Publicado originalmente em Jornal da UFRGS por Ana Gonzalez. Para acessar, clique aqui.
Inclusão | Apesar de ainda se depararem com dificuldades acadêmicas, universitárias que vivem a maternidade encontram refúgio em espaços dentro da UFRGS
*Foto: Marcelo Pires/JU
Quase escondida entre as árvores da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança (Esefid) da UFRGS, existe uma casa pintada de cor-de-rosa. Quem se aproxima, ouve os sons da infância acontecendo — da construção de mundos imaginários à discussão das regras do pega-pega. Lá dentro, cheiro de café fresco e bolo recém saído do forno, uma pequena biblioteca com livros infantis e acadêmicos, uma coleção generosa de brinquedos e uma sala de estudos, além de recantos para descansar. A Casa Acolhe, como o nome sugere, é um dos espaços pensados por estudantes, docentes e técnicas da UFRGS para amparar e acolher mães, pais, responsáveis e crianças dentro dos muros da Universidade.
Conhecido carinhosamente por seus frequentadores como Casa Rosa e aberto a todos os estudantes da Universidade desde maio de 2022, o espaço foi pensado após a observação do crescimento do debate sobre o tema da maternidade dentro do ambiente universitário, seus desafios e necessidades, por estudantes e servidoras da Esefid, muitas delas também mães. “Está se voltando esse olhar pra possibilitar que as mães estudantes não desistam de seus cursos porque são mães”, explica Lisandra Oliveira, docente da graduação em Educação Física e uma das idealizadoras do espaço.
“A maternidade não pode ser um impeditivo pra mulheres estudarem, trabalharem e viverem”
Lisandra Oliveira
Fortemente interligada ao coletivo Mães na UFRGS, a Casa Rosa oferece, além de um refúgio para mães, pais e cuidadores, um lugar aberto e adaptado à infância dentro de um ambiente que costuma se mostrar hostil a crianças e às necessidades específicas dessa fase da vida. Ainda vistas como tabu, a maternidade e a infância são invisibilizadas e pouco debatidas dentro dos muros da academia. “Quando cheguei na Universidade, tinha essa sensação de que havia um silenciamento de mães. Não sabia quem era mãe e quem que não era”, afirma a estudante de Pedagogia Laís Cabral, que é mãe de Elisa, de 6 anos. Conhecer outras mães e passar a frequentar espaços como a Casa Acolhe foi fundamental para tornar sua experiência enquanto mãe e universitária menos solitária.
Também estudante de Pedagogia e mãe de Davi, de 8 anos, Jennifer Araújo relata diversas situações em que se sentiu insegura ao precisar levar seu filho para dentro da sala de aula da Universidade por não ter outra escolha. “A gente não sabe como cada professor vai reagir”, explica. “Uma mãe não leva a criança pra aula porque ela quer. Ou eu levo ele, ou eu não vou à aula.” Lugares voltados à acolhida e discussão positiva da maternidade e da infância dentro da Universidade diminuem a sensação de inadequação com a qual muitas mães universitárias precisam lidar durante suas jornadas acadêmicas.
Graduanda da licenciatura em Dança e mãe de Aurora, de 3 anos, e Maria Alice, de 5, Caroline Tasso conta que saber de movimentos como o Mães na UFRGS e de espaços como a Casa Acolhe foi fundamental na sua decisão de retomar os estudos após a maternidade. “Eu sempre quis fazer graduação, mas não tinha certeza se conseguiria me manter na Universidade pelo fato de ser mãe e ter todas essas demandas”, explica. “Só de saber da existência daquele grupo, que tem mais gente para poder ouvir e apoiar, foi muito importante.”
Contribuições da comunidade
A partir de 2022, com o retorno das aulas presenciais após a pandemia de covid-19 e impulsionadas pelo coletivo Mães na UFRGS e a ampliação dos debates acerca da maternidade e da infância no ambiente acadêmico, iniciativas similares à Casa Acolhe passaram a surgir em outros pontos da Universidade. A maioria desses locais eram salas multiuso, depósitos ou espaços sem um propósito definido e foram criados através do diálogo com as diretorias de cada faculdade e de doações de materiais pela comunidade que se formou ao redor do tema.
Antes uma sala de reuniões e estudos que caiu em desuso após a pandemia, o IMEzinho, no Instituto de Matemática e Estatística (IME), no Câmpus do Vale, surgiu baseado nas mesmas ideias de acolhimento e visibilidade da Casa Acolhe. Segundo a professora do IME Miriam Telichevesky, a contribuição da comunidade de mães da UFRGS foi essencial para o estabelecimento bem-sucedido do Imezinho. “Foi tudo ação da comunidade”, ressalta. “A cadeira de amamentação, os brinquedos, tudo foi doação. Agora, a bibliotecária está nos ajudando a montar uma biblioteca infantil.”
O mesmo pode ser dito da sala de amamentação estabelecida na Faculdade de Medicina, no Câmpus Saúde. Criada em uma sala que antes abrigava uma secretaria que foi transferida para a esfera online após a pandemia, o espaço foi concebido pela docente do curso de Nutrição Vera Bosa, que destaca a importância do local principalmente por conta da brevidade do período de licença maternidade concedido a estudantes universitárias — outro fator que serve de impeditivo à permanência de mães na Universidade. Hoje, o período de licença ofertado pela lei brasileira a mães matriculadas em instituições de ensino superior é de quatro meses a partir do oitavo mês da gestação. “Foi criado pensando na responsabilidade da Universidade em estimular que as mães sigam com a amamentação após esse período”, afirma.
Assim como Miriam, Vera também salienta o fator da ajuda da comunidade como essencial para o sucesso e andamento da ideia. Com o auxílio de outras mães, a sala já conta com cadeira de amamentação e berço.
“As mães são muito esquecidas, e quando tem alguma questão que nos beneficie, todo mundo se mobiliza e acaba querendo contribuir e fazer parte”
Vera Bosa
Iniciativas ainda são questionadas
Mesmo com o fortalecimento desses movimentos a partir de 2022, a necessidade de lugares de apoio à maternidade no ambiente universitário se manifesta desde muito antes. No Câmpus Saúde da UFRGS, o Dafinho, uma extensão do Diretório Acadêmico da Faculdade de Farmácia (DAFF) voltada a oferecer um espaço de descanso, privacidade e acolhimento para mães e crianças, foi conquistado através da luta estudantil ainda em 2019. Antes utilizado como depósito, o espaço foi convertido em uma ludoteca e conta com brinquedos, cadeira de amamentação e uma cômoda utilizada como fraldário — todos os materiais também são frutos de doações de membros do DAFF e da comunidade de mães da Universidade. “O DAFF brigou por aquele espaço”, afirma Kariane Borges, que é mãe, estudante de Farmácia e integrava o diretório à época da fundação do Dafinho. “O espaço precisa estar ali. Ele precisa existir e precisa resistir.”
O local, porém, enfrenta constantes questionamentos quanto à necessidade de sua existência, que precisa ser continuamente defendida pelas estudantes que o utilizam com seus filhos. “Alguns colegas utilizavam aquele espaço antes dele se tornar o Dafinho e acham que ainda podem usar ele pra descansar”, explica Julia Tavares, também estudante de Farmácia e mãe de duas crianças. Segundo ela, o pouco uso do espaço por mães serve como desculpa para defender sua não existência. O mesmo ambiente que afugenta mães e crianças se utiliza de sua ausência para invisibilizá-las e excluí-las ainda mais.
“Mais do que nunca, a gente precisa de espaços como o Dafinho. Mesmo que pouca gente use, ele precisa estar ali para as mães se sentirem acolhidas e terem onde ir quando estiverem com seus bebês”
Julia Tavares
Espaços em desenvolvimento
Existem também os projetos de espaços que ainda não saíram do papel. Junto de outras mães ligadas ao curso de Pedagogia, Laís e Jennifer planejam um local semelhante ao Dafinho e ao IMEzinho no prédio da Faculdade de Educação (Faced), no Câmpus Centro, que ainda não conta com iniciativa do tipo. “Já temos o espaço, mas falta ele ser mobiliado”, explica Jennifer, ressaltando que o apoio da comunidade também é fundamental na implementação do projeto, batizado de Facedinha. Informações sobre como fazer doações podem ser obtidas através do telefone (51) 3308.3266.
Apesar dos empecilhos evitáveis impostos pela comunidade acadêmica como um todo às mães universitárias, os espaços existentes e os que surgirão num futuro próximo demonstram uma melhora, ainda que pequena, no panorama geral para essa parcela de estudantes. As outras demandas, no entanto, seguem existindo e sendo expostas. Os “almoçaços” promovidos pelo Coletivo Mães na UFRGS, por exemplo, buscam chamar atenção para a ampliação da idade máxima de acesso de crianças aos restaurantes universitários da UFRGS, que hoje é de 6 anos.
“A gente tem pensado sobre como conscientizar a comunidade acadêmica de que as mães existem nesse espaço e são importantes”
Miriam Telichevesky
Entre o progresso representado pelos lugares pensados para acolher e a hostilidade com a qual mães universitárias costumam se deparar nos outros ambientes da Universidade, para a professora Lisandra, a visibilidade do movimento materno universitário, venha ela como for, segue sendo a melhor estratégia de conscientização. “A gente tá incomodando a comunidade acadêmica que diz que nosso lugar não é aqui —dizemos que é aqui, sim. Aqui e onde mais a gente quiser.”