”, relata. A depressão profunda com que foi diagnosticada em 2023 joga luz sobre os efeitos calamitosos de estar inserida em um ambiente que rejeita o atípico.

“Eu não aceito que tentem me convencer de que eu tô atrapalhando ou ocupando vagas”

Luísa Trevisan

Apesar de existirem cursos e capacitações para a formação de docentes do ensino superior, de forma a prepará-los para lidar com as demandas de estudantes com deficiência, inclusive os autistas, eles não são obrigatórios. A falta de preparo formal e qualificado se traduz em uma incapacidade diante de situações que fogem da norma neurotípica e muitas vezes capacitista do fazer universitário. “É uma caixinha hermética, onde é assim que se ensina, e quem não conseguir acompanhar vai ter que ir embora”, observa Luísa.

Na UFRGS, o Incluir oferece, em parceria com a Escola da Desenvolvimento (EDUFRGS), ações de capacitação gratuitas para docentes e técnicos com o objetivo de fomentar um ambiente mais inclusivo em todos os âmbitos para pessoas com deficiência. “É uma forma de eliminação de barreiras, principalmente aquelas relacionadas ao desconhecimento que as pessoas têm sobre a temática”, explica Adriana.

A mudança deve ser coletiva

A inclusão dos estudantes autistas na Universidade passa por caminhos múltiplos e complexos, mas o vínculo entre uma experiência universitária proveitosa e de qualidade para estudantes autistas e o preparo eficiente de docentes para lidar com as demandas desses estudantes é claro e precisa ser reconhecido e reforçado. Para a professora da Faculdade de Educação da UFRGS e pesquisadora integrante do Núcleo de Estudos em Políticas de Inclusão Escolar (NEPIE), Clarissa Haas, é necessário lembrar de que todas as pessoas autistas são diferentes e têm demandas singulares que não cabem dentro de um único rótulo e que vão além do diagnóstico. “Como profissionais da educação, não podemos assumir o perfil dos estudantes com autismo como sendo um perfil geral. É necessário nos atentarmos ao modo singular como cada pessoa vive a condição do autismo”, aponta. 

“É papel da docência valorizar as diferentes estratégias de expressão utilizadas por esses estudantes, legitimando suas formas próprias de comunicação a partir da ação pedagógica”

Clarissa Haas

Além disso, a responsabilidade pela inclusão das pessoas com TEA no ambiente acadêmico em todos os seus âmbitos recai sobre todas as partes da Universidade e não pode ficar reservada exclusivamente aos órgãos diretamente responsáveis. “É uma responsabilidade compartilhada”, lembra Adriana.

Os projetos de apoio aos estudantes autistas na Universidade, como o Incluir e o Coletivo Autista da UFRGS, tentam mitigar os efeitos danosos que a falta de preparo universal do ensino superior para atender estudantes neuroatípicos causa. Enquanto o faz de conta mencionado por Luísa não deixa de existir, essa parcela invisibilizada da população universitária segue esperando que o resto da comunidade acadêmica, entre professores, estudantes e técnicos, escute e acolha suas demandas e necessidades mais básicas. “A Universidade devia ser um lugar de acolhimento e suporte não só teórico, mas também pra que tu vá te constituindo enquanto um profissional e ser humano competente, então deveria ser o último lugar pra haver esse tipo de preconceito”, reitera Luísa.

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